12/06/2018 - 15:14

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Junhos de luta

12/06/2018 - 15:14

Junhos de luta

Os advogados na Passeata dos Cem Mil e nas Jornadas de 2013

CLARA PASSI

 
Movida pela revolta com o assassinato do estudante Edson Luís Lima Souto, de 18 anos, em 28 de março de 1968, pela Polícia Militar, no restaurante dos alunos conhecido como Calabouço, e sensibilizada pelas imagens da repressão aos protestos que se seguiram (sobretudo no dia da missa de sétimo dia), uma multidão tomou as ruas do Centro do Rio em 26 de junho daquele ano, 50 anos atrás. A Passeata dos Cem Mil, que se concentrou na Cinelândia, desceu a Avenida Rio Branco, atingiu a Igreja da Candelária e parou em frente ao Palácio Tiradentes (onde está hoje a Assembleia Lesgislativa), foi a mais vigorosa demonstração popular contra o regime militar até ali. Promovida pelo movimento estudantil, à época o principal núcleo de oposição ao regime, a caminhada teve adesão de artistas, intelectuais, operários, profissionais liberais e religiosos, unidos num grande ato de desagravo aos estudantes. Não demoraria para que a ditadura, que até então mostrava-se envergonhada, se escancarasse de vez com a promulgação do Ato Institucional 5, em dezembro.  Antes do cale-se geral que o AI-5 representou, o que incluía a “proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política”, a massa humana pôde ouvir, pacificamente, o discurso do então presidente da União Metropolitana dos Estudantes (UME), Vladimir Palmeira, e gritar pelo restabelecimento das liberdades democráticas, a suspensão da censura à imprensa e a destinação de mais verbas para a educação. Foi uma paz forjada pela intimidação, a bem da verdade. O Exército havia posto na rua seu aparato militar, com tanques de guerra, metralhadoras e cavalos.

A morte de Edson Luís fez o caldo entornar, mas o simbolismo, a injeção extra de coragem para ocupar as ruas vieram do zeitgest, o espírito daquele tempo marcado pela ebulição revolucionária de Maio de 68 na França e os protestos nos Estados Unidos contra a Guerra do Vietnã. Em outro junho, 45 anos depois, esse mesmo desejo de ruptura voltou a tomar o inconsciente coletivo e a população derramou-se pelas ruas do país numa onda de protestos que começou em São Paulo e se espalhou por várias cidades, as Jornadas de Junho de 2013.  O gatilho, dessa vez, foi o anúncio do aumento no preço das passagens do transporte público – no Rio, o bilhete de ônibus havia subido de R$ 2,75 para R$ 2,95. Mas logo viu-se que não era só pelos 20 centavos. O então governador Sérgio Cabral, os gastos com a Copa do Mundo e as Olimpíadas, a Rede Globo, a Polícia Militar, o sumiço do pedreiro Amarildo e a corrupção foram alguns dos judas malhados em praça pública. Se na Passeata dos Cem Mil os advogados seguiram caminhando e cantando com a multidão sem ser importunados, em 2013 as depredações feitas por black blocks, as balas de borracha e o gás lacrimogêneo lançados pelos policiais e o encarceramento em massa instaram colegas a formar grupos para atuar voluntariamente na defesa dos manifestantes detidos.

O envolvimento do vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, André Barros, com as Jornadas de Junho se deu por acaso. Barros estava na Cinelândia resolvendo um problema pessoal logo depois de o aumento no preço da passagem de ônibus do Rio ser anunciado (a medida foi publicada no Diário Oficial em 29 de maio), quando viu cerca de 200 pessoas protestando e resolveu acompanhá-las. Quando chegaram ao Fórum, o criminalista testemunhou a polícia deflagrar “a terceira guerra mundial” contra os manifestantes, bem no horário do fim do expediente, quando as ruas estavam cheias. Barros foi à 5ª DP (Centro), aonde foram levadas 31 pessoas detidas e, com ajuda de quatro colegas convocados às pressas, conseguiu que todos fossem liberados.

