12/09/2013 - 14:43

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Descaso validado pelo STJ em Campo Grande

12/09/2013 - 14:43

Descaso validado pelo STJ em Campo Grande

RENATA LOBACK
 
Em Campo Grande não há captação de esgoto. O transporte dos dejetos é improvisado pelos próprios moradores e o despejo, feito diretamente na Baía de Sepetiba. Tratamento é luxo, lá isso não existe. Mas a conta da Companhia Estadual de Águas e Esgoto (Cedae), com a taxa de esgotamento incluída, não falta; chega todo mês. Pode parecer absurdo, mas nem a Justiça está ao lado dos consumidores, obrigados a pagar por um serviço que não recebem. Em junho, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) publicou salvo-conduto considerando legal a cobrança da tarifa, mesmo nos locais onde a concessionária não tem rede própria de coleta e os detritos são lançados in natura nas galerias de águas pluviais. 
 
Apesar de a empresa já ter assumido que em Campo Grande não realiza nenhuma das etapas do esgotamento (captação, transporte, tratamento e despejo), o STJ validou sua decisão com base no decreto que regulamenta a Lei 7.217/2010, que determina que basta o cumprimento de apenas uma das etapas do esgotamento para que a cobrança seja feita. 
 
Segundo o presidente da OAB/Campo Grande, Mauro Pereira, além de contraditória, uma vez que nenhuma das fases é cumprida, a medida vai de encontro à Lei Federal 11.445/2007, clara ao afirmar que a tarifa só pode ser cobrada caso sejam realizadas todas as etapas. 
 
O ministro Benedito Gonçalves determinou, ainda, a suspensão de todas as ações contra a concessionária. O resultado é uma pilha de processos julgados improcedentes pelos magistrados e outra, com julgamento favorável em primeiro grau, paralisada nas câmaras cíveis e turmas recursais. Isso sem falar no dano ambiental causado pela poluição das galerias pluviais e pelo assoreamento de mais de um quilômetro de extensão de praia na Baía de Sepetiba.
 
Para Pereira, não há qualquer justificativa que sustente a suspensão das ações pelo STJ. Desde 2007, segundo ele, a Cedae declara, por meio de Termo de Reconhecimento Recíproco com o município, que não responde mais pelo serviço de esgotamento sanitário nas localidades abrangidas pela Área de Planejamento 5 (AP-5), que engloba o bairro de Campo Grande. "Se a empresa admite não prestar o serviço, temos uma pá de cal nesta questão. Permitir-se a cobrança sem a contraprestação do serviço, além de configurar enriquecimento indevido, é crime de poluição ambiental disposto no artigo 54 da Lei 9.605/1998", avalia o presidente.
 
 
Mesmo sem oferecer tratamento de esgoto, Cedae é autorizada pela Corte a cobrar pelo serviço. Após denúncia da subseção, OAB/RJ planeja audiência pública sobre o caso 
Pereira conta que, anteriormente, os acordos eram realizados em todas as ações de Campo Grande, com a devida suspensão da cobrança. Até que houve um boom de mais de 60 mil processos e a situação mudou. "Parece que,  para evitar a sobrecarga do Judiciário e a quebra da empresa, os juízes passaram a julgar como improcedentes os processos contra a Cedae", afirma. 
 
O primeiro foi o juiz titular do XVIII Juizado Especial Cível, João Luiz Oliveira. Além de se basear no mesmo decreto adotado pelo STJ, o magistrado citou em suas decisões um suposto convênio entre a Cedae e o município do Rio de Janeiro. Por este convênio, segundo Oliveira, estaria prevista a utilização das galerias pluviais para dupla finalidade, ou seja, receber tanto as águas das chuvas como o esgoto produzido pelos usuários dos serviços. Para ele, isso caracterizaria o cumprimento de uma das etapas do processo de esgotamento: o transporte.
 
De acordo com o presidente da subseção, se comprovada a existência do convênio - ainda hoje não declarada pela Cedae -, tal permissão seria ilegal, pois violaria o art. 487 da Lei Orgânica Municipal, que veda o uso das galerias para fins de esgoto. 
 
Em visita à OAB/RJ Campo Grande no mês de agosto, a equipe de reportagem da Tribuna do Advogado ouviu colegas a respeito da situação. Para eles, a decisão do STJ sobrepuja a Constituição Federal e as leis 11.445/2007 e 8.078/1990 por meio de decretos de aplicação terciária, ignorando a hierarquia das fontes. "Tenho uma cliente que possui dois imóveis na mesma rua e ingressou com processos separados contra a Cedae, solicitando a interrupção da cobrança. Em uma das ações, o acordo foi feito porque a concessionária admitiu não cumprir nenhuma das fases do tratamento de esgoto. Já na outra, a Cedae alega que faz o transporte e por isso não cabe o process"”, relata a advogada Cristiane Alves. 
 
