17/03/2014 - 16:50

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Um golpe para não se esquecer

17/03/2014 - 16:50

Um golpe para não se esquecer

MARCUS VINICIUS CORDEIRO

O golpe militar de abril de 1964 completa 50 anos. Momento emblemático da vida nacional, que tantos sofrimentos impôs à nação e a milhares de brasileiros, a despeito de motivar incansáveis debates acadêmicos, ainda hoje carece de avaliação mais profunda das razões do seu desenrolar, das forças que o apoiaram, dos interesses que pretendeu preservar. Questões pontuais, certamente, mas que, mesmo não encerrando a gama de possibilidades analíticas derivadas do evento, fariam avançar a compreensão daquele passado cuja relevância, lembrando as sábias palavras do historiador Eric Hobsbawn, “controla o presente às ocultas”.

Sobre o golpe, em si, muito se sabe, se divulgou e ainda se divulga. A movimentação organizada de trabalhadores, contingentes das Forças Armadas tendentes a uma organização hierárquica mais democrática e um governo notoriamente comprometido com as demandas das massas historicamente excluídas da vida política brasileira podem ser citados como elementos detonadores da oposição que o tramou. As elites brasileiras, forjadas no autoritarismo e na exclusão, não permitiriam que reformas do Estado destinadas ao atendimento dos interesses populares fossem levadas a cabo. Nos tempos da Guerra Fria, qualquer mudança estrutural na América Latina tinha sabor de cubanização. Não sem razão, a armada americana estaria pronta a intervir, dando corpo à hoje já revelada Operação Brother Sam.             
Dadas as condições conflituosas dos idos de 1964, marcadas pelo antagonismo de vontades dos agentes políticos, emergiu a ruptura com o Estado democrático encarnado pelas instituições e pelo presidente João Goulart. Aí entram em cena os militares, instrumento de uma classe social – as elites e a classe média brasileira, assustadas com as reformas pretendidas e a força do movimento popular – para a realização do desígnio de manter a ordem, impedir as mudanças e banir os agitadores – comunistas e demais forças de esquerda – da vida política. Nessa toada, a nação estaria salva do perigo vermelho e o progresso poderia acontecer sem sobressalto para os eternos senhores do país.
 
Um dado histórico, contudo, pouco foi enfrentado desde então: a efetiva participação da sociedade civil no apoio e sustentação do golpe, auferindo os resultados benéficos – para esta parcela – de suas consequências. Durante certo tempo, havia a clara impressão de que os militares, contra tudo e todos, teriam usurpado o Estado e nele se incrustado como mandatários de si mesmos para tocar os seus projetos. Pouca importância se deu ao comprometimento civil na preparação e execução do golpe, decerto pela conveniência dos que pretendiam alhear-se daquela ruptura violenta do regime democrático. Em verdade, no entanto, a aparição das Forças Armadas se fez como na expressão Deus ex machina, surgindo para desemaranhar uma trama. E não seria nenhuma novidade sua participação política na vida nacional, presente desde a proclamação da República, passando pela Revolução de 1930, pelas tramas para derrubar Getúlio Vargas, os ensaios golpistas contra Juscelino Kubitschek e tantas outras passagens.

Hoje, felizmente para o resgate histórico, já há a tendência de se fixar a aliança civil-militar como fio condutor do golpe de 1964. Nesse contexto, pode-se tratar abertamente do amparo que o movimento recebeu de figuras que, mais tarde, rebelaram-se contra o autoritarismo e até tiveram preeminência na luta pelo restabelecimento da democracia. JK, Ulysses Guimarães, Carlos Lacerda, a Igreja católica, vastos setores da mídia e muitos outros líderes civis, pertencentes à classe média e às elites, em coerência classista aplaudiram o golpe justamente porque foi praticado por um segmento que a esta classe se subordinava e cuja intenção era barrar as reformas que a contrariavam.
 
A complexidade do fato histórico reclama estudos e mais estudos, para que cada passo verificado a partir de abril de 1964 seja compreendido com rigor e transparência. É certo que os desígnios iniciais – a bandeira dos golpistas era combater a corrupção e defender a democracia – foram dialeticamente se desmascarando. Da mesma forma, as forças inicialmente envolvidas, civis e militares, foram sendo substituídas conforme o projeto econômico/político se ajustava às novas propostas e circunstâncias.
 
Nessa correlação de forças, medida entre o poder e a sociedade, inicia-se um processo de enfrentamento que leva o regime a se desviar do autoritarismo apenas – histórico na política brasileira – para uma compleição fascistizante. Chega-se a 1968 com o evidente embate entre as forças vencidas de 1964, acrescidas de uma juventude inspirada por acontecimentos mundiais de lutas libertárias de vários matizes, e o regime. Instala-se o terror do AI-5 e dos porões. Supressão das liberdades, prisões, torturas, mortes e desaparecimentos, eis o saldo macabro. As marcas, como nos traumas individuais, estão até hoje visíveis no corpo e na alma da nação.
 
Há uma lição a ser tomada. O golpe civil-militar de 1964 não foi uma invenção extraordinária das Forças Armadas. Importa que o debate em torno do tema não cesse nunca, com a compreensão da existência dessa aliança civil-militar para impor ao Brasil um regime perverso. As últimas investigações da Comissão Nacional da Verdade nos revelam também a aliança financeira de grupos civis, inclusive empresas, com segmentos terroristas das Forças Armadas que operaram DOI-Codis, Cenimar, Cisa e outros centros de tortura. Muito ainda está por surgir, jogando mais luzes sobre a história.

Avancemos, portanto, na pesquisa, façamos debates em nossas entidades – a OAB, no particular, tem muito a contribuir –, levemos aos jovens os fatos e as suas múltiplas possibilidades de interpretação. É uma das formas de não se permitir que o passado, como prevenia Hobsbawm, seja inventado, controlado pelo presente, e que a história não seja alterada “para servir aos interesses de alguns poucos grupos”. 
 
* Secretário-geral da OAB/RJ

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