03/08/2018 - 21:01

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Entrevista - Francisco Carlos Teixeira da Silva

03/08/2018 - 21:01

Entrevista - Francisco Carlos Teixeira da Silva

Entrevista - Francisco Carlos Teixeira da Silva


'O que se disputa hoje nas cidades árabes é o futuro'

Para o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, a surpresa com a revolta popular no mundo árabe expõe a miopia do pensamento ocidental com relação ao Oriente. Professor da UFRJ, ele afirma que os protestos são semelhantes aos que derrubaram ditaduras na Europa e na América Latina. "O que se disputa hoje nas cidades árabes é o futuro", salienta Francisco Carlos, que concedeu a seguinte entrevista à TRIBUNA (entrevista adequada à edição impressa da Tribuna do Advogado. Clique aqui para ler a íntegra da entrevista).


Os últimos acontecimentos no mundo árabe parecem ter pegado o Ocidente de surpresa. A compreensão sobre essas nações estava errada?

Francisco Carlos - A irrupção popular surpreendeu observadores especializados, a grande diplomacia ocidental e a mídia. Pouco antes da explosão, a diplomacia ocidental desdobrava-se em agradar os (tardiamente reconhecidos) tiranos locais. Os EUA sustentaram até a 25a hora sua portentosa ajuda militar a Hosni Mubarak (Egito). A França, ex-potência colonial na Tunísia, manteve até o fim o apoio ao ditador Ben Ali. A ministra da Defesa francesa não só passou férias no país enquanto a ditadura começava a repressão, como ofereceu ajuda "antimotins" e acabou comprando uma casa de veraneio de uma empresa de Ali. A Itália mantinha fortes interesses, representados por um convênio da empresa ENI, no petróleo líbio. Ou seja, havia uma combinação complexa de fatores que impediam o Ocidente de "ler" a realidade. De um lado, fortes preconceitos e, de outro, grandes interesses.


Por que essa visão vigorou por tanto tempo?

Francisco Carlos - O Ocidente pensa o mundo árabe por uma antropologia colonialista, eivada de preconceitos. Cientistas ocidentais, seguidos pela mídia, sempre declararam a inexistência de uma "opinião pública" na região. Mesmo no Egito, onde uma poderosa elite e uma classe média bem educada possuem raízes profundas, era negada a possibilidade de existência de uma "sociedade civil". O mesmo se aplicaria à Tunísia, à Líbia e aos demais, malgrado os íntimos e constantes contatos desses países com os principais fluxos de idéias no Século 20. Os últimos acontecimentos no Egito colocam por terra teses tradicionais das ciências políticas e da percepção da opinião pública ocidental. A tese, velha da Guerra Fria, sobre a pretensa "excepcionalidade árabe", da sua incapacidade para a democracia e, portanto, a aceitação quase acrítica, pelo Ocidente, de todo tipo de ditadura pós-colonial (claro, sendo pró–ocidental) decorreram largamente dos fortes sentimentos pós-coloniais sobre a incapacidade dos povos de passado colonial em organizarem-se de forma aberta, pacífica e democrática. Tal axioma, mantido quase por si mesmo, continuou intacto em relação ao mundo árabe. Explicar-se-ia a ausência de democracia nesses países pela ausência de uma sociedade civil organizada e autônoma. Ambas as teses devem, agora, ser revistas.


O senhor já disse que a "fala árabe" foi distorcida pelo etnocentrismo europeu, cujo olhar para aquela civilização esqueceu da "maioria moderada" do povo. Essa perspectiva caiu?

Francisco Carlos - Tenho dúvidas. O caráter caótico das decisões e das análises dos membros do Conselho de Segurança da ONU, que votaram mais uma vez no princípio da "democracia através de baionetas", e a insistência em se utilizar o conceito de "tribalismo" para falar do mundo árabe são índices da péssima compreensão. O conceito de "opinião pública" foi, para os analistas ocidentais, substituído pela idéia de "rua árabe". Apenas a rua, as praças e o bazar seriam locais de troca de ideias, em substituição precária e esporádica da noção ocidental de "opinião pública", incapaz de se constituir pela pretensa inexistência de uma "sociedade civil" árabe. A "rua árabe" funcionava ora como espaço amedrontado do murmúrio, ora como o local de explosões violentas , sem direção, em geral dominadas pelo "fanatismo". As redes tradicionais de sociabilidade – mesquitas, cafés, reuniões privadas, redes de bandas de rock, instituições de ensino, além da sociabilidade nos locais de trabalho – nunca mereceram apreciação. Assim, criava-se a noção de uma "excepcionalidade árabe", espécie de beco sem saída político, no qual a escolha seria entre regimes autoritários capazes de controlar a multidão feroz ou o caos fanatizado das massas.


Outra ideia ocidental é a de que os movimentos sociais do mundo árabe são sempre islâmicos e radicais, o que não parece, porém, ser marca da atual turbulência. O que querem os que protestam?

Francisco Carlos - A resposta, válida tanta para Túnis, como para Cairo, Benghazi, Sanaa ou Damasco, é liberdade. Vemos hoje uma explosão de projetos de futuro, em busca de uma vida melhor, adequando islamismo e bem-estar social. A "onda islamizante", dominante entre os anos 1980 e 1990, passou. Os jovens que protestam no Cairo são irmãos dos que protestam em Teerã contra a ditadura dos aiatolás. Em Túnis ou Bengazi, não se viam slogans pedindo o estabelecimento da Shari´a, a extinção de Israel ou de ódio aos EUA. As palavras de ordem foram: liberdade política e de participação, crítica às condições sociais e à corrupção. São protestos modernos, que não diferem dos que derrubaram as ditaduras europeias nos anos 1970 ou as latino-americanas na década seguinte.


Há singularidade no caso da Líbia, onde o movimento de contestação parece menos espontâneo?

Francisco Carlos - Na Líbia houve uma cisão nas forças do próprio poder, com parte das forças armadas buscando a derrubada do regime, enquanto no Egito e na Tunísia elas passaram para o lado do movimento popular, e no Bahrein e no Iemen formaram um bloco de apoio ao próprio poder ditatorial. O que se disputa hoje nas cidades árabes é o futuro. A conciliação entre Islã e democracia, lançando por terra prateleiras inteiras de "saber ocidental", encontra-se hoje, no Cairo, com seu próprio destino. Trata-se de desmentir, de um lado, a tradição ocidental baseada no pretenso exotismo do Oriente, e, de outro, das versões integristas do próprio Islã. A novidade surgiu das ruas. Conforme a proclamação do Conselho Supremo das Forças Armadas do Egito, busca- se hoje a construção de um sistema "em que a liberdade do ser humano, o império da lei, a fé no valor da igualdade, a democracia plural, a justiça social e a erradicação da corrupção constituam as bases da legitimidade de qualquer sistema de governo que dirija o país".


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