17/11/2016 - 15:56

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Nas escolas, saúde é matéria que faz falta

17/11/2016 - 15:56

Nas escolas, saúde é matéria que faz falta

Inexistência de legislação específica sobre cuidados com saúde dos alunos gera inseguranças, e 
cada escola adota uma postura diferente

 
RENATA LOBACK
Aos 15 anos, João não tem uma rotina semelhante à dos garotos da sua idade. Além dos estudos e de toda a agitação da adolescência, ele precisa ser responsável o suficiente para manter uma dieta rígida, fazer avaliações constantes de glicemia e aplicar insulina. João tem diabetes do tipo 1. Dentre tantas concessões e regras impostas pela doença, afastar-se dos amigos da escola não estava nos seus planos. Mas João foi expulso. O motivo: após uma crise de hipoglicemia, a escola decidiu que não poderia mais se responsabilizar por ele. 

O caso, que aconteceu em julho num colégio particular de São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio de Janeiro, reacendeu o debate sobre as inseguranças causadas pela falta de legislação específica que regulamente o cuidado com a saúde dos alunos em horário escolar. Hoje, no Brasil, há mais de 13 milhões de pessoas vivendo com diabetes, o que representa 6,9% da população. Dessas, cerca de 10% (1,3 milhão) são do tipo 1.

Levantamentos feitos pela Organização Mundial da Saúde apontam que, na década de 1990, uma em cada 15 mil crianças tinha a doença. Agora, a proporção é de uma para cada oito mil. 

Segundo especialistas, um profissional de saúde dentro das escolas poderia auxiliar tanto estudantes com doenças crônicas, caso do diabetes, como os demais. Em 2011, o então deputado federal Jonas Donizette (PSB/SP) tentou, por meio de projeto de lei, tornar obrigatória a presença de um enfermeiro ou médico em escolas públicas e privadas. No entanto, o projeto foi arquivado.

Para o secretário-geral da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD) da OAB/RJ, Caio Silva de Sousa, uma das maiores preocupações no período escolar envolve as incertezas sobre os cuidados com alunos, ainda mais quando há doença crônica ou deficiência. “A falta de medicação ou de um atendimento emergencial pode gerar problemas ainda mais sérios do que manter um profissional de saúde”, defende.

A história de João está sendo acompanhada pelo Conselho Tutelar de Alcântara, que decidiu denunciar a escola ao Ministério Público. Presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da Seccional, Fernanda Bianco diz “o assunto é complexo, envolve diversos atores e muita desinformação” Ela considera, contudo, que haveria mais segurança e claridade caso existisse “uma legislação específica que enfrentasse as peculiaridades do tema”. 

“No caso do diabetes, a medição da taxa de glicose, a alimentação adequada ou a aplicação de insulina muitas vezes precisa ocorrer também no ambiente escolar. De toda forma, essa circunstância não é motivo impeditivo ao exercício da garantia à educação de qualquer pessoa, que é direito humano fundamental estabelecido pela Constituição Federal de 1988 (vide artigo 205 e seguintes) e pela própria Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em se tratando de indivíduo menor de 18 anos, há de se considerar, ainda, o Estatuto da Criança e do Adolescente. que garante o direito à educação e à igualdade de condições de acesso e permanência na escola, além de vedar qualquer forma de discriminação, seja por nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, situação econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem”, explica. 

Para fazer valer esses direitos, a CDPD mantém desde 2014, em parceria com o Movimento Down, o projeto Escola para todos – que consiste em tirar dúvidas e acompanhar os responsáveis no período de matrícula nas escolas regulares. “Nenhuma instituição de ensino pode se negar a receber um aluno com alguma deficiência ou necessidade especial. Esse direito, que já era garantido em nosso ordenamento, foi reforçado com a vigência da Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015)”, pontua o secretário-geral da comissão.

Pelo relato de Caio de Sousa, até a aprovação da LBI eram muitas as escolas que se recusavam a receber estudantes com deficiência ou, que, quando aceitavam, cobravam a matrícula em valores diferentes. “Uma lei específica acabou com essas possíveis distorções. É a mesma lógica no que se refere ao uso de medicamentos em horário escolar. Hoje, cada escola adota um tipo de regra, e, em geral, não se sabe quem fica responsável pelas crianças que passam mal. Para garantir um acompanhamento correto, muitos responsáveis acabam abdicando de uma vida profissional para acompanhar os filhos em tempo integral”, exemplifica.

Com diabetes desde os 19 anos, Juliano Rodrigo descobriu em junho deste ano que seu filho Igor, de 12, também tinha a doença. Segundo ele, toda pessoa que tem diabetes, por mais que se cuide, corre o risco de sofrer hipoglicemia. “Quando descobrimos que o Igor tinha diabetes levamos o laudo na escola e conversamos com todos os professores. Explicamos que o celular poderia ser usado para qualquer tipo de emergência e quais os cuidados ele precisaria adotar. Meu filho recebeu todo o amparo e, por ter contato com o meu diabetes, sabe o que fazer nas mais variadas situações. Mas mesmo ele precisa do acompanhamento de um adulto que saiba como socorrê-lo. Não podemos esquecer que se trata de uma criança e que, num momento de crise, ela pode perder facilmente o controle. Se adultos passando mal já são complicados, imagina quando falamos de crianças”, salienta. 

Juliano fez faculdade de Educação Física e em seu trabalho de conclusão de curso abordou a falta de estrutura dos colégios para identificar sintomas de doenças crônicas, como hipoglicemia, hiperglicemia e pressão alta. “Os professores não sabem identificar e muito menos como agir nesses casos. Mas essa também não pode ser uma responsabilidade deles. Nesses casos, um procedimento errado, como dar alguma coisa com sal a um aluno com pressão alta, por exemplo, só piora o problema”. Para ele, a obrigatoriedade de um profissional de saúde dentro das escolas amenizaria os riscos. “Quem tem filho com uma doença crônica convive com uma preocupação constante”, afirma.

