03/08/2018 - 21:00

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O Brasil no banco dos réus

03/08/2018 - 21:00

O Brasil no banco dos réus

O Brasil no banco dos réus

 

Corte Interamericana de Direitos Humanos promove audiência de julgamento no qual o Estado brasileiro é acusado de detenção arbitrária, tortura e desaparecimento de 70 pessoas no Araguaia

 

 

Afinal, o Estado brasileiro agiu ou não para apurar as responsabilidades na repressão à guerrilha do Araguaia? Essa questão foi debatida na audiência que a Corte Interamericana de Direitos Humanos promoveu em São José da Costa Rica, reunindo familiares das vítimas, testemunhas, peritos e observadores, entre eles o presidente da OAB/RJ, Wadih Damous, e o subprocurador-geral da entidade, Guilherme Peres. No processo mais conhecido como Gomes Lund, o Brasil responde pelas acusações de detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas em operações de repressão à guerrilha, travada no Sul do Pará, nos anos 1970. A ação foi apresentada em 1995 pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil/Brasil), pela Human Rights Watch/Americas, pelo Grupo Tortura Nunca Mais/Rio  e pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.

 

Na audiência, prestaram depoimento na condição de vítimas Laura Petit da Silva (irmã de Maria Lúcia Petit da Silva, identificada, e Lúcio e Jaime Petit da Silva, desaparecidos), Criméia Alice Schmidt de Almeida (companheira e mãe do único filho de André Grabois, desaparecido) e Elizabeth Silveira e Silva (irmã de Luiz René Silveira e Silva).

 

O procurador da República Marlon Alberto Weichert e o advogado Alberto Belisário dos Santos Júnior foram as testemunhas apresentadas pelos autores da ação. Já o ex-secretário Nacional de Direitos Humanos José Gregori e o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal José Paulo Sepúvelda Pertence testemunharam pelo Estado. Atuaram como peritos o especialista em Justiça Transicional Rodrigo Yprimmy, indicado pelas vítimas, e o ministro do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp, a pedido do Estado.

 

Emocionada, Laura contou que teve três irmãos desaparecidos durante a ditadura. A ossada da irmã Maria Lúcia Petit da Silva foi identificada e a família velou seus restos e enterrou-os dignamente. Mas Lúcio e Jaime Petit da Silva permanecem desaparecidos. O segundo depoimento foi de Criméia, sequestrada pelo Exército brasileiro, em 1972, com pouco mais de 20 anos e grávida de André Grabois, que conheceu na região do Araguaia. Desde então, busca notícias do companheiro. O irmão de Elizabeth Silveira e Silva, Luiz René Silveira e Silva, também desapareceu no Araguaia. Elizabeth explicou que, como Laura, Criméia e outros parentes de presos e desaparecidos, luta há mais de 30 anos para obter informações oficiais sobre o paradeiro do seu irmão.

 

Os representantes do Estado, por sua vez, disseram que o país assumiu suas responsabilidades sobre o caso e adotou medidas para sanar o sofrimento das vítimas. Entre as ações, foram citadas a criação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, as indenizações pagas às famílias e a publicação do livro Direito à memória e à verdade. Também destacaram a instalação, para cumprir decisão judicial, do Grupo de Trabalho Tocantins, que já fez duas expedições e cinco escavações na região do Araguaia.

 

À reivindicação dos familiares pela identificação e punição dos agentes do Estado que praticaram sequestro, tortura, assassinato e ocultação de corpos, os representantes estatais alegaram que eles também foram beneficiados pela Lei de Anistia, de 1979. Foi mencionada a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), do final de abril, que interpretou a Lei da Anistia como resultado de um acordo político que teria beneficiado os opositores e os agentes da ditadura.

 

Mas a tese foi contestada. Alberto Belisário reiterou que, na campanha pela Anistia, nunca foi cogitada a inclusão dos torturadores. Ele esclareceu que a ditadura não reconhecia a existência de tortura e que, embora a oposição tenha feito campanha por uma anistia "ampla, geral e irrestrita", o regime impôs uma lei restritiva. "Foi a anistia possível, não um período de transição negociada", afirmou. Na década de 1970, lembrou Belisário, o governo fechou o Congresso Nacional. Em 1978, cassou os direitos políticos de deputados. "Os familiares dos presos e desaparecidos  temiam recorrer à polícia com medo de chamar atenção para a sua família", salientou.

 

 Marlon Alberto Weichert reconheceu as ações do Estado brasileiro para reparar as perdas das vítimas da ditadura, mas considerou-as insuficientes. Ele informou que setores do Exército continuam atuando na região do Araguaia para manter em silêncio os moradores que conhecem fatos relacionados à repressão à guerrilha, oferecendo em troca cesta-básica e acesso a serviços públicos. Também reclamou da resistência do Estado em liberar os arquivos da época, mesmo a pedido da Justiça. As Forças Armadas garantem que os documentos foram destruídos, mas não o comprovam por atas ou outros registros.

 

Na avaliação dos representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a falta de esclarecimento e de punição dos crimes contra os direitos humanos cometidos pela ditadura contribuem para a manutenção de enclaves autoritários no Brasil atual. A comissão citou a persistência de graves violações dos direitos humanos, especialmente a prática de tortura no aparelho policial, que compromete a democracia brasileira, e solicitou à Corte a investigação do caso Araguaia, a abertura dos arquivos e a punição dos culpados.  Na mesma linha, as representantes do Cejil pediram aos juízes reunidos naquela Corte que declarassem sem efeito os aspectos da Lei de Anistia que impedem a investigação e a punição dos agentes responsáveis pelo desaparecimento forçado de presos políticos. Ressaltaram ainda que a identificação e a localização dos restos mortais das vítimas é uma dívida histórica do Estado brasileiro com os familiares.


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