11/07/2017 - 13:07

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Histórias para vencer o preconceito

11/07/2017 - 13:07

Histórias para vencer o preconceito

Projeto da Comissão de Direito Homoafetivo dá apoio a parentes de LGB TIs e reúne histórias de superação e engajamento de mães por um mundo melhor para seus fil hos homossexuais
 
CÁSSIA BITTAR
Nascida de novo. É assim que a advogada Marcia Meira tem se sentido desde que sua filha Fernanda, aos 30 anos,  contou-lhe que estava namorando uma mulher. Nunca tendo antes desconfiado de que a filha fosse homossexual, Marcia diz que aquele dia 4 de março de 2012 foi o verdadeiro divisor de águas em sua vida. Do total desespero e falta de informações, ela, a partir de então, começou uma empreitada de autoconhecimento e desconstrução de preconceitos que a levou a querer apoiar outros pais de LGBTIs e, hoje, a comandar o Projeto de Apoio aos Pais e Parentes na Aceitação da Diversidade Sexual (Pappadis) da Comissão de Direito Homoafetivo (CDHO) da OAB/RJ.

Criado em 2016, a partir do encontro de um sonho antigo da presidente da comissão, Raquel Castro, com o trabalho que Marcia já vinha realizando na internet à frente do blog Beija-Flor – Família sem preconceito, no qual reúne histórias de aceitação e vivência em famílias de LGBTIs, o Pappadis ajuda pais e parentes a lidarem com uma situação que, segundo a coordenadora, é sempre inesperada: “Ninguém é preparado pra ter filhos homossexuais”. 

Marcia acredita que boa parte dessa falta de preparo se dá pelo conservadorismo da sociedade. “A gente tem a mania de querer encaixar as pessoas em quadrados, em determinações que já estamos acostumados, para poder entendê-las. Eu, por exemplo, sempre achei que não tinha qualquer preconceito, mas diante da revelação da orientação sexual da minha filha, vi que não era bem assim, pois quando o diferente chega a nossa casa é como se diz popularmente: ‘o buraco é mais embaixo’”.

Apesar de ter demonstrado, desde o momento em que ouviu da filha que ela se relacionava com uma menina, apoio incondicional, Marcia conta que, por dentro, seu mundo desabou naquele momento. “A frase ‘tenho uma namorada’ não saía da minha cabeça e o que me doía, fundo, era o meu preconceito com a pessoa que mais amo. Eu pensava coisas como ‘só tenho uma filha, por que isso não acontece com alguém que tem mais de um?’, pensava que não a veria casar, que não seria avó. Tudo porque o conceito de normalidade que temos, desde a nossa criação, é esse”.

A partir daí, Marcia relata que procurou se informar muito para entender a realidade de Fernanda: “Não foi um processo fácil porque eu não queria me afastar dela, mas ao mesmo tempo era difícil me aproximar.
 
Então fiz curso de autoconhecimento, fui ler tudo que achava sobre homossexualidade,  tudo ainda meio escondida, porque eu tinha vergonha. E quando comecei a conversar com outras mães que já tinham passado por essa fase, vi que era normal ter um filho gay, que a vida dela não mudaria em nada por isso”.

O acesso à informação nesse período não foi fácil, frisa Marcia. “Eu procurava ler sobre homossexualidade na internet e só encontrava tragédias, coisas ruins, os casos de violência contra LGBTIs. Quando a gente já está apavorada e no desconhecimento, ainda se depara com essas coisas que só assustam mais”. Por isso, o blog, criado como projeto de um curso que fez, acabou virando espaço para histórias felizes envolvendo a relação dos gays com suas famílias.

“Minha vontade era ajudar quem passa pelo mesmo processo, mostrar que é um caminho difícil, tortuoso, mas possível. A gente tem tendência a pensar que é só conosco. E não é. Outras pessoas passam e sobrevivem, ressignificam tudo, aceitam, porque o processo é justamente esse. O filho nasce, a gente diz: ele vai fazer isso, isso e isso. Na nossa cabeça, nós decidimos. Pai e mãe querem ter controle e no momento em que você vê que não tem, fica perdido. Mas o que se deve pensar é que o amor sempre vai vencer. Cresci como pessoa e como mãe desde que a Fernanda se assumiu. Aprendi a olhar para dentro de mim mesma, encarar a minha verdade, as limitações emocionais que eu me impunha, a perceber o grande erro de criar falsas expectativas sobre algo que não controlamos, o outro”, reflete Marcia.

E foi justamente pelo post no blog sobre o casamento da filha que Marcia encontrou a materialização de outro sonho, novo: ajudar outros pais a passarem pelo momento que ela passou. A história, contada de forma emocionante, foi lida por Raquel Castro, que a convidou para comandar o projeto da comissão.

“Eu já queria criar esse grupo há muito tempo. Conhecia o trabalho que a Edith Modesto realiza em São Paulo no Grupo de Pais de Homossexuais [GPH] e já tentava um diálogo com ela para trazer o modelo para o Rio. Como tivemos dificuldade em falar com a representante do GPH aqui, comecei a pensar em outras formas de tocar o projeto, que precisava ter uma mãe à frente, não um homossexual. Foi aí que vi o post e encontrei a pessoa ideal para desenhar um trabalho só nosso”, explica Raquel.

Formado por duas advogadas, membros da comissão, além de Marcia, o Pappadis conta também com uma pedagoga e uma psicóloga. O grupo se encontra quinzenalmente na sede da OAB/RJ e é aberto a qualquer familiar que procura apoio.

