22/05/2014 - 10:20

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Conanda dá limites a anúncios direcionados ao público infantil

22/05/2014 - 10:20

Conanda dá limites a anúncios direcionados ao público infantil

VITOR FRAGA
 
No início dos anos 1990, uma propaganda exibia crianças que mostravam uma tesoura com motivos infantis para a câmera, enquanto cantavam repetidamente: "Eu tenho, você não tem". Após receber críticas de estímulo ao consumo de forma abusiva, o comercial foi retirado do ar. Mas afinal, o que define uma publicidade como abusiva? O tema voltou à tona recentemente após a Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), publicada em 4 de abril no Diário Oficial da União. A medida gerou polêmica, pois supostamente proibiria qualquer tipo de publicidade de produtos infantis.

Conselheiro do Conanda e advogado do Instituto Alana (ligado aos direitos da infância), Pedro Hartung afirma que a prática já é proibida pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), e que o objetivo é justamente estabelecer parâmetros e critérios para considerar uma propaganda como abusiva, de modo que os órgãos fiscalizadores possam atuar melhor. "Recebemos muitas denúncias e pedidos, especialmente do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça, solicitando pareceres do Conanda sobre algumas propagandas infantis. Para dar resposta aos questionamentos da Justiça, editamos a resolução, que detalha e especifica o posicionamento do Conanda em relação a essa prática", explica Hartung, observando que a norma complementa as disposições expressas no CDC e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
 
Ou seja, a rigor, a Resolução 163 não cria uma nova legislação no que diz respeito à propaganda infantil, mas sim considera abusivo "o direcionamento de comunicação mercadológica" a esse público, sem no entanto proibir a publicidade de produtos para crianças. "É o próprio CDC, em seu artigo 37, que proíbe a prática da publicidade abusiva. O Conanda agora deixou clara essa abusividade na prática da publicidade infantil. O que há de novo são parâmetros específicos e detalhados sobre isso".

Pelo artigo 2º da resolução do Conanda, é considerada abusiva a publicidade voltada para menores de 12 anos que se utilize dos seguintes elementos: "linguagem infantil, efeitos especiais e excessos de cores; trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança; representação de criança; pessoas ou celebridades com apelo ao público infantil; personagens ou apresentadores infantis; desenho animado ou de animação; bonecos ou similares; promoção com distribuição de prêmios ou de brindes colecionáveis ou com apelos ao público infantil; e promoção com competições ou jogos com apelo ao público infantil". Essas seriam, segundo o conselho, as principais ferramentas utilizadas para persuadir a criança a consumir determinado produto ou serviço.
 
"O problema é o direcionamento da publicidade ao público infantil, e não a propaganda de produtos. A resolução servirá de parâmetro para a aplicação mais adequada da legislação em vigor", defende Hartung. A medida também considera abusivas as propagandas no interior de creches, escolas, em uniformes escolares e material didático – mas não se aplica a "campanhas de utilidade pública" que divulguem informações sobre "boa alimentação, segurança, educação, saúde, entre outros itens relativos ao melhor desenvolvimento da criança no meio social".

Para a professora de Ética Publicitária da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora da área de estudos críticos sobre consumo Ana Paula Bragaglia, a resolução é mais uma medida que poderá auxiliar no combate ao estímulo abusivo do consumo entre as crianças. "É um ganho, mais um fator de reflexão, mais um espaço que dá um selo de aprovação para a busca de pais e ativistas pelo fim da publicidade infantil. Mas o mercado vai espernear, assim como faz quando a Anvisa cria resoluções com restrições para publicidade de medicamentos", diz ela. 

De fato, empresas e entidades do setor criticaram a medida da Conanda, alegando que proibiria a propaganda infantil sem possuir competência para tal, e que a resolução não teria força de lei. Para o presidente da Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap) e da agência Publicis Brasil, Orlando Marques, a resolução "procura restringir a liberdade de expressão comercial" e considera "que crianças não existem até os 12 anos", já que estas não poderiam ser alvo de nenhum tipo de publicidade. "O intuito é vetar qualquer publicidade, mesmo que sejam absolutamente adequadas quanto à sua forma e ao seu conteúdo", critica.
 
Proibição terá força de lei?

Apesar de criticar as restrições, o presidente da Abap afirma que a Resolução 163 não irá afetar em nada o mercado publicitário. "Essa resolução é mera recomendação do próprio Conanda, não tem força de lei e é mais um elemento a tentar limitar a publicidade". Hartung, no entanto, garante que a medida tem, sim, "força de lei", pois a legislação que criou o Conanda conferiu-lhe competência para editar resoluções, que são "atos normativos primários", previstos inclusive na Constituição Federal.
 
