19/07/2018 - 16:37

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Todos contra o ‘mero aborrecimento’

19/07/2018 - 16:37

Todos contra o ‘mero aborrecimento’

Pedido da Seccional de cancelamento da Súmula 75 do TJ e projetos de lei reforçam luta contra indenizações irrisórias

VITOR FRAGA
Em mais uma frente de luta para enfrentar a prática judicial do “mero aborrecimento”, a OAB/RJ, através da Procuradoria-Geral, protocolou em junho um requerimento de procedimento de cancelamento da Súmula 75 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ). A orientação da corte determina que “o simples descumprimento de dever legal ou contratual, por caracterizar mero aborrecimento, em princípio, não configura dano moral, salvo se da infração advém circunstância que atenta contra a dignidade da parte”.
 
Editada em 2005, a súmula tem sido usada para que Juizados Especiais Cíveis (JECs) e mesmo algumas varas comuns decidam que consumidores lesados por empresas ou concessionárias recebam como reparação valores cada vez menores, sob a alegação de que o caso se configuraria apenas mero aborrecimento sofrido – colocando o Rio de Janeiro no primeiro lugar entre os estados que mais possuem sentenças baseadas nesse argumento, e com as indenizações mais baixas.
 
No pedido de cancelamento da súmula, a OAB/RJ baseia-se na Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, juntando precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e também a dissidência jurisprudencial do Rio de Janeiro. Segundo a teoria, o tempo gasto pelo cidadão para a solução de problemas gerados por maus fornecedores é passível de indenização. “Assim, nas relações de consumo, não faz o menor sentido que o consumidor perca seu tempo – já escasso – para tentar resolver problemas decorrentes dos bens concebidos exatamente com o objetivo de lhe poupar tempo”, diz o texto, citando decisões de ministros do STJ que levam em conta a teoria. A intenção é proteger o reclamante e inibir abusos das empresas prestadoras de serviço. “A Súmula 75 do TJ/RJ faz com que se beneficiem apenas aqueles que praticam o dano, o que acaba por resultar no fato de que a conduta lesiva ainda compense financeiramente e reafirme a situação histórica de desigualdade. Ao não estabelecer uma função verdadeiramente punitiva nas indenizações pelos danos causados, ocorre, na realidade, o favorecimento da prática da conduta lesiva e a desvalorização da dignidade”, critica a entidade no documento. 

O tesoureiro e presidente da Comissão de Prerrogativas da Seccional, Luciano Bandeira, defende que é preciso somar esforços na luta contra o “mero aborrecimento”, e esclarece que a OAB/RJ tem atuado tanto através de ações práticas quanto promovendo o debate sobre o tema junto à opinião pública. “A missão da Ordem é criar uma cultura de afastamento do ‘mero aborrecimento’ no Judiciário e também tomar atitudes práticas, como o procedimento para cancelamento da Súmula 75. Vamos trabalhar para derrubá-la”, garante.
 
Segundo Luciano, o objetivo é “incentivar a sociedade para que demande uma alteração legislativa que possa preservar esse direito fundamental do consumidor”, ou seja, ter uma compensação por danos causados. “Atuaremos em duas frentes, uma produzindo fatos concretos e outra alimentando um consenso para que o Judiciário tenha a percepção da necessidade da aplicação dessa tese. Isso não afasta, por outro lado, iniciativas legislativas que contribuam para o mesmo fim”, diz.

Existem seis proposições em tramitação na Câmara dos Deputados que tratam da matéria, cinco delas apensadas ao Projeto de Lei (PL) 3.880/2012, do deputado Domingos Neto (PSB/CE), que determina que “comete ato ilícito aquele que cause dano material ou social a outrem” e estabelece que “o juiz pode aumentar a indenização por dano com o intuito de atingir a função punitiva e pedagógica”. No entanto, além desses seis, outros oito estão apensados ao PL 699/2011, do deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB/SP), que propõe atualizar mais de 100 artigos do Código Civil (Lei 10.406/02), em praticamente todos os temas: pessoas, obrigações, contratos, sucessões, empresas e família, entre outros.

Com projetos que abordam um universo tão amplo de assuntos sendo debatidos em conjunto, o autor do PL 9.574/2018 (um dos apensados ao 3.880/12), o deputado federal Wadih Damous (PT/RJ), ex-presidente da OAB/RJ, vai tentar destacar as matérias “para fazer o debate sobre ‘mero aborrecimento’ em separado”, e com isso também tentar acelerar a tramitação. “Existem milhares de reclamações de consumidores e advogados em relação ao expediente que juizados especiais passaram a adotar de uns tempos para cá, não reconhecendo como dano moral uma série de ilicitudes, quebras de contrato e má prestação de serviços por parte de grandes empresas”, aponta. E relata um caso pessoal. “Tive uma linha de telefone celular clonada e pedi para a operadora bloqueá- la, já que algumas pessoas receberam mensagens, como se fossem minhas, solicitando dinheiro. Não bloquearam, liguei diversas vezes, enquanto centenas de pessoas da minha agenda recebiam pedidos desse tipo. Algumas, inclusive, acreditaram. Se ajuizar uma ação hoje, com toda certeza isso será considerado um ‘mero aborrecimento’”, critica o parlamentar.