“Sabemos que o primeiro passo é o pior: buscar ajuda. Mas procuramos fazer com que, a partir do momento em que chegam aqui, achem amparo. Temos uma mãe que em seis meses teve uma evolução muito grande. Chegou desesperada, mas quando viu todas as outras levando uma vida normal com seus filhos, começou a tirar as amarras e a olhar de outra forma para sua realidade”, diz Marcia.

Pedagoga do projeto, Teresa Ourivo afirma que o Pappadis é um espaço de acolhimento. Ela conta que a equipe oferece, dependendo do rumo da reunião, textos, livros e filmes que possam ajudar. “Mas acho que isso nem é o mais importante, e sim a pessoa saber que tem ali um espaço de confiança, onde está segura para falar sobre as angústias que  enfrenta diante da situação familiar por que está passando. Ou de não falar, se não quiser. Só ouvir. Ela se sente amparada, acolhida por saber que não será julgada por aquilo que pensa, por suas dúvidas, que poderiam ser tidas como bobas por setores da sociedade, mas que aqui nunca serão”.

A identificação de pais com pais é o grande diferencial, segundo Ourivo. “Nossa preocupação é como essa mãe, esse pai, vão viver. Às vezes, uma pessoa da comunidade vai julgar o sentimento familiar de tristeza, de revolta. Mas quem já passou por isso sabe que é um momento de passagem, que o processo tem essas etapas”.

Por essa razão, Raquel afirma que os demais membros da comissão não participam das reuniões, que são restritas aos familiares que procuram o Pappadis: “Há casos de pais que pedem para vir com os filhos, para se sentirem acolhidos, porque de alguma forma não estão à vontade para vir sozinhos. Isso é permitido. Mas tudo é passado para a nossa equipe ter o controle. A intenção é deixar as pessoas o mais confortável possível nesse ambiente, que é neutro, em um ponto central da cidade e que tem o respaldo da Ordem”.

Dos encontros, que não têm pautas definidas previamente para que se possa avaliar as demandas dos participantes, Marcia já tirou várias lições, entre elas a de que o preconceito às vezes está mais entranhado do que se imagina. “Apesar da minha evolução nos últimos anos e de pensar, inocentemente, que tinha dominado os preconceitos em relação à orientação sexual ou identidade de gênero, quando recebemos a mãe de uma mulher trans vi que ainda tenho muito caminho pela frente. O processo não para. Por um momento agradeci a Deus por minha filha ser ‘só’ lésbica. Aprendi que o sofrimento de uma mulher trans é cotidiano, está no dia a dia, passa pela discriminação , pela exclusão e pelas agressões não só psicológicas, mas até físicas. Ali, durante o relato das duas, vi um grande exemplo de amor e acolhimento”, conta a coordenadora.
 
“Precisamos sempre respeitar as diferenças e não podemos nunca baixar a guarda, temos de ser vigilantes com nossas reações espontâneas cobertas de preconceito”, acrescenta.

Membro do Pappadis, Rosane Albuquerque é outro exemplo de mãe que viu sua vida mudar após a revelação da filha de que era gay. Afastada do Direito, Rosane se viu num processo de volta ao mundo jurídico, onde já atuava anteriormente em Direito de Família, para procurar se qualificar para trabalhar com Direito Homoafetivo após uma entrevista da desembargadora aposentada Maria Berenice Dias, expoente no assunto e presidente da Comissão de Diversidade Sexual da OAB Federal.

Rosane conta que sua história foi mais fácil do que outras relatadas. “Fiquei sentida por minha filha não ter me contado antes, já que me contava tudo. Como ela tinha namorado três meninos, em relacionamentos longos, eu não imaginava. Mas é muito difícil também para o homossexual se entender. Ela chegou a falar com todos eles sobre o desejo que sentia por meninas, mas só por volta dos 30 anos entendeu que era, de fato, homossexual, e aceitou”, diz.

M., que preferiu não se identificar para atender ao desejo do filho de não ser exposto, diz que ficou perdida ao descobrir, por uma mensagem no celular, a orientação sexual dele, com 17 anos na época. O processo natural da maioria das mães, explica a coordenadora do grupo, é de vergonha, raiva e negação. “Mas vai depender da experiência de vida de cada uma o quanto demora cada fase. Quem está em negação não faz o movimento de vir procurar ajuda porque tem medo de ser discriminada. Só que aqui não se fala nome, sobrenome, o que veio fazer, nada. Se não quiser compartilhar, pode chegar e ficar em silêncio”.

Rosane acredita que, com a evolução dos produtos midiáticos, pode se tornar mais fácil para as novas gerações lidar com a diversidade. “A gente viu, desde cedo, na novela, nas histórias em quadrinhos, nas músicas, sempre homem e mulher, Monica e Cebolinha. É tudo binário”. A revelação da filha, Tatiane, a tirou de sua zona de conforto. “Sinceramente, sou muito grata a ela por isso, por ter me colocado para fora desse mundo de Truman [referência ao filme O show de Truman, no qual o protagonista vive em uma realidade encenada de um reality show sem desconfiar]. Agora, saio e vejo a diversidade ao meu redor, a riqueza que temos. É impressionante o grau de possibilidades. E isso é muito bonito, muito rico, não é para se jogar fora. O mundo é imenso e a gente fica aqui querendo rotular tudo”.

O projeto Pappadis tem encontros quinzenais às terças-feiras, sempre às 18h, na sede da Seccional. Para participar basta enviar um email para [email protected]. O grupo tem ainda perfil no Facebook: facebook.com/Pappadis.

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