17/02/2014 - 10:16

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‘No Júri, prevalece o popular in dubio pau no réu’

17/02/2014 - 10:16

‘No Júri, prevalece o popular in dubio pau no réu’

Autora, entre outras, da obra Jogo, ritual e teatro: um estudo antropológico do Tribunal do Júri, Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, professora e coordenadora do Núcleo de Antropologia do Direito da Universidade de São Paulo, presenciou centenas de julgamentos, analisou perfis de réus, vítimas, jurados e testemunhas, e pesquisou a elaboração de imagens e narrativas construídas pela defesa e pela acusação.
 
Ao descortinar o funcionamento do Tribunal do Júri no país, ela o viu como um espaço de reflexão social, onde consensos a respeito de valores como lealdade, fidelidade, vingança, honestidade e honra são determinantes em absolvições e condenações.
 
Leia a entrevista.
 
Na tese de doutorado que deu origem ao seu livro, a senhora escreveu que, dependendo de como as mortes são contadas e imaginadas dentro de um Tribunal do Júri, os possíveis usos do poder de matar são socialmente legitimados ou não. Quem melhor manipular as imagens criadas e teatralizadas no cenário da corte estará em vantagem para a absolvição ou condenação do réu?

Os desempenhos de defensores e acusadores – suas capacidades de elaborar e narrar versões dos acontecimentos – são, sem dúvida, determinantes no desfecho dos julgamentos. O importante, porém, é enfatizar que, justamente por serem os tribunais do júri cenários sociais privilegiados para a atualização de valores sociais, eles atuam como canais através dos quais tais valores fluem. Em outras palavras, mesmo defensores ou acusadores considerados brilhantes podem não ser bem sucedidos se suas argumentações contrariarem estereótipos do senso comum hegemônico. Fica igualmente mais fácil para eles construírem narrativas que, de antemão, contam com a adesão do senso comum, geralmente presente nos julgamentos dos jurados.
 
Enfim, consensos sociais dominantes a respeito de lealdade, fidelidade, vingança, honestidade, honra e tantos outros valores sociais é o que, no fundo, determina absolvições e condenações.

Como o citado penalista Roberto Garcia, a senhora também avalia que no Brasil, os jurados, por falta de formação cultural voltada ao respeito às garantias fundamentais, podem comprometer a absolvição ou condenação do réu? Vigora a ideia de que o acusado é culpado, não se levando em conta o princípio "na dúvida, pró-réu"?

Como antropóloga, eu diria que é por causa de certa formação cultural, baseada em valores hierárquicos não igualitários, representada por muitos jurados e principalmente reiterada em estereótipos utilizados por defensores e acusadores, que prevalece o popular in dubio pau no réu (princípio da culpa) e não o princípio legal do in dubio pro reo (presunção de inocência).
 
Complexas elaborações culturais (e não a falta delas) levam à conclusão de que determinados tipos de seres humanos, suspeitos de cometerem crimes, são potencialmente culpados, perigosos, danosos, sendo "melhor prevenir do que remediar". Este caminho nos permite perceber que existem grupos sociais, no Brasil, historicamente marginalizados (não brancos, não heterossexuais, pobres, mulheres, pessoas portadoras de "deficiências", desviantes de padrões comportamentais considerados "normais") e que, por isso mesmo, são excluídos do gozo de direitos, como do direito à presunção da inocência.

Ano passado, a senhora participou, como testemunha da defesa, do julgamento do estudante Gil Rugai (condenado pelas mortes do pai e da madrasta, em São Paulo). Como foi essa experiência?
 
Foi uma das mais ricas que eu já vivi como antropóloga estudiosa do Tribunal do Júri e o que eu respondi à pergunta anterior vivenciei durante os cinco dias desse julgamento. Por tudo o que li dos autos, do que foi veiculado pela mídia e, principalmente, por tudo o que acompanhei durante o Júri, tanto de dentro quanto de fora dos "bastidores", Gil Rugai é um ótimo exemplo de alguém que, por fugir a determinados padrões, foi pré-condenado. Aliás, aceitei o chamado dos defensores para depor como antropóloga especialista em júri, não porque estava convicta da inocência do acusado, embora tampouco o estivesse de sua culpa, mas porque ele se enquadrava perfeitamente no estereótipo do "garoto estranho" que, por isso (e não com base em provas incontestes), tinha tudo para ser o assassino. Ele foi assim construído, desde a coleta de provas, na fase do inquérito policial (foram selecionados "indícios" do que provava sua "esquisitice"), até a lógica que sustentou toda a arguição do acusador. 
 
Em uma das considerações finais de sua tese, a senhora diz que cabe refletirmos se o papel do júri se resume a regras de procedimento processual ou se ele é um espaço para que a sociedade tente produzir uma cidadania ativa. O que pensa hoje a respeito?
 
Eu só considero o Júri um ótimo objeto de estudo antropológico porque estou convicta de que seu papel jamais se resumiu ao de (re)produtor de meros procedimentos processuais. Aliás, quaisquer desses procedimentos carregam valores que vão muito além de questões neutras e imparciais. Não creio na existência de técnicas neutras. Sigo, inclusive, estudando o Tribunal do Júri no Brasil (atualmente, comparo alguns de seus aspectos com similitudes e discrepâncias em relação ao júri francês), porque parto do princípio de que ele é uma espécie de palco em que o complexo exercício da contínua construção da cidadania está sempre em jogo.
 
Nas sessões de julgamento no Brasil, assistimos a muito mais do que absolvições e condenações de suspeitos de terem cometido crimes dolosos contra a vida. Assistimos, em ato, à produção e reprodução de valores que embasam o cerne da cidadania, ou seja, ao que socialmente se entende por vidas legítimas e mortes ilegítimas ou por vidas ilegítimas e mortes legítimas.
 
(entrevista feita por Patrícia Nolasco)

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