15/07/2015 - 14:35

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Religião se aprende no colégio?

15/07/2015 - 14:35

Religião se aprende no colégio?

Audiência pública no STF e debate sobre planos de educação esquentam discussão sobre ensino religioso nas escolas
 
VITOR FRAGA
A intolerância religiosa e a laicidade do Estado tornaram-se temas amplamente debatidos no país, sobretudo em função de recentes casos de agressões e das tentativas de interferência na legislação orientadas pela fé. Dentro desse contexto, a relação entre educação e religião é um dos pontos de controvérsia. Um exemplo é a discussão sobre os planos de educação estaduais e municipais, que traçam diretrizes para o ensino na próxima década, após a criação do Plano Nacional de Educação (PNE), em 2014: na última semana de junho deste ano, o Legislativo de nove unidades da Federação decidiu retirar dos respectivos planos estaduais referências a identidade de gênero, diversidade e orientação sexual. Sob pressão de setores evangélicos e católicos, parlamentares utilizaram a expressão “ideologia de gênero” (que, para eles, deturparia o “conceito de família tradicional”), desconhecida pelos grupos que defendiam a manutenção dessas referências no sentido de preparar as escolas para combater a discriminação de gênero e dar formação básica sobre sexualidade.

O assunto já havia voltado a ganhar força no mês passado, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou uma audiência pública para debater o caráter do ensino religioso no país. Pela legislação vigente, a frequência a essas aulas é facultativa e todas as religiões devem ser contempladas. No entanto, em mais da metade das escolas brasileiras (dados de 2013) o ensino religioso é, na prática, obrigatório – o que seria ilegal. Por outro lado, especialistas ouvidos pela TRIBUNA questionaram a constitucionalidade da inclusão da disciplina no currículo formal mesmo em caráter não confessional, e apontaram o risco de que as religiões cristãs, amplamente hegemônicas, sejam privilegiadas em detrimento de outras e, também, dos que não têm religião. Mas, afinal, como lidar no dia a dia das escolas com a necessária tolerância aos diversos credos e também com o respeito pelos que não abraçam fé alguma? Mesmo em caráter não confessional, a existência de um conteúdo específico de ensino religioso seria compatível com a laicidade do Estado expressa na Carta?
 
Audiência pública
No dia 15 de junho, representantes de entidades religiosas ou ligadas à educação participaram no STF de uma audiência pública, convocada pelo ministro Luís Roberto Barroso, para debater a legalidade da inclusão do ensino religioso na grade curricular das escolas da rede pública. Barroso é relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.439, movida pela Procuradoria Geral da República (PGR) para questionar a constitucionalidade do ensino religioso confessional (vinculado a uma ou mais religiões específicas) e propor que a disciplina tenha uma abordagem não confessional – histórica, com a exposição das doutrinas, práticas, história e dimensões sociais das diferentes religiões, incluindo posições não religiosas, “sem qualquer tomada de partido por parte dos educadores”, e ministrada por professores da rede pública de ensino e não por “pessoas vinculadas às igrejas ou confissões religiosas”. A ADI refere-se apenas ao ensino religioso na rede mantida pelos governos.
Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para o tema, a coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de São Paulo, Roseli Fischmann, participou da audiência representando a Confederação Israelita do Brasil (Conib). Para ela, o questionamento da constitucionalidade na ação proposta pela PGR e seu acolhimento pelo STF constituem o reconhecimento inédito de algo que os educadores já apontam há muito tempo. “Esse fato era sistematicamente negado por grupos hegemônicos, tanto de cunho religioso como no desempenho de funções ligadas a esse ensino na rede pública, beneficiários da prática dessa inconstitucionalidade. É bom lembrar, hoje é com 5 ou 6 anos que as crianças ingressam na escola, é uma idade de consciência tenra, que exige, como invoca o artigo 227 da Constituição, proteção de sua dignidade contra toda discriminação e opressão”, argumenta.
 
Legislação
O parágrafo 1º do artigo 210 da CF determina que: “O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”. Já a redação do artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), alterada pela Lei 9.475/97, reforça o caráter facultativo e diz que ele “é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo”.
 
Ainda segundo o artigo 33 da LDB, “a definição dos conteúdos” e “as normas para a habilitação e admissão dos professores” ficarão a cargo dos sistemas de ensino.

No Rio de Janeiro, segundo a assessora especial de Ensino Religioso da Secretaria de Estado de Educação (Seeduc), Maria Beatriz Leal, desde que foi definida pela Constituição como parte da grade curricular, a disciplina faz parte do sistema. “O ensino religioso atingiu um novo foco, passando de conteúdo ‘religioso’ a ‘científico’.
 
