20/08/2014 - 15:38

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Definição de trabalho análogo ao de escravo deve ficar clara, diz Delaíde

20/08/2014 - 15:38

Definição de trabalho análogo ao de escravo deve ficar clara, diz Delaíde

PATRÍCIA NOLASCO
 
Nascida no Dia do Trabalhador, Delaíde Alves Miranda Arantes teve origem pobre na pequena cidade de Pontalina, em Goiás. Lutou para estudar, ajudou o pai na lavoura, foi empregada doméstica e usou o crédito educativo para graduar-se. Após 30 anos de exercício profissional na advocacia trabalhista, foi indicada para o Tribunal Superior do Trabalho (TST) pelo Quinto Constitucional. Ministra da corte desde 2011, julga mais de mil processos por mês e acha que a atuação mais concentrada das entidades sindicais poderia contribuir para a redução das demandas judiciais.
 
A senhora ocupou funções modestas até conseguir formar-se e atuar como advogada. Hoje, com livros publicados, é ministra da mais alta corte da Justiça do Trabalho. O que a moveu nessa trajetória de superação?

A principal motivação, desde a infância, era o desejo de propiciar à minha mãe uma vida melhor. Ainda criança, ouvia de minha avó materna, uma mulher forte e determinada, sua preocupação com a situação financeira de meus pais, e eu assumia para mim a responsabilidade de um dia poder fazer algo para mudar o rumo da história. Mas são lembranças boas, que me despertavam sentimentos bons, de busca de vitórias pelo caminho dos estudos. Das minhas observações de criança, de adolescente, de jovem, na condição de filha primogênita de nove irmãos, compreendi logo as nossas dificuldades, nossa posição social, a sutil discriminação que sofria na escola, entre as amigas, e até mesmo no seio da família, em comparação aos que desfrutavam de melhor situação financeira.
 
A caminhada rumo ao Direito iniciou ali mesmo, na rotina da vida no interior. Na minha cidade, Pontalina, de 11 mil habitantes à época e poucas opções de cultura e lazer, era costume da população assistir às sessões do Tribunal do Júri, verdadeiros espetáculos, onde o advogado e o promotor de Justiça se esmeravam em suas defesas e acusações. Com certeza, aquelas sessões do tribunal tiveram grande influência na minha opção pelo Direito. A esse fato, somam-se as minhas observações sobre os advogados da cidade, a profissão da advocacia. Sempre fui muito observadora, é uma característica que conservo e que é minha grande aliada em muitas situações, na carreira e na vida.
 
Tenho lembranças boas e muito fortes. Uma delas é a minha fé em Deus. Desde criança, lembro das orações que fazia pedindo para ter condições de prosseguir nos estudos. Os desafios incluíam conseguir a permissão do papai para continuar na escola. Ele acreditava no potencial dos filhos, mas alegava que não tinha recursos. Isso me deixava muito preocupada.
 
Por sua origem, gênero ou no caminho até chegar ao atual posto, a senhora sofreu preconceito?
 
Sim, em diversas circunstâncias e situações. E o mais complicado é que o preconceito no mais das vezes é subliminar, não é claro ou explícito, ainda mais considerando que a valorização e o reconhecimento de história de superação como a minha e de tantos outros valorosos brasileiros são um fator bem recente no Brasil, cuja tradição era a de que os cargos mais importantes eram primordialmente ocupados por pessoas oriundas de classe social privilegiada.
 
Sobre o preconceito, o que eu posso dizer é que aconteceu e acontece até hoje, com muito menos frequência, é claro. Mas isso nunca me desestimulou, ao contrário, me incentiva a continuar em frente, a me dedicar mais aos estudos, a realizar o trabalho com mais eficiência, pois tenho uma grande responsabilidade, a de mostrar que eu não tenho só história de superação. Tenho preparo, competência e capacidade em igualdade de condições com quem estudou nas melhores escolas e teve outras oportunidades que não tive.
 
Para mim, ficou muito claro desde o inicio que, em razão da minha condição social e por ser mulher, eu precisaria ser a melhor na escola, no trabalho, em casa, em tudo. E esses desafios continuam. Fui nomeada para ocupar a vaga de ministra do Tribunal Superior do Trabalho. Muita honra, vitória, mas preciso justificar a confiança da OAB incluindo-me na lista sêxtupla, a do TST confiando em mim para integrar a tríplice e a do presidente da República que me nomeou. Tenho o dever de valorizar o instituto do Quinto Constitucional, de ser uma servidora pública exemplar, me aperfeiçoar como julgadora, atender bem a quem me procurar em audiência no gabinete, contribuir para a celeridade da Justiça, dar a minha contribuição efetiva para o engrandecimento do Poder Judiciário e como cidadã, cumprir o meu papel rumo à construção de uma sociedade mais justa e igualitária, conforme preconiza a Constituição Federal.
 
A morosidade processual tem prejudicado a aplicação da Justiça do Trabalho? Quantos processos estão no acervo e quantos são julgados por mês? O que poderia ser mudado para se obter mais celeridade?
 
A morosidade prejudica muito ao jurisdicionado. É motivo de reclamações e o principal fator de desgaste do Judiciário brasileiro. A Justiça do Trabalho é mais célere, mas, mesmo assim, não atende o reclame da sociedade, pois em se tratando de direitos de natureza alimentar, teria que ser muito mais rápida na solução final, inclusive na execução trabalhista, que tem sido muito demorada. Tenho no meu acervo em torno de 13 mil processos, atualmente. Julgo, como relatora, na turma e na SDI-2, órgãos colegiados onde atuo no TST, 1.100 processos ao mês, em média.
 
Sobre o que poderia ser mudado, não existe uma resposta única e esta é uma discussão que demandaria um espaço maior. Mas de forma resumida, eu diria que uma atuação mais concentrada das entidades sindicais, na resolução de questões mais frequentes, como demandas de verbas rescisórias, diferenças de salários e afins seria uma grande contribuição para reduzir o número de ações judiciais. Outra medida, a coletivização de ações, o ajuizamento através do sindicato da categoria, beneficiando os trabalhadores de forma coletiva, reduziria em muito os processos trabalhistas.
 
Um ano depois da aprovação da PEC das Domésticas, que contou com seu empenho, o Congresso ainda não regulamentou a lei e alguns direitos, como o FGTS, continuam sem efetividade. Por que a senhora disse recentemente que, se estivesse na relatoria da regulamentação, não mexeria no texto?
 
Eu disse isso num determinado contexto, mas já mudei de ideia. Analisei recentemente as emendas apresentadas ao relator e concluí que algumas questões precisam ser regulamentadas com alterações, como a contribuição sindical, o enquadramento sindical e a caracterização da relação de emprego, sem vinculação ao número de dias trabalhados na semana.
 
A PEC do Trabalho Escravo, prevendo o confisco da propriedade usada para manter trabalhadores em condições análogas à escravidão, corre o risco de tornar-se inócua, caso a bancada ruralista consiga esvaziar a definição de trabalho escravo na regulamentação. Essa briga vai desaguar no Judiciário?
 
Sou otimista, acredito sempre que irá acontecer o melhor. E, nesse sentido, é imperioso que a definição de trabalho análogo ao de escravo fique bem clara, porque não podemos admitir que em pleno Século 21 continuemos a conviver com trabalhadores sendo tratados de forma desumana, em condições degradantes, afrontando as garantias da Constituição e da legislação trabalhista. Sempre ficará ao Judiciário alguma margem de interpretação da lei, mas não creio que ficarão lacunas tão grandes.
 
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