No dia 3 de junho, o lema “Amanhã vai ser maior!” se faria cumprir. Na dispersão de um ato na frente da Alerj, que chegou a ocupar parte da Avenida Rio Branco, a polícia deteve, violentamente, 19 pessoas. Dessas, cinco foram levadas direto para presídios. “Vários advogados jovens apareceram espontaneamente para ajudar. Formou-se uma ala para garantir o direito de manifestação e demais liberdades constitucionais no Rio. Ficamos até o meio-dia do dia seguinte na delegacia acompanhando um morador de rua da Praça Quinze que afirmava não ter tido nada a ver com a confusão”, lembra Barros, cuja biografia foi atravessada pela ditadura militar, também acidentalmente. Aos 3 anos, ele foi usado como disfarce pela tia, a guerrilheira do MR-8 Vera Sílvia Magalhães, para conseguir informações para o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick. Vera passeava com André no carrinho de bebê sem levantar suspeitas. 

Reunidos através da página do Facebook Habeas Corpus RJ, os voluntários não imaginavam o vulto que o movimento tomaria. O ato de 17 de junho, que reuniu 100 mil pessoas, gerou cenas de guerra quando um grupo com camisetas amarradas no rosto ateou fogo e depredou o prédio da Assembleia e do Paço Imperial. “Foram 400 pessoas detidas, que chegaram de ônibus à 5ª DP. Depois da triagem, 30 ficaram presas.
 
Detiveram até um rapaz cadeirante, o que foi ridículo. Eram acusados, principalmente, de dano ao patrimônio público e ao transporte coletivo e de desacato”, conta Barros. Muitos ainda estão sendo processados, mas ninguém está encarcerado. Um caso marcante foi o de Rafael Braga, que foi preso acusado de furtar um desinfetante da marca Pinho Sol de um armazém no Centro. “Era um rapaz pobre, a polícia alegou que seria usado para produzir uma bomba. Hoje, cumpre pena domiciliar. Fizeram dele um bode expiatório”, avalia.
“Quando terminava a manifestação, a polícia saía catando gente nos pontos de ônibus. Os black blocks quebravam primeiros os bancos, o que era simbólico. Eram meninos magros, jogando pedras de longe contra os policiais, como na Intifada”.

Assim como o Brasil esteve conectado com os movimentos de vanguarda internacionais em 1968, as Jornadas de 2013 também estiveram sintonizadas com movimentos políticos internacionais cuja mobilização se deu pela internet, como a Primavera Árabe. Por aqui, as páginas do grupo Anonymous no Facebook, com milhares de seguidores, era o principal foco. “O sistema capitalista não quer as pessoas na rua lutando contra ele, então a repressão foi muito forte em 2013. A esquerda mais organizada não soube aproveitar, não entendeu as manifestações. Um governo que se dizia de esquerda [referindo-se ao da presidente Dilma Rousseff] deveria ter apoiado a juventude, que no fim estava certa. Descobriu-se, depois, que as empresas de ônibus combinavam preço das passagens”.

Na época, a Seccional forneceu telefones funcionais aos advogados da força-tarefa e cedeu uma sala com computadores e equipamentos para a impressão das peças de defesa processual. 

Essa não foi a primeira vez que a Ordem se fez presente contra a arbitrariedade das forças de segurança. No livro A OAB e o regime militar - 1964-1986, o conselheiro da entidade Fernando Coelho escreve que, durante a ditadura militar, “deveu-se à ação da Ordem, em grande parte, o fato de não terem sido ainda maiores e mais generalizadas as violências da repressão policial-militar. Pelo desassombro com que agiu, pagou um preço alto. Várias vezes, o governo tentou imobilizá-la, suprimindo sua autonomia com a subordinação ao Ministério do Trabalho e com o controle de sua gestão financeira pelo Tribunal de Contas da União”. Cabe ressaltar, no entanto, que, apesar da grande demanda por defesa de presos desde os primeiros dias do regime, as “reações isoladas de muitos advogados, que desde abril de 1964 se opuseram publicamente ao golpe, não contaram com o apoio nem refletiram o pensamento oficial da corporação”, afirma Coelho. 