Todas as unidades da rede ofertam a disciplina. Atualmente, cerca de 40% de seus alunos optam por assistir a essas aulas. As religiões são trabalhadas na visão histórica, sociológica, filosófica e política”, afirma Maria Beatriz. Ela diz que o governo respeita o caráter facultativo. “No ato da matrícula, o responsável legal, ou o próprio aluno, se maior de 16 anos, deverá expressar se deseja que seus filhos ou tutelados frequentem as classes de ensino religioso. Portanto, se a família não optar por essa disciplina, será oferecida a esse aluno outra atividade pedagógica no horário dela”, observa.

Dados da Prova Brasil 2013 (do Ministério da Educação) apontaram que 70% das escolas públicas de ensino fundamental no país ministravam aulas de ensino religioso. Apesar de a CF e a LDB determinarem que a disciplina é facultativa, 54% dos diretores admitiram que a presença acaba sendo obrigatória. Além disso, em 75% das escolas não existem atividades alternativas para alunos que não queiram frequentar as aulas. 

Para Fábio Carvalho Leite, professor de Direito Constitucional e coordenador adjunto da pós-graduação em Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-Rio, este é um dos inúmeros problemas do ensino religioso confessional. “A incompatibilidade com a isonomia é gritante, mesmo na teoria: como oferecer ensino religioso a todos os alunos da rede pública contemplando toda a diversidade?”, questiona. A ausência de alternativas acabaria tornando obrigatório o que, constitucionalmente, deveria ser uma escolha. “Se as disciplinas serão oferecidas no meio da grade de horário escolar, que medida o diretor do estabelecimento deve adotar em relação aos alunos que ‘escolheram’ não assistir às aulas (já que a matrícula é facultativa)? Um segundo recreio? Outra atividade? Haveria resistência por parte dos professores da matéria? Como garantir que o diretor, na prática, não vai obrigar os estudantes a assistirem aulas de religião? Na verdade, em muitos casos, o caráter facultativo fica apenas nos textos legais”, denuncia.

O professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) Luiz Antônio Cunha reforça o mesmo argumento. “Na prática, o ensino religioso é obrigatório para a maior parte das escolas públicas que o oferecem. É preciso que isso seja severamente combatido, inclusive mediante a tipificação de crime contra a liberdade de consciência, cláusula pétrea da Constituição. Entendo que a matéria somente pode ser ministrada se a escola oferecer aos alunos opções concretas de disciplinas pedagogicamente significativas, nada de ir para casa mais cedo ou ficar circulando pelos corredores da escola”, critica Cunha, que participou da audiência pública no Supremo representando o Observatório da Laicidade na Educação e o Centro de Estudos Educação e Sociedade. Na opinião de Roseli Fischmann, é importante “repetir à exaustão” o caráter opcional. “Não há matrícula automática nesse conteúdo facultativo. Não se pode constranger alunos, alunas, mães e pais a ter que ir à escola para pedir dispensa de algo que é facultativo”, aponta ela.

Segundo o presidente da Comissão de Direito à Educação (CDE) da OAB/RJ, Mário Miranda, a discussão tem paralelo com a ideia de retirar símbolos de fé dos espaços do Judiciário. “A Ordem estaria em incoerência com sua luta histórica se não fosse a favor da impessoalidade e da laicidade do Estado. Como a entidade poderia lutar para tirar as representações religiosas dos espaços do sistema de Justiça e ter posição contrária em relação ao espaço educacional? A perspectiva confessional se adequa a uma ideia de escola como controle e não de espaço do conhecimento”, afirma. Por outro lado, Miranda pondera que, apesar de manter a posição pela laicidade, “é preciso respeitar a democracia e a escolha do campo da educação”, reforçando a posição de que, se o ensino religioso é previsto em lei, “que seja em caráter opcional, protegendo os jovens de preconceito”. 
 
Religião e laicidade
O que se conclui é que, embora o questionamento sobre a constitucionalidade apontado na ADI 4.439 conteste seu caráter confessional, há quem defenda que, do ponto de vista histórico, o conteúdo já estaria contemplado em disciplinas regulares. E que, mesmo sendo não vinculado a uma religião, a inclusão da disciplina no currículo das escolas públicas fere a laicidade do Estado – polêmica que vem desde a formulação da Carta Magna.

Roseli Fischmann lembra que, ao convocar a audiência pública, o ministro Luís Roberto Barroso admitiu tratar-se de uma “controvérsia constitucional”, e que os posicionamentos teriam apontado na direção “da necessidade de uma PEC que suprima esse dispositivo”. Para ela, a proposta da PGR de um ensino religioso não confessional seria “uma solução semântica para um problema insolúvel, uma vez que esses conteúdos estão presentes em aulas de história e para serem tratados por professores de história, por exemplo”. Fábio Leite acredita que um dos principais problemas é que o que deveria ser conflituoso em tese não era muito questionado na prática. “A Constituição de 1934, por exemplo, era republicana e laica, e ao mesmo tempo estabelecia que o ensino religioso seria ‘ministrado de acordo com os princípios da confissão religiosa do aluno manifestada pelos pais ou responsáveis’. A de 1946 tinha dispositivo semelhante. A Carta de 1988 já não foi tão clara quanto ao caráter confessional do ensino religioso – e talvez porque já não pudesse, uma vez que o tema foi polêmico na Assembleia Constituinte. Mas é muito difícil conciliar ensino confessional em escolas públicas com um sentido consistente de laicidade”, pondera.

