14/10/2015 - 17:12

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Prorrogar vacatio do novo CPC é desrespeitar advogados e juízes

14/10/2015 - 17:12

Prorrogar vacatio do novo CPC é desrespeitar advogados e juízes

Quem me inspirou a escrever este pequeno artigo foi o presidente da suprema corte brasileira, ministro Ricardo Lewandowski. Em texto bastante oportuno e claro, o ministro colocou alguns pingos nos “is” que estavam perdidos no entremeio do imaginário dos juízes. Muitos “is” andavam sem o ponto por aí. Cada chapéu, portanto, deve achar a sua cabeça. Ou vice-versa.

Entre outras coisas, disse o ministro-presidente: “Por mais poder que detenham, os juízes não constituem agentes políticos, porquanto carecem do sopro legitimador do sufrágio popular”. Mas a frase mais importante foi: “Tampouco é permitido que proponham alterações legislativas, sugiram medidas administrativas ou alvitrem mudanças nos costumes, salvo se o fizerem em sede estritamente acadêmica ou como integrantes de comissões técnicas”.

Pois bem. Leio a exposição de motivos do Projeto de Lei 2.913/15, assinado pelo deputado Victor Mendes (PV/MA), que pretende estender o prazo de vacatio do Código de Processo Civil para três anos. Sim. É isso. O deputado, ao apagar das luzes do prazo em vigor, quer dar o drible da vaca e espichar o prazo para mais dois anos. E, quem sabe, com outro projeto a ser proposto em setembro de 2018, para mais cinco anos. Poderia o deputado assistir ao filme Os deuses devem estar loucos. Pois ele parece ser o personagem Zi, escalado para levar para fora da aldeia o objeto que causa tanto desconforto aos nativos. Bingo. O deputado Victor é o Zi da ficção. Para quem não sabe, no filme, é jogada uma garrafa de Coca-Cola em uma aldeia de indígenas. Eles não sabem o que fazer com esse objeto estranho...

Mas o que diz a aludida exposição de motivos? O projeto é inspirado naquilo que entende a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB). Também os corregedores-gerais de Justiça aprovaram tese nesse sentido e são mencionados na exposição de motivos. Uma observação importante: é evidente que a posição da AMB não reflete a opinião da maioria da magistratura. Veja-se, nesse sentido, o excelente artigo dos juízes Antonio Carvalho e José Herval Sampaio Júnior, publicado na revista ConJur no dia 16 de setembro de 2015, com o título Prorrogação do novo Código de Processo Civil não é a solução.

É incrível como o novo CPC causa desconfortos e protestos no seio de parcela significativa do Poder Judiciário. Não me parece adequado à democracia que setores da magistratura sejam protagonistas (mesmo que indiretamente) de projeto de lei que pretende estender a vacatio do primeiro código aprovado no regime democrático. O CPC tem problemas? Claro que sim. Imaginemos o texto de 1973. Até hoje não estão solucionados. Mas todas as codificações do mundo apresentam problemas. As leis não são perfeitas. Nenhuma delas possui as respostas antes das perguntas. Estas só surgem da concretude, da sangria do cotidiano. Se uma lei contivesse todas as hipóteses de aplicação, seria uma lei perfeita. Se fosse perfeita, não precisaria de nós, os juristas. Simples assim.

O caminho se faz caminhando. Passo a passo. Transferir o problema para daqui a dois anos e três meses somente dará azo a uma confusão política, porque não faltarão emendas para alterar o CPC antes deste ser experimentado. Na verdade, a vacatio estendida para três anos fará com que relaxemos. E como os juristas têm memória curta, corremos o risco de arquivar o novo código. 

Como já alertei aqui tantas vezes, vivemos um paradoxo: estamos no Século 21 e pensamos (e temos saudades) do Direito do Século 20. Sim, quando se buscavam respostas antes das perguntas. O Direito feito pelo legislador, na França; o Direito feito por professores, na Alemanha; o Direito feito por precedentes (tão duros e herméticos como a lei no exegetismo e as pandectas na jurisprudência dos conceitos), na Inglaterra. Com todos os avanços paradigmáticos, os juristas adoram, ainda hoje, fazer enunciados. O que são enunciados? Conceitos sem coisas. Enfim, nada mais, nada menos, do que a tentativa metafísica de encontrar respostas antes das perguntas. 

Parece que, neste momento, setores da magistratura não se contentam com enunciados, muitos deles feitos na contramão do novo CPC; agora, o ataque é frontal. O alvo? Em um primeiro momento, a extensão do prazo da vacatio; em um segundo momento, a extinção do próprio código. Ele é ruim, dizem. Vai trazer o caos, dizem outros. Vamos salvá-lo com a feitura de enunciados. Milhares deles darão a nova conformação. O que tem sido dito em congressos sobre o novo texto é algo impublicável. Cobras e lagartos. Não me admira, portanto, o projeto do deputado Zi. E não me admirarei se, depois de aprovado o projeto Zi, a aprovação de um novo projeto: a da não entrada em vigor do novo CPC. Que, assim, ficará no limbo. Para as calendas.

Vejam: não sou eu que estou de implicância. Sei que é antipático fazer críticas seguidas à magistratura. Em Pindorama, país notoriamente patrimonialista, sempre se dirá que “é ruim criticar os juízes, porque eles têm a caneta na mão”. Pode ser. Mas temos de colocar o guizo no pescoço do gato.  De todo modo, estou bem acompanhado. Compartilham da mesma opinião o presidente da OAB, Marcos Vinicius Furtado, e os juristas Bruno Dantas, Dierle Nunes, Lucio Delfino e Alexandre Nasser Lopes. E outros milhares.

Enfim, parece que o lema é: para que mudar? Sempre foi assim. Bom, o “sempre foi assim” é, na verdade, uma falácia realista. Por isso, a feitura de enunciados tem uma relação direta com tudo isso que está acontecendo. No fundo, é uma concepção que mistura, indevida e equivocamente, os paradigmas pré-moderno e moderno. Ao mesmo tempo, querem fazer conceitos que antecipam as respostas e, paradoxalmente, tais conceitos advêm de uma concepção solipsista. Alhos e bugalhos, pois. Se ao menos se dessem conta que, para buscar a repristinação de um conceptualismo, não se pode construir tais conceitos a partir de uma livre apreciação. Misturar objetivismo com subjetivismo dá nisso. Vamos ver no que vai dar o tal projeto. Enquanto isso, vale a pena reler o artigo do ministro Lewandowski.

Ainda numa palavra: aceitaria de bom grado – e penso que a comunidade jurídica também – uma extensão da vacatio legis se a magistratura tivesse mostrado, desde o início, seu comprometimento na aplicação integral do novo CPC. O problema é que a extensão da vacatio se mostra como um plus com respeito à desobediência civil em relação aos pontos principais do código. E isso é inaceitável. Como disse, não estou sozinho nesse protesto em relação ao projeto capitaneado pelo deputado Zi-do-PV-do-MA. Somos centenas de milhares de advogados e dezenas de carreiras jurídicas. Mandemos, pois, fonogramas (acho que o deputado Zi ainda usa fonograma) e emails para o parlamentar. Protestem. Não à extensão da vacatio. Sim à implementação do CPC no prazo legal.
 
*Doutor e pós-doutor em Direito; professor titular da Unisinos e Unesa-RJ

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