A proposta de Wadih determina que “o ato ilícito gera dever de indenizar ainda que não cause dano material, à personalidade (dano moral) ou à imagem”. Ou seja, o “mero aborrecimento” também seria indenizável. “Se o juiz reconhecer por parte da empresa uma quebra de contrato ou má prestação de serviço, não considerando dano moral e sim um ‘mero aborrecimento’, de qualquer jeito ele terá que fixar uma indenização. Pode até dizer que não houve dano moral, mas terá que indenizar. Os próprios juízes criaram essa tipificação de ‘mero aborrecimento’, sem sanção. Os juizados especiais passaram a proteger as empresas. Eles não devem estar a serviço de ninguém, devem apenas cumprir o Código de Defesa do Consumidor”, destaca. Para ele, a Súmula 75 é inconstitucional, pois “está regulando matéria federal”, além de agir para proteger as empresas. “Isso é invasão de competência, porque o TJ acaba legislando e regulando matéria federal, que diz respeito ao Código Civil e ao Código de Defesa do Consumidor. A situação do Rio de Janeiro é emblemática, praticamente todas as ações recebem como sentença o ‘mero aborrecimento”’.

Diante desse cenário, o resultado é que empresas acabam recebendo estímulo para continuar causando danos, enquanto consumidores, por sua vez, parecem cada vez mais desestimulados a buscar ressarcimento. Dados disponíveis no portal do TJ apontam que, nos últimos cinco anos, a lista das 30 empresas mais acionadas por danos ao consumidor permanece sem alterações. Concessionárias de energia e de telefonia e bancos ocupam as primeiras posições entre as empresas mais processadas nos JECs fluminenses, seguidas de empresas de vendas a varejo, TV por assinatura, comércio eletrônico, planos de saúde e companhias aéreas. No período de 2015 a 2017, houve queda tanto no número de processos que pleiteiam dano moral que deram entrada nos juizados especiais (41%) quanto na quantidade de sentenças dessa natureza (38%), segundo dados do TJ.

Luciano questiona o argumento de que existiria excesso de ações por parte dos consumidores e pondera que não há como diminuir seu volume se os serviços continuam ruins. Um suposto desinteresse de setores da Justiça local nos JECs porque o TJ não recolhe receita desses tribunais não se justifica, já que o Poder Judiciário é um prestador de serviços, diz. “No fim, sai mais barato para o jurídico das empresas, elas sabem que não serão punidas. Isso não é bom para a Justiça, para os advogados e, principalmente, para a população”, alerta. 
 
Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor 
A ideia de que é preciso defender o consumidor desse desvio em seu tempo produtivo, dentro de um “caldeirão de mudanças na sociedade”, reforçaria a percepção de que o cidadão tem cada vez mais o seu tempo desprezado. Essa é a opinião do secretário-geral da Comissão de Defesa do Consumidor (CDC) da Seccional, Bruno de Almeida, que já atuou pessoalmente em diversos casos na área, inclusive defendendo empresas. “Para além da questão do consumo, há um certo descaso com o tempo de vida das pessoas. O próprio Estado não se preocupa com isso. O tempo que não volta é desvio produtivo, mesmo que não do consumidor. As empresas replicam essa lógica do Estado de não valorizar o tempo de vida”, pondera.
O “mero aborrecimento”, por sua vez, não teria origem no Direito do Consumidor, sendo matéria já enfrentada no Direito Civil. “Os civilistas, antes de qualquer discussão no Direito do Consumidor, já tinham dito que o ‘mero aborrecimento’ não dá ensejo à reparação moral, para não deixar que todo desconforto havido na sociedade se traduza em ação por tal motivo. Há um entendimento, defendido por Sergio Cavalieri e outros juristas, de que na vida cotidiana existem desconfortos naturais, que não podem ser alçados a fato gerador de dano moral. Se não, a vida em sociedade se tornaria um inferno. O problema é transportar esse entendimento para as relações de consumo, generalizando o ‘mero aborrecimento’ como uma justificativa para passar por cima do pedido de dano moral”, aponta Almeida.

O autor da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, professor Marcos Dessaune, lembra que até 2011, quando lançou o livro com o mesmo nome, a jurisprudência nacional “afirmava praticamente em uníssono que os percalços enfrentados pelo consumidor, para tentar resolver problemas de consumo antijurídicos aos quais ele não deu causa, não eram suficientemente intensos e duradouros para romper o equilíbrio psicológico do consumidor e assim ocasionar dano moral indenizável”. Seriam, na visão tradicional, os meros dissabores normais na vida de alguém.

Pela teoria, o cidadão, ao desperdiçar o seu tempo vital e se desviar das suas atividades existenciais (trabalho, estudo, descanso, lazer, convívio social etc.) para tentar resolver problemas de consumo, “sofre necessariamente um dano extrapatrimonial de natureza existencial, que é indenizável in re ipsa” (isto é, em si próprio). O tempo vital teria “valor inestimável”, por ser “um bem econômico escasso que não pode ser acumulado nem recuperado ao longo da vida”. Isso não quer dizer que, nos eventos de desvio produtivo, o consumidor também não possa sofrer danos materiais. 

