19/07/2018 - 16:02

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Pequena presença de mulheres na Justiça Militar não é casual, diz ministra - Maria Elizabeth Rocha – ministra do Superior Trib unal Militar

19/07/2018 - 16:02

Pequena presença de mulheres na Justiça Militar não é casual, diz ministra - Maria Elizabeth Rocha – ministra do Superior Trib unal Militar

Aos mais de 200 anos de existência, a Justiça Militar resiste à presença de mais juízas na composição da instância superior. Maria Elizabeth Rocha, oriunda da advocacia, continua a ser a única mulher a integrar e a ter presidido o Superior Tribunal Militar. Constitucionalista, conhecida por suas posições garantistas, a ministra é também firme combatente na luta pela igualdade de gêneros e crítica da “invisibilidade jurídica que ainda permeia as violações aos direitos das mulheres”. Nesta entrevista à TRIBUNA, ela opina ainda sobre a competência do Judiciário castrense para julgar militares por crimes contra a vida de civis, e a defende.
 
PATRÍCIA NOLASCO
 
Estão sendo questionados no STF (ADI 5901) dispositivos do Código Penal Militar, inseridos pela Lei 13.491/2017, atribuindo à Justiça castrense a competência para julgar crimes contra a vida de civis cometidos por integrantes das Forças Armadas. Qual é a sua opinião sobre a questão?

Maria Elizabeth Rocha –
A Emenda Constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004, modificou os parágrafos 3º, 4º e 5º do art. 125 da Lei Fundamental para estatuir que o julgamento de crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis seria da competência do Júri. Ao instituí-la, ela não materializou uma nova justiça especializada, apenas deu amplitude ao disposto no inciso XXXVIII, alínea “d”, do art. 5º dela própria, que determina a formação do tribunal popular para o julgamento dos crimes dolosos contra vida, seja na Justiça ordinária, seja na Federal comum ou especializada.

Nesse sentido, estou convicta de que a competência da JMU [Justiça Militar da União] para processar e julgar delitos deste jaez atende com perfeição aos princípios do juiz natural e do Estado democrático de Direito, posto decorrer diretamente de matriz constitucional que adotou o critério ratione legis. Dito isso e diante das alterações promovidas pela Lei 13.491/2017, entendo ser necessária dar-se interpretação conforme a Constituição ao disposto no § 2º do art. 9º do CPM, de modo a instituir o Tribunal do Júri, hoje inexistente, sob a égide da Justiça Federal castrense.

Efetivamente, ao prever o § 1º do art. 9º do Código Penal Militar que os crimes dolosos contra a vida serão da competência do júri e, no parágrafo seguinte, excetuá-los se cometidos no contexto das atribuições estabelecidas pelo presidente da República ou pelo ministro da Defesa em ação que envolva e segurança de instituição militar ou missão militar, bem como em atividades de natureza militar, operação de paz, garantia da lei e da ordem ou atribuição subsidiária, previu a norma uma aparente dicotomia entre o júri e a Justiça Militar da União.

Inolvidável o júri configurar-se numa garantia magna que reforça a noção de justiça participativa. Releve-se que, em momento algum, a Carta Política o alçou à categoria de Justiça especializada, sequer o inseriu no interior da organização judiciária estadual ou federal. Tão somente previu dever seu disciplinamento ser estabelecido em lei. Partindo desse pressuposto, o Decreto-lei 253, de 28 de fevereiro de 1967, que autorizou a sua formação na Justiça Federal ordinária, é a trilha na qual deveria seguir a Justiça criminal castrense, também da alçada da União.

Críticos da lei apontam para problemas processuais e de julgamento no caso, por exemplo, de um mesmo crime envolver agentes públicos do Exército e da Polícia Militar. Um seria julgado pelo Judiciário especializado e outro pelo Tribunal do Júri? Como a senhora avalia o risco de duas justiças para o mesmo caso?

Maria Elizabeth Rocha –
Sem dúvida é complicado! Por isso, penso que o processamento da ação penal militar nos homicídios dolosos deverá, obrigatoriamente, adequar-se aos ritos próprios do tribunal popular para a promoção da isonomia jurídica. Do contrário, carecerá competência à Justiça criminal especializada para julgá-los.

Perpetrado tal delito, há de se observarem os ritos e procedimentos do Código de Processo Penal comum, pelo que o juiz-auditor teria a opção de pronunciar, impronunciar, desclassificar e absolver sumariamente. Em caso de pronúncia, haveria a instalação do júri e a convocação de cidadãos para o Conselho de Sentença.

