15/05/2014 - 16:45

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Os limites da liberdade de escolha

15/05/2014 - 16:45

Os limites da liberdade de escolha

EDUARDO SARMENTO

A notícia da gestante que foi obrigada pela Justiça a fazer uma cesariana de emergência contra a vontade ganhou as páginas dos jornais e produziu acalorados debates e protestos em redes sociais em abril. No meio jurídico, a situação também gera polêmica e discordâncias. Em comum, considerações sobre a complexidade do caso, a necessidade de análise das especificidades do fato e dúvidas sobre os limites da liberdade de escolha.

A grávida em questão era Adelir Lemos de Goes, de 29 anos, que esperava seu terceiro filho – os dois primeiros haviam nascido por meio de cesarianas. A gestação estava na 42ª semana quando, no dia 31 de março, ao sentir dores abdominais, Adelir se encaminhou ao Hospital Nossa Senhora dos Navegantes, em Torres, no Rio Grande do Sul, onde foi atendida pela médica obstetra Andréia Castro.
Toda gravidez pode oferecer problemas e a opção pela cesárea não é isenta de riscos. É muito complicado obrigar alguém a se submeter a um procedimento em relação ao qual tenha reservas
Bernardo Campinho
presidente da Comissão de Bioética e Biodireito

Preocupada com a saúde da mãe e da criança, a obstetra acionou o Ministério Público do Rio Grande do Sul e, no mesmo dia, a juíza Liniane Maria Mog da Silva determinou que a gestante fosse encaminhada de volta ao hospital para ser submetida ao procedimento. Um oficial de Justiça acompanhado por policiais militares foi incumbido de cumprir a ordem.

Apesar de considerar o caso difícil, o presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/RJ, Bernardo Campinho, acredita que a decisão infringiu a lei. "A medida violou direitos fundamentais da gestante", acusa. Ele destaca a necessidade primordial de preservação da escolha da paciente. "Toda gravidez pode oferecer problemas e a opção pela cesárea não é isenta de riscos. É muito complicado obrigar alguém a se submeter a um procedimento em relação ao qual tenha reservas", argumenta.
 
No que diz respeito à criança, Campinho explica que o direito à vida vem após o parto, apesar da existência de legislação específica sobre o assunto. "De acordo com o artigo 2º do Código Civil, o direito à vida surge com o nascimento. Os interesses do nascituro são expectativas de direito legitimamente determinadas na forma da lei. Para ser protegido, ele deve ter seus direitos indicados. Em vários dispositivos do Código Civil existem proteções patrimoniais, por exemplo. Tecnicamente o nascituro não tem direitos subjetivos", avalia.

Mesmo considerando que os fatores a serem ponderados são muitos, Campinho critica "as controvérsias médicas e científicas" do caso. Para ele, foram erros no conjunto de elementos que levaram à decisão final. "Os argumentos utilizados para que a medida fosse tomada não são definitivos na literatura médica. Questões como a posição do feto, a idade gestacional, as duas cesarianas feitas anteriormente e até mesmo o resultado de alguns exames não são unanimidade em relação à imposição de uma cesárea", afirma.

A assinatura do termo de responsabilidade por Adelir isentava os médicos que a atenderam. Mesmo assim, a direção do hospital se sentiu na obrigação de levar o caso à Justiça. Para Campinho, o dever do médico é apenas o de informar de forma clara, cabendo somente ao paciente a tomada de decisão. Ao defender a palavra final do indivíduo, ele lembra o artigo 5º da Constituição Federal, que garante o direito à liberdade. "Adelir estava ciente dos riscos que corria e tomou a decisão após uma avaliação própria e consciente. Temos a garantia de liberdade, que neste caso é a capacidade de ter o seu projeto de vida autônomo e fazer escolhas, ainda que equivocadas", opina.

Membro do Ministério Público do Rio de Janeiro e titular da 4ª Promotoria de Proteção ao Idoso e à Pessoa com Deficiência da capital, Guilherme Peña de Moraes discorda da avaliação e considera que a medida tem respaldo. "Em muitas situações o Estado tem, sim, o dever de impedir que a pessoa coloque a própria saúde em risco", afirma.
 