"As normas emanadas do Conanda possuem poder vinculado, e devem ser seguidas e consideradas por todos os agentes sociais e estatais.  No caso da Resolução 163, aqueles que praticam a publicidade dirigida ao público infantil devem observá-la", explica o advogado, acrescentando que o conselho, criado pela Lei nº 8.242/91, é um órgão colegiado de caráter deliberativo, cuja competência é "elaborar as normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, fiscalizando inclusive as ações de execução". Em sua composição, possui 28 conselheiros, eleitos a cada dois anos, sendo 14 representantes do governo federal e 14 de entidades da sociedade civil organizada de âmbito nacional e de atendimento dos direitos da criança e do adolescente.

Procurado pela Tribuna, o presidente do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), Gilberto Leifert, declarou, em nota: "O mercado publicitário já sabe que, no Brasil, de acordo com a Constituição, normas que imponham restrições à propaganda comercial dependem de lei federal, votada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República, e as que estão em vigor, bem como a autorregulamentação, estão sendo cumpridas".

A resolução do Conanda não estipulou órgãos fiscalizadores, nem punições relativas à propaganda abusiva. Segundo Hartung, a verificação do cumprimento da norma está vinculada aos órgãos do sistema de proteção e defesa do consumidor, como o Procon e o próprio Ministério da Justiça. "Quem estipula a fiscalização e as punições para propaganda abusiva é o próprio CDC. Todas as sanções previstas para publicidade abusiva no artigo 67 seriam aplicáveis, como sanção administrativa ou penal, ou ainda a sanção civil", explica. A pena estabelecida para esta prática no artigo 67 do CDC é de detenção de três meses a um ano e multa.

Após a publicação da medida, o presidente da Frente Parlamentar de Comunicação (que representa as empresas do setor), deputado Milton Monti (PR/SP), apresentou o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 1.460/2014, que "susta os efeitos da Resolução 163 do Conanda", alegando que a medida "é inconstitucional e, de forma claríssima, exorbita do poder regulamentar conferido por lei federal àquele conselho". 

O presidente da Abap lembra que existe outro projeto de lei no Congresso - o PL 5.921, em tramitação desde 2001 - cuja finalidade seria proibir ou restringir a publicidade direcionada ao público infanto-juvenil, sob o argumento de evitar que as crianças constranjam seus pais ou responsáveis a adquirir bens ou serviços. "Esquecem eles que a publicidade apenas apresenta produtos e marcas, mas quem tem o poder de decisão, assim como a obrigação de orientar crianças, é essencialmente a família", argumenta Marques.
 
Questão de ética ou de mercado?

Para Ana Paula Bragaglia, embora os comportamentos considerados não saudáveis ligados ao consumo na infância não sejam resultado apenas da publicidade abusiva, esse fator acaba sendo decisivo. "De fato, há os pais que não sabem dizer não, e escolas que ainda não aplicam educação crítica para o consumo. Mas mesmo diante desse cenário, é preciso reconhecer o peso da publicidade. Não são apenas os pais que são liberais em excesso, é muito difícil dizer não o tempo inteiro".

Ela ressalta que diversas pesquisas na área de psicologia indicam ser muito comum crianças não conseguirem discernir facilmente os diferentes formatos de comunicação. "Embora haja exceções, até quatro ou cinco anos geralmente não se reconhece a diferença entre a publicidade, um produto de ficção e outro ligado à realidade, como o jornalismo. E mesmo após aprenderem a perceber as diferenças, crianças não têm uma capacidade crítica muito aguçada para frear seus desejos de consumo", observa.
 
A pesquisadora acredita que a resolução do Conanda vai modificar a linguagem geral da propaganda. "Hoje temos uma publicidade altamente infantilizada, mesmo para adultos. E não existe apenas o interesse em divulgar produtos para o público infantil como consumidor final, ele também é visto como influenciador de compras em relação aos pais, em função inclusive do protagonismo que a infância assumiu", acrescenta.

Apesar de avaliar a medida como uma proibição, o presidente da Abap argumenta que nada irá mudar no cotidiano dos profissionais da área. "As recomendações do Conanda, na sua grande maioria, são meras repetições do que o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária (CBAP) já estabelece e com muito mais propriedade. Assim, o mercado está sendo orientado a continuar a atender religiosamente esta e o CDC", diz Marques. 

Para Pedro Hartung, a expectativa é de que as empresas cumpram a resolução. "Esperamos que tenham a consciência e o entendimento de que esse é um passo importantíssimo para a sociedade brasileira no que tange à defesa e promoção dos direitos da criança", afirma. O advogado salienta que "a proteção do melhor interesse da criança de forma absolutamente prioritária" é determinada pela Constituição "a todos os agentes sociais e estatais", o que incluiria as empresas.
 
"É preciso respeitar o público infantil especialmente nas relações de consumo. Ninguém é contra a publicidade, ela não irá acabar. Apenas será feita de outra forma, redirecionada ao público maior de 12 anos, ou aos pais, que são os verdadeiros responsáveis por fazer a mediação dessa relação tão complexa que é a de consumo. Não é um pedido justo, é um pedido ético, e agora também uma determinação por meio da resolução", pondera.
 
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