Mas, para tanto, é indispensável a alteração do Código de Processo Penal Militar com vistas a incluir por meio de lei ordinária um capítulo que versasse sobre o tema ou, como disse anteriormente, impor o STM ou o próprio STF a incidência da técnica da interpretação conforme à Constituição. Se tal não ocorrer, flagrante será a inconstitucionalidade.

Única mulher a ocupar uma cadeira de ministra em mais de 200 anos da Justiça Militar, a senhora tem dito que a luta contra a discriminação de gênero deve ser permanente. Há resistência para que sejam indicadas mais mulheres para a corte?

Maria Elizabeth Rocha – Efetivamente existem resistências. E elas pioram pelo fato de as Forças Armadas serem integradas predominantemente por homens. Como a participação feminina na Marinha, Exército e Aeronáutica ainda é diminuta, inexistindo, na atualidade, oficiais-generais do último posto e patente do sexo feminino a preencherem os requisitos constitucionais para ascenderem ao Superior Tribunal Militar, parece natural o pequeno grau de sua representatividade.

Tal raciocínio, todavia, encobre o fato de que dos 15 ministros, 10 provêm das carreiras militares, mas cinco são civis, sendo um da magistratura, um do Ministério Público Militar e três da advocacia, todos indicados por livre escolha do presidente da República e aprovados pelo Senado Federal. A despeito de a presença feminina ser ascendente e significativa nas carreiras jurídicas, somente em 2007, passados 200 anos de existência do STM, fui nomeada como a primeira mulher a ter assento na corte. E continuo sendo a única, após 11 anos. Não é casual!

Um dos reflexos dessa desigualdade na representação feminina seria também o não questionamento, perante o STF, da Lei 9713/98, que prevê apenas 10% das vagas para mulheres em concursos militares?

Maria Elizabeth Rocha – Certamente. Em pleno Século 21, a simples existência de uma lei como essa demonstra o quão longe se está de atingir a tão almejada isonomia entre os sexos. Segundo a legislação anterior, havia distinção de quadros femininos e masculinos. O feminino sempre foi menor e não autorizava que as mulheres alcançassem os mesmos postos que os homens sob o argumento de as atribuições serem diferentes. A Lei 9.713/98 veio para unificá-los e findar o tratamento restritivo, e contudo fez o oposto, estabelecendo uma política discriminatória de gênero ao limitar o número de policiais do sexo feminino a apenas 10% do efetivo. Seria de se pensar que um dispositivo legal, tão absurdamente contrário às políticas afirmativas e ao próprio texto magno fora, de pronto, questionado perante o Supremo. Porém, tal não ocorreu, mesmo depois de 20 anos da promulgação da norma, o que revela a invisibilidade jurídica que ainda permeia as violações aos direitos das mulheres.

No que diz respeito à violência doméstica e aos crimes sexuais contra mulheres, uma cidadã militar tem as mesmas proteções legais que uma cidadã civil?

Maria Elizabeth Rocha – Até o advento da Lei 11.3410/2017, com certeza não tinha. Já agora, resta-me acreditar que o STM adequará a sua jurisprudência para defender os direitos femininos vulnerados. Digo isto porque a farda não resguarda a mulher militar das agressões de seus maridos, companheiros e familiares, também militares, e única hipótese de configuração de crime castrense, perpetradas no recinto do lar, uma vez que se cometidas no ambiente de trabalho, a situação legal se diferencia e a hierarquia e disciplina emergem como o bem jurídico tutelado.

Por essa razão, defendi que o fato de integrarem o Exército, a Marinha ou a Aeronáutica não impedia que mulheres militares vitimizadas fossem albergadas pela Lei Maria da Penha, pelo que declinava o foro para a Justiça comum. Sempre fui vencida em meu posicionamento.

Felizmente, com a promulgação da Lei 13.104/2015, creio ser possível sua incidência, como a do feminicídio, no foro especializado. Posiciono-me dessa maneira porque entendimento diverso feriria de morte o princípio da isonomia, a ocasionar distinções ilegítimas entre a mulher civil e a militar, esta última reduzida à condição de cidadã de segunda categoria.

A senhora tem dito que o CPPM precisa ser atualizado, mas o Congresso não tem se ocupado dessa legislação. Quais são as necessidades mais urgentes?

Maria Elizabeth Rocha – Como pontuei, a Lei 13.491/2017 passou a prever serem delitos militares não só os praticados nas situações ali descritas, mas também os dispostos na legislação penal como um todo. Dessa forma, diversos crimes, inclusive os contidos em normas extravagantes e não tipificados no CPPM, poderão ser processados perante o foro especializado. Nesse contexto, as urgências de atualização do Codex transmudaram-se. Hoje, a premência é compatibilizar e ponderar antinomias entre os dispositivos legais para não ocasionar interpretações díspares e conflitantes por parte dos juristas e magistrados.

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