15/12/2014 - 17:30

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Delação premiada

15/12/2014 - 17:30

Delação premiada

As várias distorções que transcendem o processo penal

Renato de Moraes*
O tema é controvertido. Tangencia questões éticas e morais, passando pelo inalienável direito de defesa. Importada do direito alienígena, mais precisamente da Itália, a delação premiada açula o presumidamente inocente a desvestir-se das garantias inerentes à dignidade da pessoa humana.

Enxergo no instituto ampliado pela Lei 12.850/2013 várias distorções que transcendem o processo penal. 
A primeira, e mais óbvia, diz com o exemplo que significa conferir benefícios a quem “alcagueta”. Nos bancos escolares, o “dedo-duro” era destinatário da pena de degredo. Anima-se algo perverso não no Direito, mas na sociedade. Algo que nos ensinaram e ensinamos aos nossos filhos a não fazer. Deseducar é muito mais sério do que um processo criminal.

Outro aspecto que impressiona, e a messe forense tem demonstrado isto: quem delata é beatificado; quem é alvejado pelo dardo da maledicência do acusador destituído de credibilidade, como decerto assentaria Altavilla, recebe o ardor do inferno punitivo, sem qualquer chance, ao menos perante juízes que se põem como combatentes da criminalidade, olvidando-se da imparcialidade, da serenidade e da isenção, apanágios da boa prestação jurisdicional.

Dá-se, nos dias atuais, a inversão da lógica elementar da Constituição, de acordo com a qual a presunção de não culpabilidade é de prevalecer até o trânsito em julgado, segregando-se a liberdade de suspeitos, em tortura psicológica, para obter confissões, pois o delator, que promete devolver valores indecifráveis à Justiça, nada sofre, e o suspeito que nega os fatos, exercendo a defesa, sofre com prisão ilegal.

Um terceiro eixo também está a merecer reflexão: a colaboração premiada, que não é um mal necessário, descortina a fadiga do Estado-investigador/acusador em suas funções constitucionais.
 
E ainda: ao invés de meio, tanto que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador” (art. 4º, §16), a plea bargaining abrasileirada tem sido adotada como fim em si mesma, embasando, inclusive, custódias cautelares. Do modo como manejada, em casos de apelo midiático, no lugar de inibir a criminalidade, servirá de incentivo ao malfeitor, pois a ânsia persecutória se volta precipuamente à recuperação de ativos desviados, representando menos o conteúdo da delatio. 

Quanto mais se oferecer à Polícia e ao Ministério Público, mais acarinhado será o delator pelo Judiciário, em acordos nebulosos que podem encaixilhar-se como prevaricação, praticando-se, indevidamente, ato de ofício ou deixando de praticá-lo. Roubar-se-á, então, em escala maior para que, se descoberto, possa o tido por delinquente negociar endinheirado.

A solução para restaurar-se a deferência dos governantes pelos governados e para o arrefecimento da impunidade nunca bordejou o Direito Penal, e não será a ode à delação o desencadeador da nova ordem pretendida.
 
*Advogado criminalista e diretor do Instituto dos Advogados Brasileiros

É necessário garantir eficiência e segurança 

Murilo Kieling*

 
Como regra, a primeira coisa que um criminoso foragido faz é mudar de identidade. A segunda é frequentar um templo. Daí, ao deflagrar essa breve reflexão sobre o instituto da delação premiada, não caminharei distante do extrato de realismo que habita o cotidiano forense.

Exortando no espírito qualquer expectativa de descoberta mágica sobre o porvir da Justiça criminal e de sua efetividade no embate entre o direito de punir e o direito de liberdade, não há como negar a valiosa contribuição do instituto da delação premiada, desde que satisfeitos os propósitos de sua inspiração legislativa.

Impregnados pelas ideias abolicionistas resultantes de um sincretismo filosófico, os dizeres sobre a nova disciplina legal dos institutos criminais acabam criando desafio aos magistrados, especialmente os que militam na jurisdição criminal e, portanto, partícipes da realidade desta sociedade rica de vícios, enfermiça e violenta. A hermenêutica, como resultante de uma espécie de autonomia do pensamento interpretativo, não pode funcionar como elemento divisor ou de identificação dos denominados juízes criminais “garantidores”.

Em última razão, todos são garantidores da correta aplicação da lei processual e apenas divergem sob a leitura dos dispositivos legais e o espectro de suas repercussões.
    
É preciso cultivar e defender com veemência a proteção dos direitos fundamentais individuais, mas a ordem jurídico-constitucional prevê outros direitos – coletivos e sociais – e também deveres.

Uma visão míope, fruto do embevecimento produzido em razão das sedutoras construções libertárias, acaba por incutir nos operadores da máquina judiciária a necessidade de uma proteção integral, urgente e imediata, exclusivamente dos direitos fundamentais individuais dos cidadãos. 

Caminham sob tais construções as dissidências que se apresentam sobre o instituto da delação premiada. O primeiro dizer estaria a incidir sob a perspectiva sócio-psicológica, pois imagina-se a mesma como “imoral” ou “aética”, pois estimula a traição, comportamento insuportável para os padrões morais modernos, seja dos homens de bem, seja dos mais cruéis criminosos.

O segundo dizer alcança o território jurídico-normativo, pois a delação premiada, indiretamente, rompe com o princípio da proporcionalidade da pena. Não parece exigir maior esforço a dissipação do argumento, pois o princípio da individualização da pena já se prestaria a resolver tal angústia. O terceiro dizer alcança a instrumentalidade do instituto, pois concebido como ferramenta de rara aplicação.  

Em termos práticos, não basta a mera delação para que o criminoso se beneficie, pois ela deve resultar na efetiva libertação do sequestrado, ou, nos casos de quadrilha ou associação criminosa, na prisão ou dissipação do grupo.

Vozes opositoras acenam para a materialização de uma espécie de apologia à perfídia, a ponto de representar agressão aos objetivos expostos na Constituição, isto é, um atentado à construção de um Estado democrático, destinado à consolidação de uma sociedade fundada na harmonia social e pautada em valores como a justiça, a segurança e o bem-estar.

Ora, a delação premiada está inspirada exatamente na expectativa de uma sociedade na qual os homens possam viver em harmonia e libertos dos transgressores das leis. Por mais amplo que seja o debate a respeito da eticidade do instituto, é inegável que a medida contribui na busca do esclarecimento de crimes graves e na recomposição patrimonial.

A melhor dicção dos postulados garantistas conduz a assertiva de que o Estado deve levar em conta que, na aplicação dos direitos fundamentais individuais e sociais, há a necessidade de garantir também aos cidadãos a eficiência e segurança.
 
*Juiz titular do 3º Tribunal do Júri da Capital do Rio de Janeiro, professor de Processo Penal

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