17/11/2016 - 15:48

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Com quantos lotes se faz um ingresso?

17/11/2016 - 15:48

Com quantos lotes se faz um ingresso?

Propagação da venda de entradas pela internet traz novas discussões no campo do Direito do Consumidor, como a política de lotes e a taxa de conveniência
 
CÁSSIA BITTAR
A situação é comum no cenário em que o aumento da realização de grandes shows e espetáculos no Brasil juntou-se à suposta facilidade que a internet trouxe para a compra de ingressos: o consumidor enfrenta “filas” virtuais, sites de venda congestionados por horas e, em alguns casos, uma política de venda por lotes em que a validade do preço inicial dura apenas alguns minutos. Somando-se a isso problemas com cancelamento da compra e cobranças abusivas da chamada taxa de conveniência, encontramos uma discussão jurídica ainda pouco abordada sobre o direito do consumidor de cultura por meio eletrônico.

Apesar de o Estado do Rio de Janeiro contar com uma lei que trata da cobrança da taxa de conveniência pelas empresas de venda de ingressos via internet ou telefone (Lei 6103/2011), e, nacionalmente, a questão ser adaptada aos princípios contidos no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), especialistas ainda debatem se a cobrança acumulativa de taxa pela quantidade de entradas compradas ou por seu valor é legítima.

Integrante da Comissão de Direito do Consumidor da OAB/RJ, Eduardo Biondi acredita que, apesar de datado de 1990, época anterior às transformações geradas pela internet, o CDC deve ser analisado de forma aberta a fim de adaptar suas previsões às situações atuais: “Não há nele um capítulo sobre compras no mercado eletrônico, e esse é um meio em que as pessoas ainda estão engatinhando quanto ao conhecimento dos seus direitos. Mas, apesar de não termos a situação específica contida no código, ele é interpretado de maneira análoga pelo Judiciário, adaptando uma condição de compra física para o meio virtual”.

Desta forma, Biondi considera abusiva a cobrança progressiva de taxa por cada ingresso adquirido ou que seu valor seja estabelecido com base em um percentual do preço. “Há dois princípios a serem observados na cobrança de taxa de conveniência: o primeiro, o da informação, exige que o valor da taxa seja demonstrado para o cliente de forma clara; ele precisa estar ciente de que pagará essa tarifa. O segundo é que esta tenha um valor fixo. Se é uma taxa de comodidade, o custo deve ser um só, não se justifica que o valor aumente de acordo com o preço do ingresso. Por isso, trata-se de uma cobrança excessiva, considerada abusiva”.

A opinião de Biondi é a mesma do advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Christian Printes: “O entendimento do instituto é que, se a taxa de conveniência for cobrada sobre o percentual do ingresso, esta será considerada uma prática abusiva, pois o mesmo serviço, ou seja, a mesma conveniência teria preços diferenciados em relação aos diversos tipos de entradas, como, por exemplo, pista, pista premium ou camarote.  Logo, um ingresso mais caro tem taxa mais alta e isso caracteriza uma cobrança manifestamente excessiva em relação ao consumidor, de acordo com o artigo 39, V, do CDC, tendo em vista que o serviço prestado é o mesmo para todos os pagantes”.

Já para o diretor-jurídico do Procon-RJ, Rafael Couto, as regras contidas na Lei 6103/2011, que permitem a cobrança por percentual, desde que não ultrapasse o limite de 10% do valor de face das entradas, são justas. “A legislação estadual busca estabelecer um equilíbrio nessa relação de consumo, já que quem compra mais ingressos paga uma taxa maior”, observa.

Biondi ressalta que o artigo 7 do CDC não exclui outras legislações sobre a matéria. “Toda lei que regulamentar sobre natureza de defesa do consumidor vai ser analisada em conjunto com o CDC, que é uma lei federal. Na hipótese de ser omissa, serão aplicadas as legislações estaduais”, pondera. Porém, o código sempre irá prevalecer, entende. 

