14/10/2015 - 17:08

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Comunidades terapêuticas, na um modelo na berlinda

14/10/2015 - 17:08

Comunidades terapêuticas, na um modelo na berlinda

Regulamentado recentemente pelo Ministério da Justiça, padrão de tratamento para dependentes químicos é criticado por militantes de direitos humanos e pelo Conselho Federal de Serviço Social
 
CÁSSIA BITTAR
Alternativa de tratamento terapêutico para dependentes químicos, com modelo residencial e a proposta de preparar os internos para a reinserção na sociedade por meio de atividades educativas, laborais e, na maior parte dos casos, também religiosas, as comunidades terapêuticas se tornaram cada vez mais utilizadas nos últimos anos, paralelamente à expansão do consumo de drogas no Brasil.

Espaços privados e essencialmente sem fins lucrativos, essas instituições passaram a ser adotadas, inclusive, em parcerias com órgãos estaduais de políticas sobre drogas como locais de acolhimento diante da disseminação do crack no país, o que chamou a atenção de militantes da área sobre os repasses de recursos. Hoje, 371 delas têm contrato com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça, correspondendo ao financiamento de cerca de 8.200 vagas, segundo dados oficiais. De acordo com um censo realizado em 2012, mais de 1.800 unidades funcionavam à época no território nacional, atendendo a aproximadamente 60 mil pessoas.

Com o crescimento, foram divulgadas também denúncias por parte de grupos de direitos humanos e conselhos de políticas de drogas no país sobre o funcionamento desses locais, apontando para abusos, imposição de crença religiosa, castigos e impedimento de contato com familiares. Seriam problemas frequentes encontrados nas comunidades, até então sujeitas somente à regulação sanitária por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Nesse cenário, foi lançado, em maio, pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), órgão também do Ministério da Justiça, um marco regulatório para o setor, reforçando o papel inicial previsto para as chamadas CTs, com vetos à contenção física ou medicamentosa dos abrigados.

As regras, estabelecidas na Resolução 1/2015 do Conad, preveem ainda liberdade de entrar, sair e receber visitas, e obrigam as entidades a elaborarem um plano de atendimento específico a cada acolhido, após avaliação prévia de um profissional de saúde. Segundo o secretário nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore Maximiano, o governo considerou a grande adesão ao modelo de tratamento para estabelecer as normas “visando a garantir o respeito à pessoa acolhida”.

“Até então tínhamos exclusivamente um conjunto de normas sanitárias determinadas pela Anvisa. Existia uma lacuna no que toca ao funcionamento dessas instituições. As pessoas têm as comunidades terapêuticas como referência, e era nosso papel regulamentar minimamente o funcionamento delas”, explica.

De acordo com Maximiano, a preocupação principal era garantir a privacidade dos acolhidos, assim como a facilidade de contato com seus familiares. “As comunidades terapêuticas só podem trabalhar com internos que estão lá voluntariamente e as pessoas têm direito de sair na hora que quiserem. Além disso, a reconstrução da autoestima e do vínculo familiar é um processo importante para que elas restabeleçam toda a dinâmica de suas vidas. Esse é um ponto fundamental da resolução”, completa.

O marco regulatório foi formulado por um grupo formado pelo Conad e por integrantes de conselhos profissionais, conselhos estaduais de políticas sobre drogas, organizações não governamentais que tratam da questão e representantes do Conselho Federal da OAB. Porém, apesar de visto como necessário, o texto aprovado gera questionamentos por parte de especialistas.

