03/08/2018 - 21:00

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'As remoções injustificadas causam uma espécie de morte em vida'

03/08/2018 - 21:00

'As remoções injustificadas causam uma espécie de morte em vida'

'As remoções injustificadas causam uma espécie de morte em vida'

 

Integrante do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública, que presta assistência jurídica a cerca de 150 comunidades, Alexandre Mendes é um ferrenho crítico das remoções promovidas pela Prefeitura do Rio nos últimos anos. Segundo ele, a medida está em desacordo com a lei. "Além de não concretizar o plano de prevenção elaborado com recursos do Ministério das Cidades, que valoriza as obras de contenção de encostas e estabilização do solo, a atual gestão passou a priorizar o reassentamento generalizado, que é medida drástica e excepcional segundo a legislação", afirma o defensor.

 

Na entrevista que segue, ele comenta o assunto e analisa as intervenções do Estado, em geral qualificadas como "projetos de modernização", no direito à moradia. "As remoções injustificadas são uma espécie de deportação, uma morte em vida", resume Alexandre.

 

 

Marcelo Moutinho 

 

A Defensoria tem questionado os remanejamentos promovidos pela Prefeitura do Rio desde 2008, e que se intensificaram desde os temporais de março. Por quê?

 

A atuação do Núcleo de Terras e Habitação está pautada na legislação interna e internacional referente aos direitos humanos e, em particular, aos direitos da cidade. Nessa linha, conferimos especial atenção a três diretrizes de política urbana: a proibição das remoções forçadas, a regularização fundiária e a urbanização dos assentamentos precários. Uma série de direitos relacionados a essas diretrizes foram conquistados a partir da ampla mobilização democrática que remonta aos anos 1980. Não por acaso, em 1989, esses direitos já estavam presentes nas constituições Federal e Estadual, e na Lei Orgânica Municipal, e a Defensoria, neste mesmo ano, criava o Núcleo de Terras e Habitação. Infelizmente, a atuação da Prefeitura do Rio está em desacordo com toda a legislação formulada nesse contexto e aprofundada nos anos seguintes. Para realizar um remanejamento é preciso, de acordo com a lei, garantir um laudo técnico que demonstre o risco à vida dos moradores, a participação da comunidade e um reassentamento em local próximo. Já no primeiro requisito a Prefeitura se equivoca. Além de não concretizar o plano de prevenção elaborado com recursos do Ministério da Cidade, que valoriza criteriosamente as obras de contenção de encostas e estabilização do solo, a atual gestão passou a priorizar o reassentamento generalizado, que é medida drástica e excepcional segundo a legislação.

 

 

E quanto aos laudos, que também têm recebido críticas?

 

Ao invés de apresentar laudos detalhados, a Geo-Rio tem elaborado laudos perigosamente genéricos, abandonando o critério da especialização. Hoje, comunidades inteiras podem ser forçadamente removidas em razão desta mudança de metodologia. É um retrocesso incrível, que tem alarmado as comunidades pobres e os profissionais que trabalham com política urbana. E quando visitamos as comunidades ameaçadas com a remoção fica evidente que os deslizamentos ocorreram por omissão do poder público, sobretudo pela não finalização das obras de prevenção. Nos locais onde ocorreu intervenção qualificada do Poder Público não houve mortes. 

 

 

O senhor afirma que aqueles que são vítimas da remoção sofrem uma espécie de "morte em vida". Por quê?

 

Ao contrário da urbanização, que valoriza o bem-estar dos moradores, a remoção forçada rompe com as relações sociais e territoriais que dão significado à vida, como, por exemplo, o contato com equipamentos de lazer, escolas, serviços urbanos, trabalho, transporte, postos de saúde, familiares, vizinhos, uma bela paisagem etc. Nesse sentido, as remoções injustificadas são uma espécie de deportação, uma morte em vida, e por isso violam a integralidade dos direitos humanos.  

 

 

A questão das remoções urbanas não é nova no Rio. No início do século passado, o prefeito Pereira Passos já havia retirado os moradores do Centro em nome da "modernização" da cidade. Na sua opinião, a que se deve essa reiteração? Trata-se de uma prática local, brasileira ou mundial?

 

No Rio e no mundo inteiro, uma série de intervenções qualificadas de "projetos de modernização" foram, na verdade,  fonte de destruição de direitos e aumento da desigualdade. Nosso desafio é propor uma sociabilidade a partir dos direitos, isto é, colocar a imediata promoção dos direitos humanos como o requisito fundamental de qualquer proposta de desenvolvimento. Esse desafio está colocado hoje com relação aos 'megaeventos', como Copa do Mundo e Olimpíadas, cuja realização, em todos os países-sede, tem gerado expulsões e violações dos direitos da população anfitriã. O caráter incondicional dos direitos humanos não permite que sejam relativizados. Isto já acontece no Rio, com tentativas de remoções forçadas em razão das Olimpíadas, como a da comunidade Vila Autódromo.

 

     

O problema da moradia, aliás, esteve no centro da recente crise econômica que abalou o planeta. O direito à moradia representa um desafio incontornável para os governos?

 

A crise dos subprimes revelou a incapacidade do capitalismo contemporâneo em garantir os direitos humanos. O modelo de incorporação dos direitos em relações de crédito e débito demonstrou sua brutal inconsistência. Lembro que o Banco Mundial, em 2006, recomendava o modelo subprime para o Brasil, por gerar "incontáveis benefícios". Com a crise, ficou evidente que a recusa dos países centrais em inovar nas políticas sociais os leva para uma crise de efeitos imprevisíveis. Se quisermos continuar longe dela precisamos, no Rio, mudar de agenda e colocar os direitos da cidade no centro das políticas municipais.


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