O papel da advocacia na luta contra a ditadura de fato não se resumiu ao posicionamento institucional da OAB, que mudou ao longo dos anos de chumbo. Ficou a cargo de um dream team encabeçado por Sobral Pinto e estrelado por Modesto da Silveira, Heleno Fragoso, Técio Lins e Silva, Eny Raymundo Moreira, Humberto Jansen Machado e Marcello Cerqueira, apenas para citar alguns, que atuou de forma independente e voluntária na defesa de presos políticos. Tarefa hercúlea num ambiente em que o direito ao habeas corpus para crimes dessa natureza havia sido suspenso pelo AI-5.

Pode-se dizer que Cerqueira e Modesto (falecido em 2016) eram espécies de anjos da guarda dos estudantes. O argumento jurídico para convencer o Instituto Médico Legal (IML) a fazer a autópsia no corpo de Edson Luís lá mesmo na Alerj (para que não “sumissem” com aquele símbolo) foi de Cerqueira. “Usei Getúlio Vargas como precedente e fui atendido”, lembra ele. Uma semana depois, a dupla supervisionou a chegada das cerca de 60 pessoas que foram levadas ao Dops no ônibus apelidado de “Coração de Mãe” após a missa de sétimo dia do rapaz e, seis meses depois, defendeu os cerca de mil detidos na repressão ao Congresso da UNE num sítio em Ibiúna, em São Paulo. 

Naquela tarde de junho, não havia outro lugar para Cerqueira estar senão na Passeata dos Cem Mil. Ele chegou à concentração de carro com o cineasta Cacá Diegues, não sem antes buscar a cunhada, a atriz Leila Diniz, em casa. Entre as palavras de ordem gritadas pelo povo, o advogado percebeu, pela primeira vez, o racha no interior das forças de oposição ao regime. “‘O povo organizado derrota a ditadura’ e ‘derruba a ditadura’ parecem a mesma coisa, mas há um fosso profundo. A ideia de derrubar a ditadura era a semente da luta armada, vinha da ala mais aguerrida, ligada a Vladimir Palmeira. O outro lado, o do Partido Comunista Brasileiro, queria uma transição pacífica. Nunca li registro desse momento histórico nos livros”.

Se os setores tivessem ficado unidos, a repressão teria mais dificuldade de agir, avalia ele. “A luta armada foi um erro político, mas os guerrilheiros queriam o bem. Como integrante do PCB, fui contra do ponto de vista tático, mas advoguei para eles”. Cerqueira diz não ter se admirado com a revelação de que Ernesto Geisel autorizava o assassinato de opositores – “Nunca me iludi com qualquer general-presidente” – e afirma que o presidente Michel Temer “envergonha o país”. E não vê no horizonte um outro golpe militar ou mesmo a chegada de um candidato verde oliva ao Palácio do Planalto. “Jair Bolsonaro não chegaria a um segundo turno. Expressa um setor pequeno, muito radical, da direita”.

O mesmo dever público que permeou as ações dos advogados da época da ditadura guiou o coletivo Habeas Corpus, cujo braço carioca acabou reunindo cerca de 80 advogados (o número aumenta se forem levados em conta os estagiários) que atuaram em prol de cerca de mil manifestantes durante as Jornadas de Junho, segundo os cálculos do grupo. “Resolvemos agir contra aquele hiperencarceramento dos manifestantes e defender o acesso deles à Justiça, ao devido processo legal, à ampla defesa. Essa obrigação, que chamamos de múnus público, está no Estatuto da OAB. A advocacia não é uma profissão de covardes”, diz Gustavo Proença, um dos pontas de lança ao lado dos também criminalistas Barros, Priscila Prisco e Renato Tonini, parafraseando Sobral Pinto.

Na análise de Proença, havia na ação da polícia o que os teóricos chamam de lawfare, a utilização do Direito com objetivos políticos. “Distúrbio da ordem, desacato, desobediência, depredação do patrimônio e crimes de perigo eram usados como argumento para tentar desmobilizar manifestações políticas. As detenções, muitas vezes, eram fichadas na delegacia como fatos atípicos e não crimes”, diz Proença, sublinhando a presença de policiais infiltrados nas manifestações que foram acusados de lançar coquetéis molotov. 

