17/11/2016 - 15:39

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Plataforma abre espaço para denunciar violação de direitos na TV

17/11/2016 - 15:39

Plataforma abre espaço para denunciar violação de direitos na TV

Na busca por audiência, programas policialescos descumprem legislação

VITOR FRAGA
Os programas “policialescos” exibidos na televisão aberta no Brasil, que ganharam mais evidência a partir dos anos 1990, estão entre as atrações mais populares. As principais emissoras têm em sua grade esse tipo de gênero, que se caracteriza, de modo geral, por apresentar notícias de forma apelativa. Mas a guerra pela audiência nem sempre é feita dentro da lei, e quase diariamente podem ser observadas situações em que repórteres e apresentadores cometem violações de direitos, seja de pessoas suspeitas de cometerem crimes,  de vítimas ou seus familiares.

Em função disso, entidades como a agência Andi –- Comunicação e Direitos, em parceria com o coletivo Intervozes e a organização não governamental Artigo 19, além do Ministério Público Federal – através da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) – lançaram em setembro deste ano a plataforma Mídia sem violações de direitos (www.midiasemviolacoes.com.br), através da qual a população pode denunciar casos de descumprimento das leis.

A plataforma é um instrumento da campanha homônima, iniciada em junho, que por sua vez é o desdobramento da pesquisa Violações  de  direitos  na  mídia  brasileira, divulgada no início do ano. O estudo, realizado ao longo do mês de março de 2015, apontou que narrativas de rádio e TV promoveram 4.500 violações de direitos, cometeram 15.761 infrações a leis brasileiras e multilaterais, e desrespeitaram 1.962 vezes normas autorregulatórias. Mais de 60% das pessoas e famílias cujos direitos são afetados são negras.
O levantamento serviu para a criação de um ranking dos programas que mais infringem direitos – o “campeão” nacional de 2015 foi o Cidade alerta, da Rede Record. No Rio de Janeiro, o Brasil urgente, da Rede Bandeirantes, lidera a lista. As violações mais praticadas foram a “exposição indevida de pessoas” e o “desrespeito à presunção de inocência”, em afronta a normas previstas na Constituição Federal, no Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117/1962), nos códigos Civil e Penal, entre outros. A reportagem da TRIBUNA conversou com representantes das entidades que criaram o projeto.

Coordenadora da plataforma, a jornalista Helena Martins explica que a percepção de que “a mídia brasileira constantemente tem violado os direitos humanos” foi o ponto de partida do trabalho. “Infelizmente, não há nenhuma política efetiva de contenção dessa prática e superação desse quadro”, lamenta. Representante do Intervozes no Conselho Nacional de Direitos Humanos, Martins diz que o resultado inicialmente surpreendeu os pesquisadores. “Quando percebemos o volume de casos, ficamos assustados. Embora haja essas regras, e o Ministério das Comunicações tenha a função de fiscalizar os programas de rádio e TV, porque são concessões públicas, temos um cenário em que isso não acontece”, observa.

Campanha e plataforma
 
Diante dos resultados, foram criadas a campanha e a plataforma Mídia sem violações de direitos. “Temos buscado reunir entidades da sociedade civil para pressionar o Estado e atuado para sensibilizar a sociedade, trazendo à tona a ocorrência dessas violações. Vemos todos os dias tais práticas, mas muitas vezes não sabemos que elas descumprem regras e que é possível reclamar e agir diante disso. Lançamos a campanha e desenvolvemos uma plataforma homônima para poder mostrar à sociedade os casos mais recorrentes, e também para construir esse canal de denúncia”, explica Martins. Para a coordenadora, a sociedade brasileira nunca foi convidada pelo poder público a fazer denúncias. “Qual o canal que se tem para reclamações? O Ministério das Comunicações nunca fez campanha sobre isso. Cito um exemplo prosaico, mas revelador: para você achar o email para denúncias no site do ministério são necessários 12 passos. Ou seja, está escondido, e trata-se de um simples email. Queremos mostrar para a sociedade que as denúncias podem ser feitas, e também criar um canal intermediário para que população possa fazer isso”, resume.

Segundo a jornalista, há um descompasso entre a prática do ministério e os dados coletados pela pesquisa. “Um estudo da Bia Barbosa, coordenadora do Intervozes, constatou que, entre 2013 e 2014, apenas dois casos terminaram com sanções administrativas e multa. Um foi o da Band da Bahia, que exibiu, por vários minutos, imagens de um adolescente negro, ridicularizando-o, e inclusive fazendo com que assumisse a culpa por um ato que não havia cometido; e outro foi a exposição do estupro de uma criança de nove anos, por mais de 20 minutos, na emissora TV Cidade, do Ceará”, relata. Em todas as situações, as punições ficaram muito aquém do desejado. “O do Ceará teve uma multa de apenas R$ 23 mil, a mais alta já aplicada a esse tipo de conduta. Não há, de fato, uma prática de dissuasão desse comportamento”, lamenta.

O presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ, Breno Melaragno, lembra que, recentemente, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro conseguiu na Justiça uma decisão proibindo a exposição de presos em flagrante. “Isso já foi um avanço. Alguns veículos passaram a usar termos mais corretos do ponto de vista jurídico, como ‘suspeito’. Ainda assim, as violações são enormes”, diz. Ele pondera que a melhor forma de coibir essa prática seria a aplicação de danos morais, penalizando as emissoras. “Seria uma forma de fazer com que elas prestassem mais atenção a essas questões. E, na maioria das vezes, a ação caberia à Defensoria.” 
A Ordem, observa Melaragno, atua em alguns casos pontuais tanto em relação à exposição indevida, quanto à presunção de inocência. “Mas, pelas próprias funções, tendemos a defender o advogado”, pondera, acrescentando que o discurso do ódio “acaba atingindo a advocacia criminal” também. “Não se pode confundir a figura do advogado com o crime em si. Isso é muito importante para a sociedade. Aqueles que aplaudem o linchamento ilegal, amanhã certamente serão vítimas”. Casos de discursos de ódio ou preconceito , salienta, afetariam diversos direitos. “Infelizmente, o discurso de ódio hoje está na moda, e precisa ser combatido veementemente, por todas as entidades da sociedade civil. Apesar de caber, em certas situações, a aplicação do dano moral, de modo geral a prática precisa é ser corrigida. A emissora deve ser obrigada a fazer uma declaração contrária, como se fosse um direito de resposta da sociedade”, explica.

Todas as denúncias que chegarem à plataforma vão passar por um comitê de monitoramento, que irá processá-las e verificar quais de fato contêm violação de direitos. As que se enquadrarem nessa situação, entrarão no levantamento de dados para o novo ranking, que será divulgado ano que vem. “Pretendemos fazer um ranking anual. Estamos na fase de articulação dos núcleos estaduais das campanhas, e também de diálogo com o Ministério Público e com os conselhos de direitos. Vamos dialogar também com os entes demandados no relatório, inclusive cobrando dos órgãos públicos para que se manifestem sobre esses dados. É preciso enfrentar essa cultura”, defende Helena Martins.

Entre as vítimas, mais de 60% negras
 
O programa Cidade alerta (Record) é o líder do ranking nacional de denúncias, com 850 ocorrências. No Rio de Janeiro,  o Brasil urgente (Bandeirantes) totalizou 56. A assessoria da Rede Record informou que, assim como na época do lançamento da pesquisa, a emissora não iria se pronunciar. Já a assessoria da Rede Bandeirantes não havia respondido ao contato da reportagem até o fechamento desta edição.
 
Foram monitorados 28 programas de rádio e TV de todas as regiões brasileiras, em 10 capitais, totalizando 1.928 narrativas com violações de direitos, ao longo de 30 dias, no mês de março de 2015. O resultado revelou a ocorrência de 4.500 violações, as quais afrontam, pelo menos, 12 leis brasileiras e sete tratados multilaterais. As mais praticadas foram a “exposição indevida de pessoas” (1.704 ocorrências) e o “desrespeito à presunção de inocência” (1.580 ocorrências) – a segunda violação implica automaticamente a primeira. Em geral, a exposição indevida se refere ao acusado ou suspeito, mas pode atingir mesmo a vítima ou qualquer outro ator abordado na narrativa, o que explica o número mais elevado.

Uma regulação nova na área seria um primeiro passo para a construção de outro sistema de comunicação no Brasil, acredita Martins. “No entanto, práticas que já diagnosticamos como violadoras de direitos podem ser coibidas por regramentos existentes, tanto leis formuladas aqui como tratados internacionais ratificados pelo país”, defende. Ela ressalta que a pesquisa “foi além do resultado quantitativo”, buscando definir “quem são esses sujeitos que foram prejudicados, e quais os impactos dos discursos propagados” para além da esfera midiática. “Em relação ao perfil dos que tiveram seus direitos violados, percebemos que são, sobretudo, jovens negros. Mais de 60% das pessoas expostas indevidamente são negras, assim como a maioria das famílias. Isso é muito revelador”, pontua. Para a jornalista, a lógica dos programas é baseada na exploração das pessoas mais vulneráveis, que muitas vezes desconhecem seus direitos. “Em geral, eles não sabem que não têm obrigação de falar à imprensa, que não podem ser expostos. Acabam tendo nesses programas os primeiros interlocutores quando chegam a uma delegacia; é uma exposição de pessoas que estão sob custódia do Estado. Há vários estados que contam com portarias das secretarias de Segurança Pública proibindo essa conduta, e isso não é cumprido, a gente vê frequentemente as pessoas sendo abordadas nas delegacias pela mídia”, critica.

Tipo e número de violações 
(1.928 narrativas analisadas)
Exposição indevida de pessoa(s) – 1.704
Desrespeito à presunção de inocência – 1.580
Violação do direito ao silêncio – 614
Exposição indevida de família(s) – 259
Incitação à desobediência às leis ou às decisões judiciais – 151
Incitação ao crime e à violência – 127
Identificação de adolescentes em conflito com a lei – 39
Discurso de ódio ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, condição socioeconômica, orientação sexual ou procedência nacional – 17
Tortura psicológica ou tratamento desumano ou degradante – 9

Infrações a leis brasileiras 
(8.232)
Constituição Federal – 1.928
Código Brasileiro de Telecomunicações – 1.928
Código Civil Brasileiro – 1.928
Regulamento dos Serviços de Radiodifusão – 1.866 
Lei de Execução Penal – 300 
Código Penal Brasileiro – 127 
Estatuto da Criança e do Adolescente – 78 
Estatuto do Idoso – 50 
Lei 7.716/89 (define crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor) – 17 
Lei 9.455/97 (sobre tortura) – 9 
Estatuto do Índio – 1 

Infrações a leis multilaterais
(7.529)
Convenção Americana sobre Direitos Humanos – 1.928 
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos –  1.928 
Declaração Universal dos Direitos Humanos – 1.849 
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem – 1.801 
Convenção sobre os Direitos da Criança – 13 
Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes – 9 
Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial – 1
 
 

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