17/03/2014 - 16:58

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O reconhecim ento, ainda raro, de um direito

17/03/2014 - 16:58

O reconhecim ento, ainda raro, de um direito

EVANDRO SOUZA E LIMA*

No final do ano passado, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reconheceu o direito de três irmãos terem duas mães – uma biológica e outra socioafetiva – em seus registros de nascimento, alterando-se os respectivos documentos públicos, para deles constarem os nomes do pai e das duas mães. A decisão, da lavra da juíza Maria Aglaé Tedesco Vilardo, titular da 15ª Vara de Família da Capital, constitui importante precedente para a percepção de que o fenômeno fático-social da multiparentalidade é também uma realidade jurídica merecedora de tutela jurisdicional.

Pouco após o prematuro falecimento da mãe biológica, os filhos pequenos passaram a ser criados pela madrasta. Agora adultos, postularam o reconhecimento dessa maternidade socioafetiva e, consequentemente, que o nome da mulher que os criou também figurasse em seus registros de nascimento, sem exclusão do nome da genitora. Não se trata de substituir a genitora pela mãe socioafetiva, como ocorreria na adoção, e sim da inclusão de ambos os nomes, diante dos fortes vínculos criados entre as partes e da necessidade de preservação da memória da mãe biológica. Como bem salientou a magistrada, o caso é um exemplo clássico de família por laços afetivos.

Embora hodiernamente a muitos pareça intuitiva e lógica a solução judicial dada ao caso (acolhimento do pedido), fato é que situações como essa ainda são raras e incomuns no Judiciário brasileiro, seja por um excessivo apego a tradições culturais, fundadas no modelo matrimonializado, patriarcal e patrimonializado de família, seja em razão do vácuo legislativo no assunto. A Lei de Registros Públicos não cuidou de situações como essa, referindo-se unicamente às figuras de pai e mãe (biológicos), refletindo, pois, aquela concepção naturalística de família, vigente à época. Bem verdade que não se manteve imune às transformações sociais e jurídicas ocorridas especialmente com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e, assim, em 1999, passou a autorizar que o enteado ou enteada incluísse o nome de família de seu padrasto ou madrasta, desde que com a concordância deste/a e sem prejuízo dos apelidos de família (artigo 57, §6º). Indubitavelmente, o legislador reconheceu a possibilidade de o convívio poder gerar fortes vínculos afetivos, mesmo na inexistência de liame biológico. É o reconhecimento da família socioafetiva.

Atualmente, a dogmática familiarista assenta-se na centralidade e jusfundamentalidade dos valores consagrados em nossa Constituição da República, tais como dignidade humana, democracia, pluralismo, liberdade, igualdade, solidariedade, justiça, segurança, bem-estar e convivência familiar, dentre outros. Tal visão provocou profundas transformações no Direito de Família, cujos institutos foram revisitados à luz dessa normatividade principiológica, abandonando-se a feição tradicional de outrora, surgindo novos modelos de família, fundados, como salienta Maria Berenice Dias, nos pilares da personalização, da afetividade, da pluralidade e do eudemonismo.

Apreciando a questão com extrema sensibilidade e apuro técnico, a magistrada julgou a causa sob o enfoque axiológico dos preceitos jurídico-constitucionais aplicáveis e dos princípios éticos da autonomia, da não maleficência, da beneficência e da justiça, desenvolvidos pela filosofia para a ética biomédica. No ponto, merece destaque o fato de a magistrada ter considerado o princípio da não maleficência (dever de não lesar ninguém) como um direito fundamental encartado no inciso III do art. 5º da Constituição e que, diante disso, o reconhecimento de dupla maternidade não prejudica ninguém: não há risco social, porque a própria sociedade criou novas formas de relacionamento; e não há lesão para as partes, porque fruto da vontade delas mesmas.

Nada obstante, vale o registro das percucientes observações constantes da douta sentença, no sentido de que a solução jurisdicional dependerá da situação fática concreta e suas peculiaridades, não significando que sempre serão reconhecidas duas mães ou dois pais quando falecidos uma ou outro; o fundamental é verificar a efetiva participação na função parental e a intensidade do vínculo afetivo.
 
Outrossim, não será o caso de se permitir tantos pais e mães quanto as partes queiram ver reconhecidos: cada indivíduo exerce um determinado papel nas relações e este papel-função deverá ser analisado particularmente e conforme as leis vigentes.
 
*Advogado, membro do Tribunal de Ética da OAB/RJ e do IBDFam

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