Mas o uso excessivo da força pela polícia acabou saindo pela culatra, analisa o advogado. “Quando uma jornalista da Folha de S.Paulo foi atingida no olho por uma bala de borracha em São Paulo, a grande mídia percebeu que a truculência tinha passado do limite e começou a apoiar abertamente o movimento”. Para Proença, o maior legado de 2013 foi mostrar às novas gerações que é possível se organizar. E mostrar aos advogados, que se organizam tradicionalmente em escritórios, a possibilidade de atuar em coletivos sem líderes, algo que ainda não está previsto pelo código de ética profissional. “Os advogados estavam nas ruas tentando evitar a violação de direitos no momento em que aconteciam. Tivemos uma relação próxima com grupos de mídia alternativa, que nos ensinaram técnicas de filmagem enquanto nós dávamos a eles noções básicas de Direito Penal. Alguns se tornaram meus alunos. Essa troca teve a ver com a grande tônica das jornadas, a horizontalidade”.

A imprensa também foi aliada do trabalho dos advogados há 50 anos, lembra o trabalhista Humberto Jansen Machado. Mas não a daqui, amordaçada pela censura. “Eu entrava com o pedido de habeas corpus dos presos políticos só para ser negado pela Justiça. Como mantinha ao alcance da mão o telefone de correspondentes estrangeiros dos jornais The New York Times e Le Monde, conseguia que o caso fosse noticiado internacionalmente”. Presente à Passeata dos Cem Mil, Jansen garante que voltaria às ruas quantas vezes fosse preciso para defender a democracia. “Se houver tentativa de golpe, temos que fazer passeata de novo, enfrentar a polícia”, diz o octagenário, que deixa um conselho aos saudosos do regime militar. “De vez em quando, aparece alguém querendo a volta da ditadura, como um certo candidato à presidência [referindo-se a Jair Bolsonaro]. A juventude tem que entender que a política é difícil, cheia de contradições, mas tem que ser fundada sempre na defesa da liberdade humana e na possibilidade de se ter eleições. A luta continua, sempre”.

“Recebi a informação de que Vladimir seria morto naquele dia”
Evandro Teixeira, fotógrafo do Jornal do Brasil na época e autor das fotos da Passeata dos Cem Mil

“Aquele foi um dos dias mais bonitos e gloriosos do Rio de Janeiro. Eu já era fotógrafo experiente, vinha cobrindo as manifestações contra a ditadura até ali. Saí da redação com a missão de ficar de olho no Vladimir Palmeira, o grande líder estudantil da época. Chegou à redação na véspera a informação de que ele seria morto ou preso pelo brigadeiro [João Paulo] Burnier [Em 1971, o preso político Stuart Angel Jones foi assassinado dentro da Base Aérea do Galeão]. 

Ao longo do caminho, Vladimir subiu em árvore, pendurou-se em galhos, falou em cima de banca de jornal. Naquela época, não tinha megafone ou caixa de som e ele se fazia ouvir extraordinariamente bem. Fiquei vendo as freiras e religiosos chegarem, as atrizes, os outros grupos. Mas sempre olhando pela esquerda e a direita em busca de Vladimir. Fui para a Cinelândia, onde fiz a foto da multidão e a faixa “Abaixo a ditadura, o povo no poder”. Imaginava-se que pudesse haver uma carnificina naquele dia com tanta gente na rua, mas, por incrível que pareça, foi um dia maravilhosamente pacífico e encantador; todo mundo confraternizou, chorou, se abraçou. Lá estavam quem você pudesse imaginar: Otto Lara Resende, Antônio Callado, Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso. Iam chegando os blocos à Cinelândia: o dos artistas e intelectuais, dos religiosos, dos jornalistas, este com Grande Otelo no meio, o que foi muito engraçado. 

Começamos na Cinelândia, onde Vladimir falou maravilhosamente bem. Descemos a Rio Branco e as pessoas pararam em frente ao prédio do Jornal do Brasil para homenageá-lo pela luta contra a ditadura desde o início. Na Presidente Vargas, Vladimir subiu num caixote para falar. Quando mandava sentar, as pessoas obedeciam como se fossem bonecos. Na Candelária, discursou novamente. Depois, chegamos ao Palácio Tiradentes no final da tarde, onde a coisa acabou na maior paz do mundo. Fiz a foto dele entrando no seu fusquinha verde e agradeci a Deus porque nada tinha acontecido”.

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