14/05/2013 - 18:33

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Projeto relaciona Direito Penal e criminalização do samba

14/05/2013 - 18:33

Projeto relaciona Direito Penal e criminalização do samba

VITOR FRAGA
 
Nas primeiras décadas do século passado, o simples ato de caminhar pelas ruas carregando instrumento musical poderia levar uma pessoa para a cadeia - sobretudo se o indivíduo fosse negro e se vestisse como sambista ou como "capoeira". Apesar de a legislação não detalhar as tipificações penais, a detenção pela polícia geralmente atingia grupos bem determinados, majoritariamente negros, sambistas, praticantes de capoeira e adeptos de religiões afro-brasileiras.

 
A tipificação que enquadrava os sambistas do início do Século 20 era evidentemente focada em negros, pardos, pobres, trabalhadores ou não. Era uma forma de seleção do Estado, de controle desta população
Reinaldo de Almeida Júnior
Advogado
 
Essa é a premissa geral da pesquisa de doutorado do advogado Reinaldo de Almeida Júnior, que será desenvolvida junto à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). "Na verdade, não havia na legislação da época tipos específicos, nem existe hoje. O Direito Penal utiliza uma norma de criminalização primária, mais geral. A forma como esses tipos penais serão utilizados na criminalização secundária, por exemplo, na seleção policial, pode ser completamente diferente. No caso dos sambistas, era muito usada a tipificação de vadiagem, criada no Código Penal de 1890, que ainda existe hoje com outra descrição, não mais como crime e sim como contravenção penal", explica Reinaldo.
 
A pesquisa vai investigar aspectos da legislação penal e sua relação com o samba e outros elementos da cultura e das religiões afro-brasileiras, da primeira metade do Século 20 até os dias atuais, mostrando as permanências e rupturas do Direito Penal nesse período.
 
"Além do valor histórico, que é importante, o estudo também pretende estabelecer relações com a atualidade. Atualmente, a perseguição ao funk e às religiões afro-brasileiras, a truculência policial nesses casos, tudo isso são mostras da permanência dessa repressão dirigida. A criminalização pela polícia segue dados objetivos, permanece até hoje a perseguição a determinados grupos sociais. O Direito Penal, em geral, é racista e classista", afirma.
 
Muitas vezes, a perseguição tinha também cunho ideológico. "Quem portava um instrumento musical ou fazia samba podia ser enquadrado como vadio, porque a ideologia dominante na época era varguista, voltada para a ética do trabalho. Os sambas sofriam uma espécie de patrulhamento, no sentido da não exaltação dessa figura do malandro que despreza o trabalho", diz Reinaldo. Um exemplo é Bonde São Januário, de Wilson Batista, que teve a letra modificada por intervenção do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo – a original falava que o bonde "leva mais um sócio otário /só eu não vou trabalhar", foi alterada para "leva mais um operário / sou eu que vou trabalhar".
 
Reinaldo cita outros casos, como Lenço no pescoço (Wilson Batista), que fala da figura do malandro-vadio; Delegado Chico Palha (Nilton Campolino e Tio Hélio), Olha o Padilha (Moreira da Silva, Bruno Gomes e Ferreira Gomes) e Batuque na cozinha (João da Baiana), em que se encontram trechos sobre a repressão por parte dos delegados de polícia; e também exemplos mais recentes, como Homenagem ao malandro e A volta do malandro, ambas de Chico Buarque e que mostram que hoje o malandro é um personagem exaltado de maneira positiva. Aquela tal malandragem não existe mais, como atesta o próprio Chico.
 
Todas as músicas estão disponíveis em matéria na Rádio OABRJ.
 

Capoeira e religiões afro-brasileiras também eram criminalizadas, prática hoje voltada, em parte, para o funk
 
A repressão ao samba e a outras manifestações culturais refletia também uma forma de controle do comportamento. "Se alguém jogava capoeira, era tido automaticamente como vadio. A própria vestimenta entrava na seleção policial, o tamanco, as calças folgadas, os cabelos diferentes. Há registros de delegados que eram bastante violentos e seletivos na perseguição aos sambistas, de quem raspavam a cabeça e mandavam trocar as roupas, no sentido de um controle ideológico da forma de vestir e agir".
 
Reinaldo defende que o processo de criminalização da figura do malandro carioca (que englobaria não apenas o samba, mas também outras manifestações a ele interligadas, como a capoeira e as religiões afro-brasileiras) foi muito específico e seletivo no período da República Velha, mas até hoje verifica-se a permanência dessa criminalização seletiva.
 
"Atualmente não existe mais a situação de uma pessoa ser presa por estar portando um instrumento musical. Mas poderíamos verificar essa mesma espécie de seleção do sistema de justiça criminal no caso do funk ou do rap. São manifestações culturais e musicais reprimidas penalmente de várias formas, como a apologia ao crime, tipo penal editado no Código desde 1940 e que é utilizado hoje para incriminar os MCs do funk", declara ele, que aponta também aspectos de criminalização dirigida às religiões afro-brasileiras, cuja ligação com o samba é profunda.
 
"Existem tipos penais, como o curandeirismo e o charlatanismo, utilizados até hoje como forma de criminalizar os praticantes e os rituais dessas religiões". Pela lei, curandeirismo seria basicamente a promessa de uma cura segundo um método infalível ou místico, que poderia levar ao enquadramento criminal também de outras religiões de origem não africana – o que segundo Reinaldo de fato acontece, embora com menos frequência.
 
O advogado chama a atenção ainda para o fato de que as pessoas selecionadas pelo sistema penal não são as únicas que cometem crimes. "Todos praticam delitos, mas existem alguns tipos penais específicos de determinadas classes sociais. A tipificação que enquadrava os sambistas do início do Século 20 era evidentemente focada em negros, pardos, pobres, trabalhadores ou não. Era uma forma de seleção do Estado, de controle desta população. Isso está presente até hoje, tipos penais como furto, roubo e tráfico de drogas correspondem a praticamente 80% da população carcerária. Dados do Ministério da Justiça reafirmam que em maioria são jovens, de 18 a 24 anos, com baixa escolaridade, negros ou pardos. É muito evidente a seleção do sistema penal no sentido do controle dessas populações que eram e são tidas pelo Estado como classes perigosas", conclui.
 

Versão online da Tribuna do Advogado, maio/2013.
 

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