14/09/2015 - 12:21

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O direito à autodeterminação informativa

14/09/2015 - 12:21

O direito à autodeterminação informativa

JOÃO QUINELATO DE QUEIROZ*
A sociedade da informação, forma de organização social que recorre ao intensivo uso da tecnologia para coleta, transmissão e armazenamento de informações, revela a inadequação das tradicionais definições aos conceitos de privacidade e publicidade, não sendo mais possível “considerar os problemas da privacidade somente por meio de um pêndulo entre ‘recolhimento’ e ‘divulgação’”, diz Stefano Rodotá, em A vida na sociedade da vigilância. 

Neste cenário, o cidadão assume papel de protagonismo no fornecimento de suas informações, mas, por outro lado, de coadjuvante no seu uso. Foge ao seu controle quais dados estão nas mãos de quem; como estão sendo recolhidos; qual nível de controle ele detém sobre este armazenamento. Neste contexto, explica Rodotá, “a contrapartida necessária para se obter um bem ou um serviço não se limita mais à soma de dinheiro solicitada, mas é necessariamente acompanhada por uma cessão de informações.”

As operações de mineração de dados, também denominadas data mining, rastreiam orientações sexuais, perfis de consumo e áreas de interesse dos usuários à completa revelia desses, visando à construção de perfis (profiling) com base em seu comportamento. Assevera Carlos Nelson Konder, em Privacidade e corpo: convergências possíveis, que “técnicas de mineração de dados permitem, dentro do amplo manancial de informações já disponíveis da rede – fornecidas pelos titulares devido aos mais variados motivos e nos mais diversos contextos –, a seleção daquelas úteis e valiosas e sua reconstrução sob nova formatação.” Anderson Schreiber aponta, na obra Contratos eletrônicos no Direito brasileiro – formação dos contratos eletrônicos e direito de arrependimento, que “a coleta de dados do usuário – por meio de cookies e outras técnicas de transparência reduzida e legalidade duvidosa – tem permitido o desenvolvimento de perfis automáticos que são utilizados pelos fornecedores para direcionar o conteúdo da mensagem publicitária e da oferta de produtos na internet.” 

Com efeito, a liberdade na rede reflete-se em rumos temerários ao direito de privacidade. O conceito de privacidade mostra-se intimamente ligado ao conceito de liberdade, sendo ambos faces opostas de uma mesma moeda. O exercício do direito à privacidade nada mais representa do que o exercício do direito à liberdade, tanto a de se expor ou não quanto a de se decidir em que medida pretende o titular revelar sua intimidade e sua vida privada ao mundo exterior, diz a pesquisadora Tatiana Malta Vieira em O direito à privacidade na sociedade da informação.

É sedimentado na doutrina que os direitos fundamentais, como o é o direito à privacidade, possuem uma dupla dimensão: (i) subjetiva, como direito subjetivo do indivíduo de exigir de terceiros (particulares ou Estado) determinados comportamentos, e (ii) objetiva, como um sistema de valores do Estado democrático de Direito, que funciona como diretriz axiológica e limitador ao poder estatal.

Ao abordar a dimensão objetiva em Liberdades, tecnologia e teoria da interpretação, Gustavo Tepedino assevera que “a liberdade, em especial nas relações existenciais, não implica a ausência do Direito, mas, ao contrário, pressupõe que o Direito atue, de maneira a proteger a parte mais vulnerável, fornecendo-lhe meios para efetivamente poder discernir, decidir, agir.” 

O direito à privacidade goza de um estatuto jurídico no ordenamento pátrio (art. 5º X da CF/88, art. 21 do CC/02, art. 43 do CDC) e estrangeiro (por exemplo, o art. XII da Declaração Universal de Direitos do Homem), cujo cumprimento é inafastável pelos entes privados e públicos e, não menos importante, goza de um núcleo duro delineado pela doutrina.

Stefano Rodotá defende a existência do núcleo duro do direito à privacidade, que abarcaria um conjunto de informações pessoais que refletem a tradicional necessidade de sigilo, mas que assumiram maior relevância em outras categorias de informações. Para ele, o núcleo duro é formado de informações relacionadas às opiniões políticas e sindicais, além daquelas relativas à raça ou ao credo religioso. Afirma o doutrinador que “a classificação desses dados na categoria de dados sensíveis, particularmente protegidos contra os riscos da circulação, deriva de sua potencial inclinação para serem utilizados com finalidades discriminatórias”. 

O autor vai além e define a parte dura do núcleo: “Exatamente por seu caráter estrutural e permanente, as informações genéticas constituem a parte mais dura do núcleo duro da privacidade, fornecem o perfil mais definido da pessoa e estão, assim, na base de ações discriminatórias”. 

Reconhecer a existência de um núcleo duro do direito à privacidade – e sua parte mais dura, inclusive – é reconhecer que os mecanismos de proteção a serem criados pelo Estado devem ser diferenciados para cada grupo de informações, de tal modo que medidas legais devem ser tomadas para cobrir com o véu do sigilo aquelas informações cuja circulação pode trazer riscos irreparáveis a seus titulares.

Corolário do direito à privacidade, a doutrina define o direito à autodeterminação informativa como aquele “que cabe a cada indivíduo de controlar e de proteger os próprios dados pessoais”. Também denominado de direito à privacidade decisional e informacional, ele pode ser tido como uma espécie do gênero direito à privacidade. Foi reconhecido inicialmente pelo Tribunal Constitucional da Alemanha, no julgamento do caso da Lei do Censo daquele país, de 1982. Segundo a corte, o direito à autodeterminação informativa “pressupõe que, mesmo sob as condições da moderna tecnologia de processamento de informações (...), o indivíduo exerça sua liberdade de decisão sobre as ações a serem precedidas ou omitidas em relação a seus dados”. Neste sentido, leciona Tepedino: “Há que se definir quando, onde, como e para que fins podem ser colhidas informações pessoais, impedindo-se seu tratamento como ativo comercial ou expressão do poder político do Estado. Os critérios para tal definição hão de convergir para a melhor tutela dos direitos fundamentais em jogo.” 

À guisa de conclusão, é certo que as novas tecnologias da informação criaram ferramentas de data mining eficientes, impondo uma nova forma de coleta e tratamento de dados pessoais. Para equalizar o diapasão novas tecnologias versus direito à privacidade, aponta-se uma alternativa: a regulamentação, imediata, do direito à autodeterminação informativa para que o cidadão deixe de ser simples fornecedor de informações, passando a deter o real e efetivo controle sobre a sua coleta e destino.

Por todo o contexto social e político, conclui-se por ser inviável e indesejável simplesmente proibir a coleta de dados. Ao revés: é preciso torná-la lícita, regulamentando-a, conferindo, para além do aspecto substancial, um aspecto procedimental ao direito à privacidade, como leciona Anderson Schreiber em Direitos da personalidade.
 
*Presidente da Comissão de Estágio da OAB/RJ, membro da Comissão Nacional de Apoio à Jovem Advocacia, advogado corporativo com especialização em Direito do Entretenimento pela Uerj

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