20/02/2014 - 10:57

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Intercâmbio no Sudão: o status da mulher - Maria Ticiana e Olívia Barbosa

20/02/2014 - 10:57

Intercâmbio no Sudão: o status da mulher - Maria Ticiana e Olívia Barbosa

A Ordem dos Advogados do Brasil possibilitou a realização de um intercâmbio jurídico no Sudão pelo período de três semanas, para o qual foram selecionados cinco advogados brasileiros. Em novembro de 2013, nossa comitiva, formada por três homens e duas mulheres, visitou órgãos públicos, tribunais, escritórios de advocacia, empresas, autoridades nacionais e, ainda, ministrou uma palestra na Universidade de Khartoum, na capital do país africano.

Após uma guerra civil de 22 anos e o genocídio em curso em Darfur, o Sudão é reconhecido como um Estado autoritário, onde todo o poder político está concentrado nas mãos do presidente Omar al-Bashir. Em 2009, o Tribunal Penal Internacional condenou-o pelo cometimento de crimes humanitários, sendo ele o primeiro chefe de Estado em exercício a ser alvo de um mandado internacional de captura, que culminou com a imposição de embargo econômico pelos Estados Unidos.

Nas últimas décadas, o Sudão tem atraído a atenção internacional por diversos aspectos, entre eles, as crises humanitárias e o fundamentalismo islâmico. A longa guerra civil entre o Norte e o Sul, que culminou com a secessão do Sul em 2011, resultou nas mortes de 2,5 milhões de pessoas e no deslocamento de outras quatro milhões. As rebeliões de Darfur foram caracterizadas como genocídio. 
Sob este cenário é que aceitamos o desafio de conhecer o sistema jurídico desta nação islâmica; um país com tantas deficiências políticas, econômicas, sociais e culturais, principalmente no que tange à condição e aos direitos femininos.

Não só no Sudão, mas internacionalmente, a questão da mulher vem sendo intensamente discutida. A convenção internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres, por exemplo, baseia-se no compromisso dos estados signatários de assegurar a igualdade entre gêneros e eliminar todos os tipos de discriminação. Mais de dois terços do membros da ONU já ratificaram o documento, porém o Sudão não pertence a esse rol de países. 

Não é sem motivo que uma pesquisa realizada pela Fundação Thomson Reuters, divulgada coincidentemente durante a nossa visita, considerou o Sudão o sexto país árabe com o pior sistema jurídico de proteção das mulheres, perdendo apenas para o Egito, Iraque, Arábia Saudita, Síria e Iêmen. A explicação para essa situação, além de jurídica, tem base religiosa e cultural.

A segregação entre homens e mulheres na sociedade islâmica, manifestada através de papéis programados, bem definidos e com um grau considerável de submissão, não é novidade. No entanto, a necessidade de reestruturação da economia de um país assolado pela guerra, como o Sudão, fez com que elas desempenhassem novos papéis para reconstrução da nação e permitiu que algumas ocupassem posições profissionais de destaque. Tal fato nos permitiu conhecer mulheres sudanesas estudantes de Direito, advogadas, juízas, membros de comissão de direitos humanos e até ocupantes de cargos do Poder Legislativo. 

Embora o Sudão apresente um sistema jurídico complexo, o qual integra o Common Law, Continental Law e Sharia Law, a lei religiosa ainda atua como reguladora e orientadora da sociedade, e é nela que se encontra a maior parte das normas reguladoras da conduta das mulheres.
 
A Sharia Law codifica as interações sociais e as esferas pública e privada da vida de um muçulmano. Os muçulmanos consideram esse conjunto de normas como a emanação da vontade de Deus, embora a intensidade e a extensão do poder normativo da Sharia varie de acordo com o contexto histórico e geográfico. No Sudão, a lei islâmica engloba assuntos como casamento, divórcio, herança e a guarda e custódia dos filhos.

No Sudão, o homem tem o direito unilateral ao divórcio e não precisa justificar-se perante qualquer órgão judicial. Por outro lado, caso a mulher deseje se divorciar deve apresentar sua reivindicação perante um tribunal islâmico com base em um dos fundamentos jurídicos aceitos, como a falta de condições financeiras do marido para a subsistência da família.

A guarda das crianças no caso de divórcio é responsabilidade legal do pai. A lei autoriza que a mãe permaneça com seus filhos menores – até os sete anos para um menino e nove para uma menina. Todavia, para isso, estabelece determinados requisitos, como, por exemplo, a mãe não poder manter uma ocupação que a mantenha longe de casa por longos períodos. O novo casamento de uma mulher é, geralmente, suficiente para privá-la da guarda.

Não obstante a normativa religiosa, certamente, ao ocuparem posições sociais importantes, como advogadas, juízas e etc., as mulheres sudanesas evoluíram e deram um grande passo rumo à transformação social, enfrentando o desafio de promover a modernidade sem no entanto perder a integridade de sua cultura islâmica. 

De toda essa experiência, cujo propósito inicialmente era jurídico, mas que ao final mostrou-se um grande laboratório de sociologia, filosofia e mesmo antropologia, fica o desejo de continuar o trabalho de exploração das sociedades espalhadas pelo mundo, principalmente no que tange ao papel da mulher, tão distintas, na sociedade ocidental nas esferas jurídica, social e política, mas ao mesmo tempo tão próximas nos anseios, aspirações e aflições.
 
Maria Ticiana Campos de Araújo e Olívia Alves Barbosa são Advogadas integrantes da Comissão de Intercâmbio do Conselho Federal
 
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