Ele traz outra discussão à pauta quando afirma que a taxa só é legítima se o consumidor não precisar recolher, posteriormente, sua entrada em um local físico, como algumas empresas ainda exigem. “Essa já foi uma prática mais comum, e hoje a maioria disponibiliza pela internet justamente porque exigir que o cliente troque um voucher pelo ingresso válido em um guichê já descaracteriza a conveniência do serviço. É o que chamamos de abusividade específica”.

No entendimento do Idec, em razão de a taxa de conveniência não estar diretamente regulamentada pelo CDC, no Rio de Janeiro deve-se seguir a lei estadual, que não dispõe sobre a cobrança de taxa de conveniência quando a opção de retirada de ingresso for em bilheteria: “A lei apenas veda que seja cobrada, além delas, a taxa de entrega para retirada nos postos oficiais de venda e nas bilheterias. Essa cumulação é considerada uma prática abusiva, pois, se já existe a cobrança de taxa pela conveniência, esta já deveria englobar todos os custos necessários para que de fato houvesse a conveniência ao consumidor”.
 
Cancelamento da compra
Previsto no artigo 49 do CDC e no Decreto 7.962/13 (que regulamenta o comércio eletrônico), o direito de arrependimento, também conhecido como prazo de reflexão, é vinculado à realização do ato de consumo fora do estabelecimento físico do fornecedor, considerando a possibilidade de marketing agressivo e a ausência de contato imediato com o bem a ser adquirido.

O dispositivo assegura que “o consumidor pode desistir do contrato, no prazo de sete dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio”, situações que foram adaptadas às compras por meio eletrônico.

O não cumprimento do direito de arrependimento por parte das empresas de venda de ingresso é o problema mais relatado no site Reclame aqui, que reúne relatos de consumidores sobre suas experiências de consumo, possibilitando a resposta e resolução do caso pelas citadas. Na categoria “empresas de ingressos” o site apresentava, até o fechamento desta edição, 2.025 reclamações sobre “estorno do valor pago” e 1.364 sobre “cancelamento de compra”. Entre as que mais desrespeitam a política de cancelamento prevista no CDC estão, nas denúncias dos consumidores, a Ingresso rápido, Ingresso.com e Tickets for fun, que são, também, as mais utilizadas nas compras de entradas para shows, espetáculos e cinema.

De acordo com os relatos, compras realizadas na véspera têm seu cancelamento impossibilitado pelo prazo estabelecido por alguns sites, de desistência até 24 horas antes do evento em questão. “Isso contraria o direito ao arrependimento. Se a compra foi realizada em até sete dias, o consumidor tem o direito de cancelar, mesmo que seja no dia do evento, até a hora em que se inicia. Após sua realização, isso obviamente não se aplica, portanto esse prazo é menor quando uma pessoa compra faltando, por exemplo, três dias para um show. Esses três dias valerão como seu prazo para o arrependimento e o cancelamento sem taxas”, explica Biondi.
 
Práticas abusivas em vendas por lotes
A reportagem da TRIBUNA conversou com consumidores que compram ingressos pela internet e constatou que o problema mais relatado na categoria shows e festivais, e que é menos observado em casos de eventos esportivos ou cinema, é a venda por lotes de forma que os entrevistados considera arbitrária.

A publicitária Tayrine Figueiredo, por exemplo, conta que, interessada em uma concorrida festa no Vivo Rio, acessou o site Tudus, responsável pelos ingressos, no horário em que a venda seria liberada, para garantir o preço mais barato de primeiro lote. Porém, diz que enfrentou problemas e, minutos depois do início da comercialização, quando enfim conseguiu realizar a compra, o ingresso já estava mais caro.

