15/12/2014 - 17:54

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Cadê os direitos para a minha insemi nação?

15/12/2014 - 17:54

Cadê os direitos para a minha insemi nação?

Falta de regulamenta ção sobre reprodução assistida é aponta da como principal causa de infrações éticas e criminais
 
RENATA LOBACK
A primeira criança nascida por fertilização in vitro tem 35 anos. No Brasil, usamos técnicas de reprodução assistida há mais de 25 anos. Mas até hoje, ao contrário de outros países, não possuímos qualquer regulamentação legislativa sobre o tema. Os procedimentos são, desde 1992, guiados por resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM). De acordo com especialistas, é justamente esta falta de normas jurídicas a principal causa de infrações éticas e crimes, como os do ex-médico Roger Abdelmassih – capturado em agosto deste ano e condenado a mais de 278 anos de prisão.

 Pelas investigações do CFM, os números da clínica de Abdelmassih, reconhecida internacionalmente e com clientes famosos, eram superiores à média de outras clínicas brasileiras. Isso porque a instituição utilizava material genético não autorizado pelos casais que a procuravam para obter melhores resultados. Alguns pais, após exames de DNA, comprovaram que os filhos gerados não tinham nenhuma ligação genética com a família. O ex-médico utilizava óvulos de mulheres jovens para produzir embriões com mais chance de vingar, prática proibida por resolução do Conselho, mas que não gera punição criminal alguma.

A não ser pela cassação do seu diploma, explica o presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/RJ, Bernardo Campinho, Roger Abdelmassih não sofreria qualquer penalidade legal caso não houvesse praticado crimes de estupro e outros abusos – o ex -médico foi acusado de 52 violações e quatro tentativas em 39 mulheres. Para Campinho, a norma ética e disciplinar do Conselho Federal de Medicina é válida porque cria um marco mínimo de defesa dos direitos dos pacientes e de responsabilização do médico, mas há muitas questões na área cível e de princípio de legalidade que ainda geram dúvidas.

“Esta não é uma matéria que afeta exclusivamente a temática das relações de saúde e médica, mas também tem implicações patrimoniais, em relações de família e parentesco. Esse pequeno apanhado, sem nem entrar na questão criminal, já mostra o quanto é prejudicial ao Brasil não ter uma regulamentação sobre este tema”, ressalta.

José Luiz Barbosa Pimenta, integrante da mesma comissão, lamenta que no país, quase sempre, o Direito esteja a reboque das transformações sociais, consumando com atraso os avanços e as criações da sociedade. “Nesse vácuo, criado pela ausência de regulamentação específica sobre a reprodução assistida, passamos a ter uma única norma, a resolução do CFM, presa aos limites do ordenamento médico, sem qualquer interferência no âmbito social da questão”, pondera.

Apesar de proibido pela Resolução 2.013/2013 do CFM, a mais recente sobre o tema, não é difícil encontrar na internet anúncios de homens e mulheres oferecendo seus materiais genéticos para fertilização assistida ou dispondo-se a servir de barriga de aluguel, mediante pagamento. A doação de gametas – óvulos e sêmen –, diz o Conselho de Medicina, nunca deverá ter caráter lucrativo ou comercial e a identidade de doadores e receptores não pode ser compartilhada. Da mesma forma a doação temporária de útero, a chamada barriga de aluguel, também não pode envolver lucro e só é permitida entre parentes de até quarto grau. Mas como coibir este mercado ou punir os envolvidos se na legislação brasileira não há tipificação penal para esses casos que, portanto, não podem ser tratados como crimes?

O artigo 15 da Lei 9.434 de 1997 veta qualquer tipo de comercialização de partes do corpo humano, comenta o presidente da Comissão de Bioética e Biodireito. “Há uma controvérsia sobre se podemos ou não aplicar a Lei de Transplante aos casos de reprodução assistida. Até porque na época em que a lei surgiu a preocupação era com o tráfico de órgãos, não havia a discussão em torno da venda de gametas. Entendo que o caminho não é este, o da criminalização”, defende Campinho.

Segundo o advogado, a discussão pretérita sobre se vale a pena ou não proibir tal tipo de comércio cai na mesma questão de valores em torno da legalização das drogas: “Do ponto de vista normativo isto é proibido no Brasil. Mas, na falta de uma lei, vivemos em um terreno pantanoso, em que se retira a responsabilidade ética desta prática”.
 
“Há muitas discussões sobre a eficácia da proibição. No Reino Unido, em alguns estados norte-americanos e na Índia existe a autorização para a cobrança da barriga solidária e para a venda de gametas. O que prova que é possível fazer isto com resultados satisfatórios. Mas nem tudo é perfeito. Na Índia, por exemplo, há indícios de clínicas que exploram as mulheres, obrigadas a ficar isoladas por exigência dos casais que as contrataram. A resolução do CFM proíbe a comercialização aqui no Brasil, e no entanto a gestação implica custos para a barriga solidária. Nesse contexto, é legítimo tratar o pagamento como um reembolso? Não há consenso”, aponta Campinho.

De acordo com ele, o debate sobre o tema deveria se centrar na exploração de mercado feita por médicos, clínicas e agências, e não nas pessoas envolvidas emocionalmente com a compra ou a venda. “Acho negativas as respostas que o Direito Penal pode aplicar a estes casos. O que resolveria seria a universalização do acesso à saúde reprodutiva, e particularmente às técnicas. Ter um filho é parte do direito ao planejamento familiar, como dimensão da intimidade da vida privada e da própria liberdade da pessoa. O que permite este tipo de relação contratual em alguns estados americanos e no Reino Unido é uma boa regulamentação, com práticas sociais e investimento no sistema de saúde. Mas esses casos são exceções.
 