“De 2012 a 2017, o número de tribunais estaduais aplicando expressamente a Teoria do Desvio Produtivo saiu de zero para 14, enquanto o número de acórdãos (provenientes de câmaras cíveis e turmas recursais) foi de zero para 852. Em março de 2018 repeti a mesma pesquisa, que revelou que 20 tribunais estaduais e 1.785 acórdãos já estavam utilizando expressamente a teoria, o que representa um crescimento jurisprudencial de 109,5% durante o último período de 13 meses pesquisado”, lista Dessaune. Recentemente, o STJ sinalizou a aplicação em três casos, dois provenientes de São Paulo e um do Rio de Janeiro.

Segundo o secretário-geral da CDC, qualquer produto ou serviço tem que atender a expectativa a que se propõe, e o consumidor “não tem que ficar ligando milhares de vezes para o fornecedor para aprender como algo funciona, ou para que funcione adequadamente”. O fornecedor, por lei, tem que estar preparado para atender ao mercado de consumo, que não seria “composto apenas por consumidores letrados e especialistas naquela área”, mas também “por pessoas analfabetas, pessoas idosas com dificuldade de lidar com tecnologia, crianças que não têm malícia para presumir possíveis vícios”. O consumidor, afirma Almeida, “não tem que saber nada de antemão”. 

Ele acredita que, assim como “escritórios de advocacia criaram blocos de argumentação sobre fatos específicos para enfrentar determinadas ações”, os juízes “criaram blocos de argumentação para julgar”, utilizando o “mero aborrecimento” de forma sistemática. Em relação às empresas, o advogado explica que as estruturas das maiores delas “são muito fragmentadas, sem gente suficiente para atender demandas, ou com sistemas não desenvolvidos o suficiente para tal”.

A jurisprudência do “mero aborrecimento” enfatiza “as consequências emocionais da lesão, pois aborrecimento é um sentimento qualificado por mero, que significa simples, sugerindo, portanto, que o bem ou interesse jurídico lesado, nos eventos de desvio produtivo seria a integridade psicofísica da pessoa consumidora, atingida de maneira leve ou superficial”, pontua Dessaune. O conceito de dano moral, na atualidade, deixaria de enfocar as consequências emocionais (dor, sofrimento, humilhação, vexame, angústia etc.) da lesão para centrar-se no “bem ou interesse jurídico atingido”, no caso, um atributo da personalidade.
“Quando os chamados direitos da personalidade são violados, como a vida, a honra, a intimidade, a integridade física, cabe dano moral. Isso está ligado ao princípio da dignidade do homem. Fora disso não há reparação, não há que se falar em reparação por qualquer bobagem. Se eu bater no seu carro, sem maiores consequências, existe um dano material no veículo, mas não existe nenhum dano moral no caso, nenhum direito da personalidade foi violado. Se a pessoa sofre lesão corporal, por exemplo, a situação muda”, defende o titular da 20ª Câmara Cível do TJ, Alcides da Fonseca Neto, revelando que dentro do próprio Judiciário fluminense há divergências sobre a questão.

Ele utiliza em suas sentenças outro método, chamado “critério bifásico de arbitramento”, que considera bastante técnico. “Aqui no Rio de Janeiro, assim como eu, alguns desembargadores seguem o sistema criado pelo ministro do STJ Paulo de Tarso Sanseverino em 2011. Dá mais trabalho, mas é mais justo, e principalmente me parece muito bom para as partes, por ser muito objetivo e bem fundamentado, permitindo um controle por parte dos advogados sobre meu processo de arbitramento. O advogado vê claramente porque estou arbitrando dessa ou daquela maneira, o que facilita o recurso. Não é algo subjetivo como ‘impedir o enriquecimento sem causa’, usado por muitos magistrados”, critica. Ao final, o arbitramento é “objetivo e minucioso”, e o advogado pode exercer um controle melhor sobre o processo. “Uso desde outubro do ano passado, os advogados estão adorando. Podem não concordar com a minha decisão, mas sabem que é mais fácil para eles recorrerem”. 

Para Fonseca, o termo “mero aborrecimento” não existe. “Não incluo essa excrescência em nenhum dos meus votos. A expressão foi cunhada na Súmula 75 do TJ, que é equivocada do ponto de vista jurídico porque parte da ideia de que existe uma relação direta entre dano moral e uma lesão subjetiva. Ou seja, quando não existe uma grande dor ou angústia, entre outras, existe o mero aborrecimento. Nenhum país sério faz essa associação. Pode existir essa consequência, mas ela não é um requisito”. O desembargador reitera que “o ‘mero aborrecimento” não está contemplado na lei. “Não está na Constituição, no Código Civil, no Direito das Obrigações, não está em lugar nenhum, salvo nessa súmula horrorosa. Acredito que nós mesmos iremos revogá-la, pois prejudica o cidadão”.

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