03/08/2018 - 21:01

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Pontocontraponto

03/08/2018 - 21:01

Pontocontraponto

Obrigatoriedade de autorização para produção de biografias

 

Patrimônio intelectual não importa mais que intimidade


Norberto Flach*

Está bem estruturado o regime brasileiro de proteção jurídica da intimidade e da imagem, entre outros direitos de personalidade.

De fato, a Constituição tutela tais direitos no art. 5º, X, afirmando serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. E lidos sob a luz da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) tais direitos ganham solidez ainda maior.

Assim, resultam na medida desta interpretação os teores dos arts. 20 e 21 do Código Civil, naquilo que asseguram medidas judiciais de inibição ou remoção do ilícito contra a intimidade e a imagem das pessoas.

E se é certo que a mesma Constituição também garante os direitos à informação e à expressão, não menos correta é a afirmação de que tais liberdades não podem ser exercidas à custa de outras garantias.

É isso, aliás, que tem sido reiteradamente afirmado por nossos tribunais e pela melhor doutrina, quando compreende que se trata de conflito complexo entre interesses merecedores de proteção jurídica, cabendo ponderar concretamente os princípios em questão e evitando recair em simplificações maniqueístas.

É verdade que, no atual mundo do espetáculo, das celebridades do minuto e da perseguição de notoriedade a qualquer preço, pareceriam mesmo fora de moda a discrição e a reserva da vida privada e familiar.

Mas a opção pela preservação da discrição não só é feita por muitos como, ainda, merece continuar sendo protegida pelo Direito. E merecem tal proteção, igualmente, as pessoas públicas ou famosas que escolhem manter a sua vida pessoal, íntima e familiar, fora dos holofotes e do escrutínio do público.

Não se pode aceitar, em tal contexto, a insistência em derrogar a proteção dos direitos relacionados a esta dimensão da dignidade da pessoa humana, ainda mais porque a mudança se daria, precipuamente, em benefício da indigna exploração comercial da intimidade e da imagem.

Lembre-se que os bens culturais, que por definição poderiam ser públicos – isto é, de acesso livre e disponível para todos –, no nosso Direito não o são. Ao contrário, estão protegidos e têm assegurada a devida tutela judicial, não apenas a reparatória, mas também a inibitória.

O que dizer, então, do núcleo mais interno da personalidade humana, o cerne da dignidade da pessoa? Acaso o patrimônio intelectual importaria mais do que a intimidade, a honra ou a imagem? Penso que não. Sou contra a pirataria da imagem, da honra e da intimidade das pessoas. De todas as pessoas, mesmo as famosas.

(*) Advogado de Roberto Carlos na ação que impediu a circulação do livro Roberto Carlos em detalhes, de Paulo César Araújo. Professor da Escola Superior do Ministério Público (FMP)

 

Dispositivo traz prejuízo à memória brasileira


Geneton Moraes Neto*

O Brasil adora criar problemas. Em países civilizados, não há restrição à publicação de biografias. Ninguém precisa ir longe para constatar a fartura. Basta uma busca rápida por “biographies” na maior livraria virtual do planeta: a Amazon. Lá, estão à disposição do leitor 566.866 biografias.

Se um biografado (ou herdeiro) se sente atingido por alguma informação publicada, recorre à mais civilizada das armas: a Justiça. Ponto final. Sempre foi assim. Tudo tão simples e cristalino.

Mas, fiel à tradição de parir monstrengos jurídicos que nos cobrem de vergonha e asco, o que foi que nossa República Ensolarada fez? Tratou de dar aos biografados (e herdeiros) o direito de se comportarem como policiais: se quiserem, eles podem vetar previamente a publicação de biografias. Em suma: para todos os efeitos, o país voltou a ter censura prévia! Em algum lugar, o ministro da Justiça do governo Médici, Alfredo Buzaid, deve estar batendo palmas.

É impossível calcular o prejuízo que o artigo estúpido já causou à cultura, ao jornalismo e à memória brasileira: há "n" casos de editoras (e autores) que desistiram de levar adiante projetos de biografias porque não iriam correr o risco de investir tempo, trabalho e pesquisa num trabalho que poderia ser embargado por um herdeiro de mau humor ou um biografado temperamental. Ou seja: há livros e livros que deixaram de ser publicados. Poucos atentam para este efeito colateral do artigo ridículo.

Agora, finalmente, a Câmara dos Deputados, palco de tantos escândalos e tantos absurdos, ganha uma grande chance de prestar um serviço histórico ao país: jogar no lixo o poder estapafúrdio que foi dado a biografados e a herdeiros. O Brasil não pode ter leis de republiqueta bananeira.

Que fique claro: não se discute o direito à privacidade nem o direito à informação. Tanto um quanto o outro são intocáveis. Os dois - tanto a liberdade de expressão dos biógrafos quanto os direitos dos biografados - podem, devem e haverão de coexistir sem qualquer problema. Por que não? É assim no mundo civilizado. Por que não poderia ser no Brasil?

Os leitores estão perdendo a chance de se informar. As editoras estão deixando de publicar livros importantes. Os biógrafos estão desistindo por antecipação de produzir obras que, com certeza, contribuiriam para a memória brasileira. Chegou a hora de estancar esta sangria.

Chega! Basta! Fora! Ao lixo o que é do lixo.

(*) Autor de dez livros-reportagem, entre eles Dossiê Brasília: Os segredos dos presidentes (Ed. Globo), com depoimentos dos ex-presidentes José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, e Dossiê Drummond (Ed. Globo).


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