É necessário partir da premissa de que não se trata de questão envolvendo liberdade do corpo da mulher ou escolha entre métodos de parto. Temos apenas as questões de fato e de direito
Guilherme Peña
Membro do MP
Para ele, é preciso que se analise o caso de forma estritamente jurídica. "É necessário partir da premissa de que não se trata de questão envolvendo liberdade do corpo da mulher ou escolha entre métodos de parto. Temos apenas as questões de fato e de direito", enfatiza. 

Peña lembra a dignidade humana como valor fundamental da ordem jurídica brasileira e concorda que, na maioria das vezes, o desejo individual deve prevalecer. A especificidade do episódio, no entanto, abre espaço para outras interpretações. Ele cita decisões tomadas em outros países para respaldar seus argumentos. "A pessoa humana não pode ser vista como um meio para o fim dos outros; é preciso, sim, preservar suas vontades. Na Europa, a partir da jurisprudência alemã, em regra prepondera a vontade da pessoa livremente manifestada sobre qualquer forma de intervenção do Estado contra ela. A não ser em uma única situação, que seria exatamente esta. Quando a pessoa escolhe, por deficiência de conhecimento técnico, uma solução que coloca em risco a própria saúde, o Estado tem a obrigação de intervir e protegê-la", explica.

Ele considera que o envolvimento de terceiros não modifica a forma de julgamento ou a decisão. "Mesmo que não fosse um caso de gravidez ou que não envolvesse riscos para o nascituro, o resultado deveria ser o mesmo. Colocar a própria saúde em risco já é o suficiente para que o Estado intervenha", observa.
 
A análise caso a caso de situações similares exige cuidado na ponderação, segundo Peña. Ele esclarece que existe diferença entre restrição e violação de direitos, embora assuma que tal entendimento ainda precisa ser mais difundido no Brasil. "Foram pesadas a vida e a liberdade de escolha e a opção feita foi pela maior relevância da primeira. Violação é quando acontece um desrespeito sem que sejam asseguradas garantias mínimas. Na sociedade moderna, cada vez mais um direito entra em rota de colisão com o outro. Pode haver restrição desde que um núcleo essencial seja mantido. A Justiça não optou por um tratamento cirúrgico que fosse de encontro à expectativa da paciente, no caso, o nascimento da criança", constata.

Para ele, a decisão foi bem embasada. "Havia uma situação demonstrada de risco à saúde, uma deficiência de conhecimento técnico e um quadro que justificava que a ponderação caminhasse no sentido da determinação judicial. São decisões difíceis, mas esta, ao meu ver, foi correta", finaliza.

O consultor jurídico da Procuradoria da OAB/RJ, Guilherme Peres, reafirma a necessidade de uma análise cautelosa dos fatos para que não se cometam injustiças. Na história de Adelir, são muitos os fatores a serem observados, segundo ele. "A vida do nascituro e da mãe tem valor, assim como a liberdade de escolha da paciente, que em princípio deve ser priorizada. Apenas em casos de extremo risco à saúde decisões deste tipo devem ser tomadas e, mesmo assim, com base em critérios técnicos", opina.

Peres faz ressalvas à forma como são produzidas as provas e reitera o objetivo de que seja preservada a vontade individual com aproveitamento máximo da Justiça. "É desejável sempre uma opinião isenta. É preciso que as considerações técnicas venham de quem não está envolvido na ação. Mesmo que informal ou rápida, dada a urgência do caso específico, um entendimento neutro deveria ter sido buscado".

A declaração vai ao encontro do que pensa Campinho, para quem a juíza deveria ter nomeado perito independente para fazer uma avaliação definitiva. "Em último caso, a juíza poderia acompanhar o cumprimento da medida in loco, conforme permite o artigo 126 da Constituição Federal", afirma.

Peres finaliza reforçando a necessidade de um estudo caso a caso em questões que envolvam conflitos de direitos ou restrição de liberdades individuais. "A lei nem sempre dá a resposta para tudo. Quando isto acontece, é preciso partir para a ponderação de princípios e de valores".

A cesariana foi realizada na madrugada de 1º de abril. Mãe e filha tiveram alta no dia seguinte e passam bem. Adelir afirmou que vai processar a instituição de saúde.
 
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