13/05/2014 - 16:57

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‘Pena não pode ser instrumento de vingança social’

13/05/2014 - 16:57

‘Pena não pode ser instrumento de vingança social’

Patrícia Nolasco
 
Um dos organizadores do manifesto de repúdio ao Projeto de Lei 236, de reforma do Código Penal, o advogado e professor da Uerj Juarez Tavares contabilizava, até o fechamento desta edição, quase 1.200 assinaturas de criminalistas, promotores, juristas, defensores públicos e magistrados em apoio às profundas críticas ao texto revisado no Senado e que seguirá à apreciação da Câmara dos Deputados.
 
Para ele e os demais signatários, o projeto é "absolutamente incompatível com os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito". Entre muitas deficiências, Juarez aponta a ideia de pena como instrumento de vingança social, "tipicamente de regimes autoritários, que pouco se importam com as pessoas humanas, mas, sim, apenas com seus projetos políticos de manutenção de poder". Ele critica, ainda, a criação de novos crimes para atender ao clamor midiático, e diz que o texto "escancara" a possibilidade de caracterizar como terrorismo os atos de movimentos sociais reivindicatórios.
 
Como um dos organizadores do manifesto, quais os pontos do texto que, na sua opinião, configuram "barbaridades" de caráter antidemocrático e significariam real retrocesso em relação à legislação penal brasileira? 
 
O projeto refeito pela Comissão Temporária do Senado é incompatível com o Estado Democrático de Direito por vários motivos. Conforme consta no próprio relatório, os articuladores do projeto acolhem a pena como "instrumento de vingança social" e, assim, a elegem como categoria prioritária da reforma. No Estado democrático, a pena deve atender a uma finalidade produtiva, como meio de reinserção social, ou como medida de proteção de direitos fundamentais. Jamais poderá ter o sentido de "vingança social". Esta ideia é tipicamente de regimes autoritários, que pouco se importam com as pessoas humanas, mas, sim, apenas com seus projetos políticos de manutenção de poder. Além disso, a pena deve ser tomada como último recurso, ou seja, só deve ser imposta quando não haja outro meio capaz de proteger os interesses fundamentais da pessoa. Ao priorizar o uso da pena, o projeto caminha na contramão da história. 

Em termos práticos, para dar execução a esse propósito, o projeto faz o seguinte: a) aumenta a pena em relação a quase todos os crimes; b) aumenta o tempo mínimo de execução para a progressão de regime de 1/6 para 1/4; c) elimina a suspensão condicional da pena e o livramento condicional; d) aumenta o prazo para declarar a ineficácia da reincidência de cinco para dez anos; e) extingue a atenuante do artigo 66 do atual Código Penal; f) extingue a causa especial de diminuição de pena para a atuação dolosamente distinta; g) restringe drasticamente a atenuante da confissão; h) incorpora a teoria extrema da culpabilidade para o tratamento do erro de proibição, abandonada na teoria jurídico-penal desde 1975; i) estende a teoria dos aparelhos organizados de poder para qualquer situação, quando, segundo seu criador na Alemanha, o professor Claus Roxin, ela só poderia ser aplicada à atuação de agentes do Estado autoritário; j) aumenta o rol dos crimes hediondos.

Especificamente em relação à política criminal de drogas, questão de grande relevância na sociedade de hoje, como o senhor analisa os dispositivos do projeto?
 
Enquanto no mundo inteiro se debate a legalização das drogas, ao menos das chamadas drogas leves, como ocorre, inclusive, em vários estados americanos, o projeto fixa a pena máxima para o tráfico em 21 anos. Igualmente, ao buscar uma solução para o uso próprio de droga, descriminaliza-o unicamente quando se tratar de uso não ostensivo, o que gera grandes problemas de interpretação.
 
Será ostensivo o uso em via pública durante o dia? Ou também durante a noite? Ou diante de adolescentes, ainda que em compartimento não aberto ao público? A grande questão ainda não foi respondida: de que forma usar droga, individualmente, sem a participação de qualquer outra pessoa, lesa a chamada saúde pública? Quando em público? A saúde pública, então, pelo projeto não é um bem jurídico substancial, é apenas um bem jurídico virtual, que deriva de ato de aparência. Mas o Direito Penal não pode trabalhar com aparências, senão com lesões substanciais. Se a norma incriminadora tem o objetivo de traçar limites à conduta individual, tem que fazê-lo em torno de efeitos concretos, e não imaginários.

O senhor vê possibilidade de apresentação de um substitutivo ao projeto na Câmara dos Deputados? Como os signatários do manifesto pretendem tentar sensibilizar os parlamentares para tentar evitar a aprovação do texto tal como está?
 
A esperança de todos os que subscreveram o manifesto é de que a Câmara, ao rever o projeto, se sensibilize e ofereça um substitutivo, abandonando, definitivamente, a ideia de usar o Direito Penal para todos os males. O poder público não pode proibir tudo, sob a ameaça de pena, porque isso conduz a um regime antidemocrático e abre as portas para o fascismo, que quer controlar todas as atividades individuais.

Para o senhor, o Legislativo preocupou-se em atender ao clamor da mídia - com aumento de penas, criação de novos crimes e a ampliação do rol de crimes hediondos, por exemplo - sem atentar realmente à atualização do ordenamento jurídico na área penal?

O projeto cria novos delitos, alguns completamente desnecessários, como a exploração de jogos de azar, e ainda claudica na descrição das respectivas condutas. Ao criminalizar o terrorismo, por exemplo, não só adere ao clamor midiático, sob influência externa, como usa uma cláusula genérica para defini-lo - "causar terror na população". Ou seja, define o crime a partir de seu próprio nome.
 
Igualmente, prevê entre suas possíveis formas de cometimento a invasão de prédios públicos ou privados. Com isso, embora diga que os movimentos sociais reivindicatórios não se enquadrem no conceito de organização terrorista quando atuarem adequadamente conforme seus objetivos, escancara a possibilidade de caracterizar seus atos como terrorismo. Quando da edição do Estatuto de Roma, que definiu os crimes de genocídio, contra a humanidade e outros, aí não foi incluído o terrorismo, porque os juristas que o confeccionaram não chegaram a um acordo quanto à sua tipificação. Como o Brasil pretende legislar para a humanidade, aqui o projeto chegou a um acordo de que "terrorismo é causar terror".
 
Versão online da Tribuna do Advogado. 

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