Membro desse grupo, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) lançou nota em junho manifestando-se contra as normas, que não teriam incorporado as contribuições dadas por seus representantes e “violaria princípios básicos de direitos, sob o risco de contribuir ainda mais para a segregação e exclusão de usuários de drogas e seus familiares, legitimando, com o uso de verbas públicas, o desrespeito aos direitos à saúde, à assistência social e à cidadania”.
Uma das críticas é sobre o tempo máximo de acolhimento – pela resolução do Conad, de 12 meses. “Muitas comunidade trabalham com tempo longo de tratamento, sem que haja evidências que mostrem que tal modelo seja melhor do que o que o nosso conselho propõe, que são 45 dias, renováveis até 90. Esse é o tempo médio, inclusive, utilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS)”, observa o integrante da Comissão de Direitos Humanos do CFP Vladimir Stempliuk.

Outra sugestão do CFP não incorporada foi a de uma equipe mínima qualificada para tratar dos internos. “Geralmente esses locais trabalham com um profissional de saúde e o restante da equipe não tem qualificação necessária para esse tipo de tratamento, geralmente com experiência em programas religiosos. Defendemos o estabelecimento de uma equipe mínima com qualificação científica”, informa Stempliuk.

“Dialogamos muito com o Conselho de Psicologia”, rebate Maximiano: “Houve aprovação. O que sustentamos é que esse processo em comunidades terapêuticas não é de internação, tanto que não se pode constatar internamento involuntário e compulsório. Se isso fosse feito, haveria um retrocesso na luta firmada desde a Lei 10216/2001 [Lei Antimanicomial]. Para estabelecer o período médio, usamos como base os programas terapêuticos das comunidades. O mais estendido é esse, mas muitas trabalham com menos”.

Maximiano ressalta que o texto deixa claro que o modelo não deve ser adotado por dependentes que necessitem de cuidados médicos 24 horas por dia. “O foco da comunidade terapêutica é social. Por isso mesmo o acolhido deve passar por um exame médico antes, seja na rede pública de saúde ou com um profissional escolhido por ele”.

Apesar de não conter nenhuma previsão acerca de financiamento das comunidades terapêuticas, o marco regulatório também serviria, segundo Alessandra Souza, do Conselho Federal de Serviço Social (Cfess), para legitimar esses investimentos. Um dos principais problemas decorrentes disso, segundo ela, é o uso de dinheiro público para os programas religiosos desenvolvidos nos locais – as normas deixam clara a possibilidade de que as instituições façam atividades que propiciem o “desenvolvimento da espiritualidade”.
“Vivemos em um país laico, constitucionalmente laico. Financiar serviços que se colocam claramente com caráter religioso, que muitas vezes impõem determinadas religiões como parte do tratamento, é uma ameaça àquilo que conquistamos com a Carta”, alega Alessandra.

Segundo Maximiano, apesar da abertura para a religiosidade, que seria o reconhecimento do método já adotado com programas bem-sucedidos nesse caráter, a entidade não pode obrigar os internos a seguir determinada linha religiosa: “Isso já é estabelecido na própria Constituição. As comunidades podem continuar, portanto, professando seus credos, assim como uma Santa Casa pode ter uma capela, mas não obrigar ninguém a rezar”.
 
Críticas ao modelo 
Já de acordo com o secretário da Confederação Nacional de Comunidades Terapêuticas (Confenact), Egon Schlüter, algumas atividades religiosas são, sim, obrigatórias, o que difere, para ele, da imposição de conversão. “Os programas das comunidades já contam com essas atividades estabelecidas e participar delas faz parte do tratamento. Porém, isso tudo deve ser apresentado para a família antes da internação. Tanto os familiares quanto o acolhido aceitam esse modelo antes de entrar e, não se identificando, ele sempre tem a escolha de sair quando quiser”.

Vista como ineficaz pelos críticos, a regulamentação deve abrir espaço, segundo o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, Marcelo Chalréo, para que o modelo das CTs ganhe ainda mais força, o que, segundo ele, vai de encontro à política antimanicomial.

De acordo com Chalréo, são recebidas pela comissão denúncias de maus-tratos aos internos, uso de celas, calabouços e demais ambientes de exclusão. “Já foi verificado até uso de eletrochoque”, salienta. “Muitas dessas comunidades se limitam a comida e reza. Há casos, inclusive, de unidades instaladas em chácaras, sítios, fazendas, e em que se verifica o impedimento de acesso à fiscalização sob o argumento de que são propriedades privadas. Isso é um absurdo, já que elas funcionam com algum tipo de autorização do poder público”, completa.

