11/07/2017 - 13:17

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O que se esconde por trás do “combate à corrupção”?

11/07/2017 - 13:17

O que se esconde por trás do “combate à corrupção”?

RAFAEL BORGES*
Nas reflexões que produziu em torno do Direito Penal do inimigo, o magistrado e jurista argentino Eugênio Raúl Zaffaroni apontou que para exercer o poder dominante é imprescindível a detenção do poder punitivo; que quando o poder punitivo não encontra limites, fomenta o agigantamento do Estado de polícia, este franco opositor do Estado de Direito; que o sistema penal, para ser exercido permanentemente, está sempre à procura do inimigo e que o poder político, com todas as suas ramificações, pode e é frequentemente utilizado como poder de defesa contra os inimigos (O inimigo no Direito Penal, Revan, 2007). A seleção de inimigos determinados é ainda uma exigência operativa do sistema penal. Considerada a enorme quantidade de leis criminais em vigor e seu indiscutível alcance potencial, esse mecanismo de atuação, que vem alterando seus “alvos” ao longo da história, confere legitimidade às agências que operam os processos de criminalização. Apesar de sua atualidade como fenômeno social e especificidades relevantes, há indícios de que o propalado “combate à corrupção”, que direciona instrumentos do Estado policial principalmente contra políticos e determinadas atividades empresariais, esteja sendo evocado pelas agências do sistema penal (Polícia, Justiça, Ministério Público e mídia) na perspectiva do Direito Penal do inimigo.

Em sociedades de bases capitalistas, o exercício do poder punitivo está a serviço de interesses econômicos bem demarcados. Para não desnudarem sua atuação “interessada”, as agências que operam o sistema penal estão sempre teorizando justificativas e normalizando procedimentos, ainda que em prejuízo da dogmática e dos limites colocados pela legislação vigente. O bom uso desses tipos de expedientes vem permitindo que, por exemplo, assistamos anestesiados à sanguinolenta e irracional “guerra às drogas”, sem perceber que sua (in)utilidade esteja diretamente relacionada aos esforços neoliberais de eliminação dos consumidores falhos da nova economia (Globalização: as consequências humanas, Zygmunt Bauman, Zahar, 1999). O “combate” ao varejo de drogas ilícitas nunca foi um fim em si mesmo, senão que o mecanismo mais exitoso de neutralização e marginalização permanente de pessoas que não conseguiram se integrar aos processos da economia formal. Guerrear contra o “tráfico de drogas” é a senha que viabiliza a dominação de territórios, o arrombamento de casas (em favelas) dispensando-se mandados de busca e apreensão e o encarceramento seletivo em massa, que cresceu mais de 400% ao longo dos últimos 20 anos (dados do Conselho Nacional de Justiça). Nada disso aconteceu sem a colonização de mentes e almas, sem expressivo apoio midiático, sem a corrosão da dogmática e sem o enfraquecimento da força normativa da Constituição.

O avanço do Estado de polícia a partir do “combate à corrupção” se vale de instrumentos semelhantes, guardados contornos peculiares que não deixam de reforçar a hipótese. Embora não mire uma classe social desfavorecida ou desintegrada das dinâmicas econômicas próprias do capitalismo neoliberal, o “combate à corrupção” afeta o Estado, as instituições públicas e a política, criando quase que uma relação de imanência entre “desvios” e “relações estatais”. Mais uma vez, e também porque a sociedade brasileira tem base capitalista, ao enfraquecimento do Estado e das instituições públicas corresponde o enaltecimento da sociedade civil e do mercado, este caracterizado como virtuoso, desinfectado, técnico e racional. Quando atingem o Estado, os esforços de “combate à corrupção” deslegitimam a sua estrutura e a sua própria capacidade de regular as relações sociais e econômicas. Não é à toa que nesta ou noutra quadra histórica, o bom mocismo da anticorrupção surgiu em conjunturas políticas nas quais o Estado brasileiro, ainda que essencialmente capitalista, buscava alguns caminhos de reconciliação com as classes mais pobres, implementando medidas que reduziram a desigualdade social e o número de pessoas miseráveis.

Como acontece na “guerra às drogas”, a seleção de inimigos “corruptos” demanda contexto favorável, com o uso apoiado de técnicas e instrumentos que confiram racionalidade ao discurso, sem o que estaríamos todos cientes de que experimentamos uma realidade altamente autoritária, em flerte constante com o fascismo. O apoio entusiasmado das agências de comunicação é impressionante, mas as relações entre mídia e sistema penal no capitalismo tardio são tema esgotado pelo advogado e professor Nilo Batista (Discursos sediciosos, nº 12, ICC). A corrosão da dogmática está presente na leitura jurisprudencial contemporânea do delito de corrupção passiva (artigo 317 do Código Penal), cada vez mais distante dos paradigmas doutrinários construídos a partir da redação dos tipos penais referidos, outrora aplicados com respeito ao princípio da legalidade e sem o propósito latente de ampliar o poder punitivo. Nesse sentido, até o Supremo Tribunal Federal sucumbiu à exigência de ter que se apontar na ação penal o “ato de ofício configurador de transação ou comércio com o cargo” então exercido pelo agente público corrompido. Esse entendimento, consolidado até o julgamento da Ação Penal 307 (ex-presidente Collor), foi substituído na Ação Penal 470, quando então o tribunal “externou um entendimento mais abrangente, assentando ser suficiente, para a configuração do tipo previsto no art. 317 do Código Penal o mero recebimento de vantagem indevida, por funcionário público, dispensando-se a precisa identificação do ato de ofício. E mais: dispensou, também, a necessidade de indicação da relação entre o recebimento da vantagem por parte do servidor e a prática de determinado ato funcional” (fl. 3.729 do acórdão). Assim, passou a ser suficiente que a hipótese acusatória narre o repasse de valores ou o recebimento da vantagem, decorrendo da condição funcional do agente público em tese corrompido a conclusão de que o tal repasse comprou um “fazer” ou um “não fazer”, independentemente da descrição do ato de ofício. Um alargamento dogmático dessa natureza, longe de ser uma ferramenta de moralização do Estado brasileiro, fragiliza a classe política, empodera acusadores e cria um ambiente generalizado de suspeição. O resultado disso é o agigantamento do sistema penal, com prejuízo evidente para as instituições e a capacidade do Estado de prover regulação e serviços.

Os esforços de “combate à corrupção” têm servido ao avanço das pautas conservadoras, à criminalização da política e à predominância do Estado policial. Evoca-se uma expressão belicista, como em “guerra às drogas”, justamente para justificar os excessos que são sistematicamente praticados. O inimigo não é bem outro e a seletividade inerente ao sistema penal não abandonou o corte de classes. A equivocada percepção de que as agências persecutórias deixaram de agir seletivamente ou adotaram outros critérios e estereótipos serve bastante à legitimação do Estado policial, ao processo de desmonte do Estado regulador/prestador de serviços e do Estado democrático de Direito. Não serve para mais nada.
 
*Conselheiro da OAB/RJ, advogado criminalista

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