De acordo com o advogado Celso Cordeiro, para a validação dos entendimentos do STJ e do magistrado era imprescindível a comprovação da realização de ao menos uma das etapas do esgotamento. "Em outubro do ano passado, a empresa começou a defender o uso das galerias para o transporte do esgoto. Até hoje nenhum documento foi apresentado para comprovar a cessão por parte da prefeitura. Ouso afirmar que esta cláusula contratual nunca vai constar dos autos, uma vez que o governo municipal não pode declarar que firmou um convênio que vai de encontro às leis ambientais", observa Cordeiro.
 
Para a advogada Aline Maia, mesmo que um dia seja comprovada a realização de uma das etapas, o justo seria uma cobrança de forma proporcional e não total do serviço. "Nos municípios de Três Rios, Barra Mansa e Volta Redonda, por exemplo, a concessionária responsável cobra apenas pelas etapas do esgotamento realizadas. Se não há a efetivação de todo o processo, não pode ser cobrado o valor total", analisa. 
 
Diante das denúncias, a equipe da Tribuna percorreu a região e constatou o descaso com o saneamento básico. Cortado por rios, córregos e valões, o bairro de Campo Grande lida com o esgoto na base do improviso. Não há no local nenhuma rede coletora instalada e são os próprios moradores os responsáveis pela construção de fossas sanitárias, caixas de gordura e sumidouros.  
 
Não é preciso ir longe para observar o descaso. Na área central do bairro, próximo ao Centro Esportivo Miécimo da Silva, onde vão acontecer competições dos Jogos Olímpicos de 2016, há um imenso canal. Ao longo dele, diversas bocas de lobo e canos despejam esgoto sem qualquer tratamento. Pelo acúmulo de lama e detritos, não é difícil imaginar o que acontece em dias de fortes chuvas. "A Cedae não envia nem mesmo um coletor de resíduos sólidos. Ironicamente, minha conta com a taxa de esgoto chega todo mês", critica o morador Jair Neves.
 
O triste resultado do descaso é o assoreamento de toda a extensão da Baía de Sepetiba. Em visita à praia da Brisa, é possível observar o contraste: a orla bem cuidada, com quiosques e praças, é margeada pela lama em que se transformou o mar no local. Pela praia, píeres escondem gigantescas bocas de lobo de onde deságua mais esgoto. "É o reflexo da falta de cuidado do poder público e da Cedae. Os advogados reclamam das injustiças processuais, mas este é o ponto micro da questão. Como instituição, temos que pensar no macro, isto é, nos problemas que este descaso gera para a sociedade. Campo Grande tem mais de um milhão de habitantes e 40 empreendimentos multifamiliares sendo erguidos. Se nada for feito, não sei onde vamos parar daqui a poucos anos", lamenta o presidente da 29ª Subseção.
 
Em declaração ao jornal O Globo, em julho, o diretor jurídico da Cedae, Sérgio Pimentel, afirmou que a avalanche de ações judiciais na Zona Oeste é majoritariamente provocada por escritórios de advocacia que usam de má-fé contra a companhia. "Muitas pessoas estão sendo usadas por picaretas. São induzidas a ingressar com estas ações. Há uma indústria de processos e o STJ já nos deu decisão favorável", disse ele, na época. 
 
O presidente da OAB/RJ, Felipe Santa Cruz, lamenta a declaração do diretor. "A Cedae ocupa os primeiros lugares em número de processos gerados pela insatisfação com o serviço. Os problemas são fatos conhecidos e notórios e ele ousa afirmar que a culpa dos processos é dos advogados. É uma declaração lamentável e digna de desagravo a todos os colegas da Zona Oeste", afirma Felipe, informando que, para debater melhor o assunto e cobrar explicações das autoridades, a Seccional promoverá no fim de setembro  audiência pública sobre o tema. "Faço questão de convidar os interessados para que se posicionem em nossa plenária. Esta situação chegou ao limite", enfatiza o presidente.  
 
Procurada pela reportagem da Tribuna, a companhia se limitou a afirmar que "desde 2007 o esgotamento sanitário não é de responsabilidade da empresa. Atualmente, o serviço é realizado pela concessionária Foz Águas do Brasil e a Cedae não cobra taxas na região".
 
Já a Fundação Rio-Águas, órgão municipal que controla as galerias pluviais, informa que "é adotado o transporte de efluentes previamente tratados em áreas que não tenham sistema tipo separador absoluto. Procedimento previsto em leis ambientais, na Lei 11.445/2007 e nos regulamentos das concessionárias, como o Decreto  553/76, que regulamenta a Cedae". A fundação não se manifestou sobre em qual momento o esgoto é tratado entre a saída das residências e a chegada às galerias. 
 
A respeito da recuperação da Baía de Sepetiba, apesar de nenhuma mudança perceptível no local, a Rio-Águas explica que a Prefeitura do Rio contribuiu com a implantação de sistemas de esgotamento sanitário na região, investindo R$ 196 milhões na implantação do serviço, drenagem e na pavimentação na Bacia de Sepetiba, por meio do programa Saneando Sepetiba, concluído em 2012.
 
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