03/08/2018 - 20:58

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O Estatuto da Criança não tem condão mágico para fazer uma mudança cultural instantânea

03/08/2018 - 20:58

O Estatuto da Criança não tem condão mágico para fazer uma mudança cultural instantânea

'O Estatuto da Criança não tem condão mágico para fazer uma mudança cultural instantânea'

 

Siro Darlan

 

A defesa incansável dos direitos das crianças e dos adolescentes tem sido historicamente a principal bandeira do desembargador Siro Darlan de Oliveira, hoje na 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça. Colaborador contumaz da imprensa, ele acaba de reunir, no livro Crônicas do juiz das crianças: Direitos e deveres (Lumen Juris), artigos que escreveu nos últimos anos para jornais e revistas de todo o país. Os textos reafirmam a idéia de que a sociedade brasileira ainda não é capaz de tratar com eficiência seus jovens – infratores ou não. "Nossa cultura, infelizmente, não é das melhores em matéria de cuidado com a infância", afirma o ex-juiz da Vara da Infância e da Juventude, que concedeu a seguinte entrevista à TRIBUNA.

 

Amanda Lopes

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi criado há quase 20 anos. Que balanço o senhor faz da aplicação desse diploma legal? Houve melhorias efetivas?

 

Nossa cultura, infelizmente, não é das melhores em matéria de cuidado com a infância. Desde que aqui aportaram os europeus, as crianças empobrecidas sofrem muito preconceito. Muitas passaram sua infância aprisionadas em instituições pelo simples fato de serem pobres ou de não possuírem famílias que cuidassem delas. O advento do Estatuto da Criança e do Adolescente não tem o condão mágico de fazer uma mudança cultural instantânea. Muitas gerações ainda estarão contaminadas com a cultura dos maus-tratos e da violência doméstica até que consigamos o respeito ao superior interesse da criança. Contudo, muito já se tem a comemorar. Hoje a criança é matéria obrigatória nas pautas políticas de educação e cultura, nos orçamentos públicos e os conselhos de Direitos e Tutelares se aperfeiçoam para melhor cumprirem o seu papel social.

 

O ECA também é muito criticado por setores que argumentam que o documento é um entrave à punição dos jovens infratores. Como o senhor rebate esta crítica?

 

Na verdade, não há "entrave à punição dos jovens infratores", há ainda uma incompetência do Poder Público para fazer respeitar a lei. Antes de diagnosticar os jovens autores de atos infracionais, havemos de perguntar se os setores da administração pública estão implementando as políticas públicas com absoluta prioridade, como reza o artigo 227 da Carta Magna. Vamos responder que não. Se ainda perguntarmos se os estabelecimentos responsáveis pelo cumprimento das medidas sócio-educativas estão em consonância com os textos legais nacionais e tratados internacionais, mais uma vez a administração pública será reprovada. É mais fácil repetir a história da discriminação e atribuir aos jovens a responsabilidade por estarem fora das escolas que não existem, das famílias que não os respeitam, dos direitos que são desrespeitados.

 

No filme Juízo, lançado em 2008, fica explícito como o tratamento dispensado aos jovens infratores não é capaz de promover sua ressocialização de forma eficiente. Percebemos que esses jovens sequer entendem as normas do sistema que os condenou. O Judiciário está preparado para lidar com a questão da punição desses menores, que é tão delicada?

 

O filme bem retrata o despreparo dos agentes responsáveis pela implementação da lei, não só juízes despreparados e desmotivados, como membros do Ministério Público e da Defensoria Pública raivosos e insensíveis às necessidades básicas dos jovens envolvidos em atos infracionais. Ora, com essa ótica injusta não se educa ninguém. O que está errado é o Estado que não investe nas melhorias das condições físicas e pedagógicas dos estabelecimentos responsáveis pelo cumprimento das medidas sócio-educativas, e não os adolescentes que esperam cumprir a medida que o juiz lhes aplicou em estabelecimento condizente com as normas legais.

 

Um dos principais desafios no momento é a assistência às crianças e adolescentes vitimados pelo crack. O que precisa ser feito, a curto e médio prazo?

 

Infelizmente o Estado (aqui mais adequado é falar-se em Município) tem sido negligente há anos e nunca se preocupou com a saúde desses jovens escravizados por substâncias químicas. A maior preocupação tem sido quanto às formas mais cruéis de punição dessas pessoas adoecidas. Não há uma política de combate às drogas que invista na saúde dos usuários. Há pelo menos cinco décadas insistimos nessa política de repressão que tem ceifado vidas e gerado uma corrupção policial e política sem precedentes. É hora de refletir e buscar uma mudança de paradigma. Tratar as vítimas das drogas para evitar que crianças famintas e descuidadas se entreguem de forma definitiva a essa doença, quase incurável.


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