17/11/2016 - 15:46

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Quo vadis Estado de Direito?

17/11/2016 - 15:46

Quo vadis Estado de Direito?

INGO WOLFGANG SARLET*
 
A Constituição Federal de 1988 consagrou – depois de um histórico de maior ou menor instabilidade institucional – a noção de um Estado democrático de Direito forte ao menos do ponto de vista formal. Dentre os elementos que identificam um genuíno Estado de Direito não apenas formal, mas material, está o efetivo respeito aos direitos fundamentais e a garantia de uma proteção judiciária eficaz. Além disso, um Estado de Direito que mereça ostentar tal rótulo jamais poderá ser um no qual os fins, por mais nobres que sejam, possam justificar o recurso a qualquer meio, visto que o Estado de Direito é, na sua essência, refratário ao arbítrio, ademais de afinado com as exigências da proporcionalidade e da razoabilidade. Dito de outro modo, não poderá em hipótese alguma tolerar a assim chamada “tolerância zero” ou qualquer modalidade do que se poderia designar de uma espécie de “maquiavelismo jurídico”, ainda que com isso não se esteja a equiparar tal fórmula ao sentido original cunhado por Maquiavel quanto à conquista e manutenção do poder. 

No caso do Brasil atual, já de alguns anos para cá, especialmente desde a visibilidade que o combate à corrupção, à fraude e ao desvio de recursos obteve com os processos do Mensalão e, atualmente, com os escândalos e processos da operação Lava-jato, ainda em curso, está a ser vivenciado um processo de transformação sem precedentes no que diz respeito ao necessário combate da criminalidade do assim chamado “colarinho branco”, abarcando tanto ações de agentes públicos quanto de atores privados. 

A despeito dos eventuais e pontuais excessos, inclusive e especialmente midiáticos, não se questiona o quanto a redução da impunidade que reinava nesse domínio deverá, em sendo consequentemente levada adiante, resgatar e fortalecer não apenas a nossa tão combalida moralidade pública e privada, mas reduzir drasticamente o desvio de bilhões em recursos públicos que deveriam ser destinados não ao financiamento paralelo de campanhas de quem quer que seja ou ao enchimento dos bolsos de alguns tubarões da política e da economia, mas, sim, canalizados para investimentos na educação, na saúde, segurança, moradia e outras áreas onde se fazem necessárias políticas de Estado e não apenas de governo.
 
Aliás, ainda nessa quadra, não é demais lembrar que, para a própria agenda internacional, também os níveis de corrupção pública e privada e de transparência, mas também da confiança nas instituições, são critérios de aferição de o quanto um Estado de Direito cumpre o seu papel. 

Nessa mesma toada é possível afirmar que, assim como se tem percebido no combate ao terrorismo, por ora (ainda!) não tão relevante para o Brasil, também a em si (e reitere-se isso!) benfazeja luta contra a corrupção, a improbidade e a criminalidade econômica, ademais do crime organizado de um modo geral, não pode ser levada a efeito em desacordo com a cogente idoneidade jurídico-constitucional dos meios, ou seja, em desrespeito ao devido processo legal e ao conjunto dos direitos e garantias fundamentais. 

Por outro lado, é compreensível que a manutenção de um necessário equilíbrio e a contenção de todo e qualquer extremismo se tornam tão difíceis e complexos em meio a tantos ataques diretos e tantos riscos, dentre os quais a criminalidade organizada, a criminalidade econômica e a corrupção, que justamente desafiam as instituições do Estado de Direito e testam constantemente e de modo cada vez mais intenso os seus limites.
Nesse contexto, contudo, embora não faltem os que, para combater crime organizado e corrupção, busquem justificar meios normalmente tidos como ilegítimos do ponto de vista da sua constitucionalidade, entendendo que situações extremas somente podem ser enfrentadas com medidas extremas e excepcionais, também não faltam (ainda!) os que se preocupam em travar tal combate (em si necessário e urgente) de modo a manter o mínimo equilíbrio – por mais difícil que seja – entre a liberdade e a segurança.

Desnecessário sublinhar o quanto tal dilema marca a realidade brasileira, palco de crescente sectarismo em diversos planos, ademais de posturas maniqueístas que ora endeusam determinados atores, por mais que de fato estejam cumprindo de modo respeitável e eficaz os seus respectivos papéis e sequer queiram ostentar tais “títulos”, ora demonizam outros e mesmo os próprios deuses e heróis quando eventualmente em algum ponto não mais parecem estar alinhados com a fúria sectária que avança (em parte por razões compreensíveis, considerado o acúmulo de mazelas no nosso país) no corpo social em geral e frequentemente nas opiniões publicadas.

O pior é que nesse ambiente aqueles que buscam manter o equilíbrio e manter uma pauta prudencial e proporcional acabam por ser objeto de ataque não raras vezes advindos das duas frentes, ou seja, da parte dos sequiosos pela punição e repressão a praticamente qualquer custo, bem como da parte dos que continuam aferrados a uma lógica formalista e uma leitura unilateral, reducionista e individualista do garantismo, impeditiva de qualquer meio eficaz para alcançar a punição, ainda que com o respeito ao devido processo constitucional tal como consagrado na Constituição Federal e em acordo com os parâmetros internacionais. 

Tal cenário, aliás, foi também objeto de referência enfática por ocasião dos diversos discursos proferidos por ocasião da posse na presidência do STF dos ilustres ministros Cármen Lúcia e Dias Toffoli. Destacam-se aqui as falas do decano da corte, ministro Celso de Mello, propugnando que o combate da corrupção e da criminalidade econômica e organizada há de se fazer de modo rigoroso, mas de acordo com as exigências dos direitos e garantias individuais, bem como o discurso do presidente do Conselho Federal da OAB, Claudio Lamachia, no sentido de que não se pode tolerar uma Justiça sumária típica de um estado de exceção apenas em função do clamor público, mas, sim, que a justiça deve ser feita com serenidade, cumprindo-se os postulados constitucionais -– ademais de enfatizar que o cenário exige temperança e equilíbrio.

Mas, a despeito do teor de tais discursos e do pleito dos que seguem engajados com a causa de um Estado de Direito efetivo, o momento exige extremo cuidado e vigilância, além de uma postura crítica e proativa na defesa dos direitos fundamentais de todas as dimensões (inclusive de um direito à boa governança), coibindo-se medidas que, a despeito da inquestionável nobreza dos fins almejados, possam (mesmo não de modo intencional) corroer garantias basilares (e cláusulas pétreas) de nossa ordem constitucional democrática, ademais de consagradas de há muito no sistema internacional de proteção dos direitos humanos.
 
*Doutor e pós-doutor em Direito pela Universidade de Munique, professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC/RS, desembargador do TJ/RS

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