“O site só permitia a aquisição de uma meia entrada por cadastro, e avisava isso apenas na conclusão da compra, depois de termos preenchido tudo. Eu estava comprando para mim e para mais duas amigas que tinham direito legal à meia entrada por serem estudantes. Com o aviso de impossibilidade, precisei voltar à primeira página. Nesse tempo o lote virou, e, mesmo com o ingresso no meu carrinho, foi cobrado o valor mais caro. Além disso, tivemos que comprar duas entradas no valor integral para, dias depois, a festa liberar ingressos com 50% de desconto para quem levasse 1kg de alimento não perecível, possibilidade que não existia no início”, relata ela, que, após fazer uma reclamação direta à empresa, teve estornado o valor pago a mais.
Outro caso é da estudante de moda Camila Martins, que não conseguiu obter informação sobre o número de entradas disponíveis para cada lote no show de Caetano Veloso e Gilberto Gil realizado no Circo Voador, no final de 2015. “Os ingressos começariam a ser vendidos na bilheteria do Circo ao meio-dia. Para não enfrentar o congestionamento da internet e garantir o bilhete, cheguei antes do horário na própria bilheteria física e já havia uma fila, de umas 30 pessoas. As vendas começaram na hora prevista e às 12h12, quando chegou minha vez, fui informada de que o primeiro lote já estava esgotado, pois o sistema era o mesmo das vendas pela internet. Indaguei quantas entradas de primeiro lote tinham sido colocadas à venda e a funcionária não soube informar. Fiz a mesma pergunta repetidas vezes na página do evento e do Circo Voador no Facebook e nunca obtive uma resposta”.

“O problema é que, entre dez pessoas, uma reclama, ou duas. As empresas contam com isso e obtêm lucro desta forma. Se, das dez, seis ou sete reclamassem o cenário seria outro e com certeza as regras de defesa do consumidor seriam mais respeitadas”, observa Biondi, para quem a falta de informação sobre a quantidade de ingressos disponível em cada lote pode ser considerada abusiva.

Rafael Couto, do Procon-RJ, afirma que não há registros desse tipo de reclamação e que o sistema de preços adotado no Brasil é livre: “Não há regulação. A divisão dos ingressos por lotes beneficia o consumidor que compra antes. Mas a defesa do consumidor é um dos limites desse direito que o mercado tem de regular os preços. Em relação ao congestionamento por causa da grande procura em sites de vendas, estes devem ter regras de transparência e organização, de modo que o consumidor não seja lesado. Basta imaginar uma fila de torcedores para comprar ingressos para um jogo na bilheteria. Se não for organizada, acaba em tumulto. É direito do consumidor a reparação de danos causados – e também a prevenção contra eventuais danos”.

Segundo Biondi, o Direito do Consumidor faz um paralelo da questão dos lotes com as compras em promoção nos estabelecimentos comerciais: “Nos anúncios em que o preço é garantido até que se acabe o estoque, a empresa precisa especificar, de forma inequívoca, quanto tem no estoque. Caso contrário, a oferta serve somente para atrair. No caso dos lotes, ou o produtor divulga a quantidade de ingressos promocionais ou estabelece um prazo para a compra por valor mais barato, como acontecia mais comumente até algum tempo atrás”.

Christian Printes, do Idec, reforça: “Apesar de o instituto não ter um banco de reclamações neste sentido, está claro que a prática em si viola o Código de Defesa do Consumidor, pois não respeita o direito à informação clara e precisa ao não disponibilizar o número de ingressos para cada lote e qual o valor de cada lote de forma antecipada. Só de posse dessas informações o consumidor poderá exercer seu direito de ampla escolha e se programar para a compra”.

Uma nova forma de os consumidores denunciarem – e de os advogados da área se inteirarem sobre as empresas mais reclamadas – é o site Consumidor.gov.br, criado pelo Ministério da Justiça para possibilitar a solução alternativa para conflitos de consumo, de forma semelhante à prestada pelo Reclame aqui, porém com dados monitorados pelos Procons e pela Secretaria Nacional de Consumidor.

“É importante que os colegas conheçam essa ferramenta e que o consumidor a utilize; esses dados registrados no Ministério da Justiça sinalizam um caminho para que medidas sejam tomadas de forma a ajustar as práticas aos direitos dos consumidores”, aponta Biondi.

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