Chalréo se declara contra a própria existência das CTs: “Não adianta regulamentar pois essa regulamentação já existia, por exemplo, na época em que usuários de drogas eram internados em manicômios, e nunca foi cumprida. Eram regras até mais rígidas de fiscalização, participação de profissionais de múltiplas áreas, e a realidade era aquela que todos sabemos. Deve-se investir é no que a Lei Antimanicomial prevê: o tratamento multidisciplinar, arejado, com participação da família, seja para quem tem padecimento psíquico ou dependência química, no modelo dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs). Se já há esse encaminhamento, a única explicação para o investimento nesses centros privados é o interesse das grandes corporações que querem manter as pessoas aprisionadas”.

A posição é a mesma do Cfess: “O Conad anunciou que irá dobrar o financiamento dessas unidades. Diante disso é de se estranhar que o marco regulatório não preveja a fiscalização de recursos destinados às CTs. Há controle social nas unidades públicas, mas a resolução do Conad não fala nada sobre a prestação de contas”, alega Alessandra, sustentando, também, que a medida ideal seria reforçar o investimento nos CAPs, “que são os centros de tratamento previstos nas políticas de saúde mental”.

A assistente social também critica o modelo de tratamento focado na abstinência, não considerando o sucesso da redução de danos, além da exploração de trabalho dos internos: “As atividades laborais realizadas nessas comunidades são aplicadas em um regime quase escravo. As pessoas vendem objetos, por exemplo, e não ficam com o rendimento do seu trabalho. As unidades, portanto, recebem renda pública ou da família e ainda assim o trabalho realizado ali fica para aquela comunidade e para o sustento dela”.

Schlüter, do Confenact, explica que a prática de fato era utilizada por algumas unidades, mas foi extinta com o marco regulatório. “Hoje não são permitidas atividades laborais que exponham o acolhido ou sejam exercidas fora do ambiente da comunidade. Só é permitida essa atividade se exercida por voluntários, que não podem ser internos no momento em que realizam esse trabalho. Se isso acontecer será uma irregularidade, que deve ser denunciada ao conselho”.

Presidente da Comissão de Políticas sobre Drogas da OAB/RJ e integrante do Conselho Estadual de Políticas Públicas sobre Drogas, Wanderley Rebello afirma que não é possível generalizar o funcionamento das comunidades.

“Já estive em alguns desses locais antes mesmo da regulamentação e constatei que funcionam muito bem. Em outros, as pessoas reclamam que ficam praticamente detidas. A mesma coisa se dá quanto à imposição religiosa. Não sou contra os programas espirituais pois eles prestam um bom serviço, mas não pode haver radicalização. O que de fato precisamos, após esse marco regulatório, é intensificar a fiscalização”, afirma.
Também não contemplada no texto, a fiscalização deve ser feita, segundo Rebello, pelos conselhos municipais e pelo Conselho Estadual de Políticas Públicas sobre Drogas, além das inspeções que os conselhos profissionais já realizam. De acordo com Maximiano, o Conad não tinha poder de atribuir poder fiscalizatório a nenhum outro órgão: “Isso continuará sendo competência dos órgãos que já o exercem, como o Ministério Público e a Defensoria Pública, por exemplo”.

Para Rebello, porém, falta investimento público na área. “Considerando que o bom funcionamento desses centros depende da fiscalização constante, a estrutura que temos ainda é precária. Dos 92 municípios do Rio de Janeiro, somente 30 têm conselhos instalados e funcionando. Muitas unidades são no interior, e seria importante sua disseminação para auxiliar o Conselho Estadual em sua atuação. No meio de tudo, esbarramos no desinteresse público”, conclui.

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