No Brasil, temos que tirar o tema das discussões de mercado, de quem tem acesso ao recurso e, por isso, à técnica, e pensar em novas alternativas. Mas para isso é fundamental uma regulamentação”, pontua.
Na opinião do tesoureiro do Conselho Federal de Medicina e coordenador da Câmara de Reprodução Assistida da entidade, José Hiran Gallo, os perigos de envolver uma transação pecuniária em relações afetivas são uma das principais razões de o CFM proibir a comercialização de gametas e o aluguel de barrigas. 

“Recebemos muitas críticas de que não estimulamos a ampliação de doadores de gametas, o que não condiz com a realidade. O Conselho é muito atento ao pensar em ideias de expansão da reprodução assistida, tanto em técnicas como em acessibilidade. Em nossa última resolução admitimos uma doação compartilhada, em que casais que precisam de embriões doam seus materiais genéticos a casais que necessitam de gametas. Processo feito dentro do anonimato entre as partes envolvidas. Da mesma forma, ampliamos o grau de parentesco de quem pode servir de útero de substituição: mãe, irmãs, avós, tias e primas. A única parte que não consideramos alterar é o envolvimento de recompensas financeiras dentro destes procedimentos”, explica Gallo.

Para ele, não há sentido em tratar um nascimento por meio de negociação pecuniária. “Essas relações têm que ser por amor, não por negócio. Até porque em contratos pecuniários as partes envolvidas podem voltar atrás, desfazer o acordo. Imagina querer rescindir algo que é afeto a sentimentos tão profundos como a relação de pais e filhos. Não podemos abrir a brecha de discutir relações afetivas no campo dos direitos do consumidor”, defende. Nos dois pontos de vista, um consenso: já passou do tempo de o Judiciário dar a palavra final sobre os limites aceitáveis para a fecundação assistida.
 
Há mais de dez anos deputados tentam aprovar projetos de lei regulamentando a reprodução assistida no Brasil. O mais recente é o PL 4.892/2012, de autoria do deputado Eleuses Paiva (PSD/SP). Para ele, o conservadorismo que influencia as ações de alguns parlamentares, bem como a pressão das religiões tradicionalistas contrárias a algumas técnicas científicas, é o que tem dificultado a regulamentação.

Por informações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), conta Paiva, há mais de 120 clínicas de reprodução assistida, sendo apenas 77 delas cadastradas. “O risco que essa realidade impõe merece a atenção do Legislativo. As denúncias crescem no Judiciário, por conta dos atos ilícitos, dos crimes cometidos, da aplicação inconsequente e não regulamentada das técnicas médicas reprodutivas. Os textos que já tratam da questão estão distantes de ser considerados ideais pela comunidade médico-científica. Por isso, os legisladores têm de debater e aprovar propostas modernas e abrangentes, em defesa da população e de seus direitos, em especial este, da procriação”, observa o deputado.

Caso o PL 4.892/2012 já estivesse em vigência, o ex-médico Roger Abdelmassih poderia ter sido condenado a mais dez anos de detenção pelos seguintes artigos: “art. 80: intervir sobre o genoma humano com vista à sua modificação sem finalidade de terapia gênica da descendência, com pena de detenção de dois a cinco anos e multa; e art. 81: misturar o material genético de duas ou mais pessoas causando a confusão na origem biológica do ser concebido por técnica de reprodução assistida, com pena de detenção de dois a cinco anos e multa”.

A cobrança de qualquer espécie de remuneração para a cessão temporária de útero seria passível de detenção de dois a cinco anos e multa (art. 86); e a venda e compra de gametas ou quaisquer células germinativas passível de reclusão de três a oito anos e multa (art. 87).

Para José Luiz Barbosa Pimenta, a aprovação do PL representaria um avanço, ainda que o projeto tenha deficiências, por não tratar de certas questões. “Essa discussão no âmbito dos projetos de lei é fundamental. Melhor ainda se forem feitas audiências públicas para o seu aperfeiçoamento”, sugere. 
Um dos pontos a que o PL 4.892 não faz menção é a reprodução em casais homoafetivos. Ao contrário da resolução do CFM, que aborda esses casos, não há nada especificado no projeto. Para Bernardo Campinho, a situação é grave do ponto de vista simbólico, porque é um fator em que o consenso médico e a sociedade já avançaram, mas o silêncio sobre o assunto não pode mais ser considerado uma negativa.

“Com a decisão do Supremo Tribunal Federal pela equiparação das uniões homoafetivas como entidade familiar [Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277] não podemos interditar o acesso desses casais à filiação. Logo, no quadro constitucional brasileiro, o silêncio não pode ser interpretado como uma negativa. Houve silêncio parecido na Lei de Adoção, por pressão da bancada evangélica. Mas a Justiça já tinha entendimento muito consolidado com base na Lei de Igualdade, do melhor interesse da criança e prosseguiu aplicando esse interesse extensivo a todos os casais. Hoje não vejo, em sua maioria, grandes controvérsias doutrinárias. Claro que há juízes que ainda não permitem, mas é segmento minoritário dentro do Judiciário. É um retrocesso mais difícil de se concretizar”, afirmou.

O lapso deixado pela demora na tramitação é o que faz com que a lei, ao nascer, já esteja obsoleta, assinala José Luiz Pimenta. Em tramitação desde 2012, o PL 4.892 está parado para apreciação do plenário desde fevereiro de 2013, data do seu último despacho. Já o Conselho Federal de Medicina promete para o início do próximo ano uma versão atualizada para a resolução que regulamenta a reprodução assistida no país.

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