Supervisora-geral da Rede Miguel Couto, escola particular com diversas unidades no Rio de Janeiro, Marineida Santos explica que a recomendação aos professores e funcionários é de nunca manipular medicamentos para alunos. “Quando o responsável faz a matrícula, ele preenche uma ficha extensa detalhando a situação clínica e psicológica da criança. Se tem alergia a algum alimento ou se faz uso de medicamentos contínuos, por exemplo. Na mesma ocasião, informamos, por escrito, que não podemos dar remédios. Tudo fica registrado para dar respaldo aos pais e à escola”, diz.

Caso um aluno passe mal em horário escolar, a primeira medida é entrar em contato com os responsáveis, explica a diretora. “Há situações em que o pai não consegue se deslocar com agilidade e o aluno precisa ser encaminhado a um serviço de pronto-atendimento. Para esses episódios, a Rede Miguel Couto conta com um serviço de seguro. Desta forma, os estudantes são encaminhados ao hospital por conta da escola, que depois recebe o reembolso da seguradora. Na questão específica da Rede Miguel Couto não há inseguranças quanto a estas questões, porque deixamos tudo muito claro em contrato”, ressalta.

Coordenadora-geral do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro (Sepe), Dorotéa Frota explica que na rede pública, infelizmente, a realidade é diferente. “Nossa orientação também é a de não manipular medicamentos dentro das instituições. Quando uma criança passa mal não podemos levá-la até um hospital em carro particular. O transporte, caso seja necessário, deve ser feito pela ambulância do Samu [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência], que, geralmente, demora muito. Temos fichas para os responsáveis cadastrarem o endereço e contatos para emergência, mas quase sempre as informações estão desatualizadas”, lamenta.

Apesar de não ser uma posição fechada do sindicato, Dorotéa acredita que a normatização, com padronização do atendimento e a obrigatoriedade de um profissional de saúde nas escolas, amenizaria os problemas. “Cobramos recursos humanos dentro das escolas. Não somos médicos nem enfermeiros para identificar as necessidades dos estudantes, mas essa responsabilidade sempre recai sobre a direção ou professores. Uma legislação que padronize e estabeleça um profissional de saúde é fundamental”, acredita.

Marineida Santos também concorda que toda escola deveria manter, ao menos, um enfermeiro para os atendimentos básicos. “Mesmo sendo rigorosos com nossa ficha de matrícula, alguns pais omitem certas informações, por constrangimento. Já aconteceu de descobrirmos um caso de epilepsia apenas no momento de um ataque. Ter uma lei regulamenta, trata essas questões de forma obrigatória e impõe a postura mais correta para essas situações”, defende.

A Lei Brasileira de Inclusão prevê a contratação, por conta das escolas, de profissionais de apoio. Mas, segundo o presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB/RJ, Geraldo Nogueira, por falta de regulamentação do Ministério da Educação, ainda não ficaram claros qual o perfil e quais as atribuições este profissional precisa ter. “Há dúvida se ele seria um segundo professor em sala de aula ou se atuaria como um cuidador. Nessa segunda hipótese, esta pessoa poderia auxiliar alunos na aplicação de insulina ou aferição de glicose, caso tenha formação em enfermagem. Na minha opinião, cabem as duas funções. A sociedade está evoluindo para uma educação mais adequada, humana e justa”, ressalta Nogueira.

Tanto ele como Caio Sousa reforçam a importância de uma legislação específica sobre todos os aspectos que envolvem a educação. Em um contraponto aos avanços já garantidos pela LBI, eles destacam algumas conquistas: obrigatoriedade de uma educação inclusiva, exigência de um profissional mediador, utilização de uma sala de apoio (para atender às necessidades dos alunos) e proibição de cobrança diferenciada por esses serviços.

“A convenção da ONU sobre os direitos da pessoa com deficiência, que é de 2009, e a LBI preveem somente a educação inclusiva. Isto porque estudos mostram que crianças com deficiência ou necessidades especiais incluídas em salas de aula regulares têm uma evolução mais célere no aprendizado. Da mesma forma, há progressão de cunho social nos demais alunos, que passam a conviver com as diferenças com naturalidade, e nos professores, que expandem a capacidade do seu plano pedagógico. A vida escolar passa a ser pensada para atender a todos, inclusive com acessibilidade atitudinal e arquitetônica. O futuro é da educação inclusiva. Não podemos voltar atrás nessa questão. Qualquer medida que vá contra este preceito está em desacordo com a LBI”, afirma o secretário-geral da CDPD.

Geraldo Nogueira vai além e aponta que a inclusão nada mais é do que refletir nas escolas a realidade. “Pessoas com deficiência ou necessidades específicas não vivem em uma sociedade paralela. Essas crianças precisam ter acesso a escolas regulares. É injusto que na infância e adolescência elas sejam separadas das demais. Essa separação gera efeitos negativos para a própria sociedade. Stephen Hawking, físico inglês com uma deficiência grave, foi nomeado o único gênio vivo da humanidade. Não podemos deixar essas crianças fora da escola, outros gênios podem surgir”, salienta.

Para o presidente da CDPD, a solução passa sempre pela melhor forma de adaptar as escolas às necessidades dos alunos, e não pela exclusão deles.

A pedido da família, o nome do aluno com diabetes expulso da escola em São Gonçalo foi trocado na matéria para evitar novos constrangimentos. Tanto o Conselho Tutelar de Alcântara quanto o Ministério Público decidiram não se manifestar sobre o acompanhamento do caso, para resguardar o adolescente.

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