Luiz Antonio Cunha considera que “é um retrocesso na construção da República em nosso país” a prática do ensino religioso nas escolas públicas. “Nesse ponto, a Constituição de 1988 é pior do que a de 1891. A interpretação pedida pela ADI é muito difícil, porque tem a Constituição em vigor como limite rígido. Para fazê-lo não confessional, a única saída é o produto da ciência sobre a religião, por exemplo, a história das crenças ligadas à fé”, propõe. Para o professor, aulas de religião não poderiam ser admitidas no Estado laico. “A não ser por quem acrescente a onipresente alternativa: laico, mas... Para os que põem um ponto depois de laico (como de democracia, aliás), religião é algo para ser difundido e praticado por instituições da sociedade, que, no Brasil, vão muito bem. Há mais locais de culto do que escolas; os templos cristãos disputam tamanho, número de fiéis, audiência pela TV, desfrutam de isenções fiscais e gozam de privilégios impensáveis em outros países. E ainda querem usar a escola pública como agente cativo de difusão de suas doutrinas”, reforça, considerando o conteúdo não confessional como a possibilidade de alguma “margem de compatibilidade” com a laicidade. “Para tanto, não pode haver formação dos docentes em licenciatura específica. São os professores formados em História, Filosofia e Ciências Sociais que devem, na conjuntura atual, assumir a disciplina”, argumenta.

Levantamento feito pelo portal de notícias G1, com dados de 2014 do Disque 100 (que recebe ligações anônimas sobre vários tipos de violência, da doméstica à homofobia), aponta que o Rio de Janeiro, entre 2011 e 2014, foi o estado com maior número de casos de discriminação religiosa contra crianças e adolescentes. Os alvos são, em geral, membros de religiões com menos praticantes. De acordo o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os católicos são 64,6% da população brasileira, os evangélicos, 22,2%; seguem outras crenças 5,2%, e 8% não têm religião. Fábio Leite acredita que a dificuldade de garantir a isonomia no ensino religioso se expressa no quadro de docentes, cuja composição majoritária abrange basicamente as religiões cristãs, havendo pouco mais de 5% de outras crenças. “A situação agrava-se ainda mais se considerarmos que entre os outros credos não estão incluídas as religiões de matriz africana, justamente as que mais sofrem perseguições e ataques de intolerância religiosa. Até 2010, o quadro era de 640 professores, sendo 408 católicos, 220 evangélicos, seis espíritas, quatro messiânicos e dois mórmons”, aponta. 

Questionada sobre o possível privilégio às religiões cristãs, a assessora especial da Seeduc é enfática. “Essa afirmação é feita porque as pessoas desconhecem a organização do ensino religioso na rede estadual. A ideia inicial, ao propô-lo confessional e plural, seria oferecer, no mínimo, para cada escola onde houvesse aluno optante, um professor para cada credo credenciado (os credos hoje credenciados são: católicos, evangélicos, judeus, islâmicos, umbandistas, messiânicos, mórmons, espíritas e hare krishnas), em salas de aulas concomitantes”, defende. Maria Beatriz afirma que a secretaria orienta os professores a atender todos os alunos optantes, sem dividi-los por credo, “sendo o conteúdo ministrado de forma a respeitar a pluralidade religiosa”, e que dessa forma “não há nenhum credo específico que seja privilegiado na rede estadual”.

Na opinião de Roseli Fischmann, porém, o risco está presente. “A liberdade de crença, manifestada na liberdade de culto, é matéria do artigo 5º da CF, relativos aos direitos e deveres de todo e cada cidadão ou cidadã. Não é possível ser tratado no ‘atacado’, não pode ser objeto de ‘contabilidade’. As religiões monoteístas tradicionais, chamadas de abraâmicas, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, pela ordem de surgimento histórico, têm profundas diferenças entre si. A tentativa de tratá-las sob amplo guarda-chuva pode representar um risco ao respeito à própria fé”, observa a professora. E, nesse cenário, a escola poderia tornar-se um espaço de disputa entre crenças. “Se prevalecer a fórmula do ensino confessional ou prefixado, como, por exemplo, inter ou supra confessional, o risco vai ser substituído pela certeza: a escola pública será o palco da disputa entre confissões católica e evangélica, como já acontece com os meios de comunicação de massa. E ambas contra as afro-brasileiras, os agnósticos e os ateus”, adverte Luiz Antonio Cunha. 

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