15/12/2014 - 16:58

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‘Matemática [em julgamentos] pode ser questão de vida ou morte’

15/12/2014 - 16:58

‘Matemática [em julgamentos] pode ser questão de vida ou morte’

No livro A matemática nos tribunais, escrito a quatro mãos com Coraline Colmez e recém-lançado no Brasil pela editora Zahar, a norte-americana Leila Schneps analisa dez processos criminais nos quais evidências baseadas em princípios da ciência dos números tiveram resultados desastrosos. São casos como o de Sally Clark, condenada injustamente com base no cálculo de estatística feito por um médico, pelo assassinato dos dois filhos, ainda bebês. Ou de Amanda Knox, inocentada de acusação de homicídio graças a uma operação de probabilidade coalhada de equívocos.

Envolvendo desde um episódio do fim do Século 19 até julgamentos ainda passíveis de recurso, as histórias são narradas com todos os pormenores. E o livro apresenta as incorreções matemáticas, algumas delas bastante intrincadas, de forma didática, acessível a não iniciados. “Compartilhamos os dramas de pessoas que viram suas vidas dilaceradas por erros simples, mostrando que a matemática pode ser, de fato, uma questão de vida ou morte”, afirma a autora.

Leila, que é formada em matemática pela Universidade de Harvard e hoje coordena pesquisa na Universidade de Paris, defende que os números podem, sim, auxiliar nos julgamentos, mas alerta que é preciso aprender com as falhas. “Deve haver algumas salvaguardas para se ter a certeza de que a utilização da matéria está sendo feita de modo correto”, salienta.

 
MARCELO MOUTINHO

Como surgiu a ideia do livro?
Leila Schneps – Tenho interesse por julgamentos criminais há um longo tempo, e antes disso, pela ficção criminal. Acompanhando alguns crimes que foram noticiados, particularmente o de Lucia de Berk [enfermeira condenada injustamente à prisão perpétua, em 2001, pela morte de sete pacientes], tomei conhecimento sobre o grave problema dos argumentos matemáticos usados de forma errada no tribunal, à frente de um juiz, ou de um júri, que não pode necessariamente defender-se contra informações enganosas.

A matemática é uma ciência exata e, na avaliação do senso comum, seria menos falível e subjetiva em suas comprovações. Por que suscitou tantos erros em julgamentos, como mostram nove dos dez casos tratados no livro?
Leila Schneps
– Há três razões principais: (1) A matemática foi deliberadamente apresentada de forma enganosa por advogados, que questionaram peritos matemáticos de tal forma a obter apenas a informação errada que queriam, e o juiz e o júri aceitaram as declarações; (2) No caso dos peritos, eles apresentaram deliberadamente informações enganosas ou então cometeram erros de matemática ou estatística; (3) A matemática foi usada e apresentada corretamente na corte e levou a um veredito correto, mas um juiz de apelação sentiu que era muito difícil que o júri compreendesse isso, e considerou que os cálculos não devem ter lugar em uma deliberação do júri. Assim, os vereditos foram anulados em recurso.

E por que a opção por casos em que aconteceram equívocos?
Leila Schneps
– É um primeiro passo para refazer a maneira como a matemática é usada no processo, para se ter certeza de que é usada de modo correto. Temos que aprender com os nossos erros, é a única maneira de nos certificarmos de que não voltarão a ocorrer.

Depois de analisar tantos casos em que aconteceram erros, a senhora ainda acredita no uso da matemática para elucidar crimes?
Leila Schneps
– Sim, absolutamente. Mas deve haver algumas salvaguardas. A matemática deve ser utilizada por especialistas que tenham credenciais para isso, com técnicas reconhecidas publicamente, e seus resultados devem ser apresentados de forma completa, sem que os advogados escolham certas declarações ou apresentem os resultados à sua própria maneira.

Qual das dez histórias comentadas mais chamou sua atenção? Por quê?
Leila Schneps
– Os dois casos mais atuais foram os que primeiro me chamaram a atenção e me fizeram perceber a importância do problema: Lucia de Berk e Amanda Knox. O caso de Lucia de Berk é especialmente importante porque continua a acontecer. Há neste momento um jovem enfermeiro, Ben Geen, preso na Inglaterra pelo mesmo tipo de problema com cálculo e avaliação estatística enfrentado por Lucia. E há outros. O caso Amanda Knox é surpreendente por diferentes razões, que têm a ver com um enorme esforço de relações públicas em sua defesa, distorcendo demonstrações matemáticas a fim de negar a evidência. Mas, como analisei o depoimento no tribunal nesse caso, percebi que o perito tinha feito algumas declarações muito erradas sobre a probabilidade estatística de parte do DNA.

A matemática, como a senhora revela no livro, também influiu em um caso célebre: o de Alfred Dreyfus. Mais uma vez, um erro de probabilidade. E, mais uma vez, cometido por um não matemático. Hoje ainda seria possível que um especialista em outra área seja ouvido com credibilidade no julgamento ao apresentar uma operação matemática como prova de algo?
Leila Schneps
– Sim, este é um problema real. Na verdade, hoje em dia os estatísticos não são considerados especialistas em DNA. Os biólogos é que são. No entanto, a verdade é que, após a fase inicial de extração de DNA e a obtenção de um perfil, a análise do que esse perfil representa é pura estatística, e não biologia. Os chamados “especialistas em DNA” nem sempre têm a experiência necessária para fazer uma análise estatística difícil. Foi o que aconteceu no caso Amanda Knox. No entanto, têm ocorrido casos nos quais a evidência estatística sobre o DNA é dada, no tribunal, por um estatístico, e isso é questionado pelo outro lado, pelo fato de que esse profissional “não é especialista em DNA”. Até que essa situação seja corrigida, haverá erros nos tribunais.

Com o avanço das pesquisas de DNA, a tendência é que a matemática seja cada vez mais utilizada em julgamentos. Como evitar que novas imprecisões aconteçam?
Leila Schneps – De modo geral, os erros matemáticos que acontecem nos tribunais precisam ser classificados e compreendidos, e os juízes e advogados precisam ser treinados para reconhecê-los, a fim de que possam evitá-los. Não existem muitos erros diferentes daqueles que, na realidade, têm ocorrido. Com referência específica ao DNA, deveria haver um sistema de análise completamente aprovado pela comunidade científica internacional, que concentrasse todas as informações de DNA e usasse as estatísticas mais avançadas para determinar todas as possíveis interpretações e suas probabilidades. Algo como uma calculadora: não sabemos sobre o seu funcionamento interno, mas sabemos que é totalmente confiável. Tal sistema permitiria também evitar a necessidade de “interpretações” de perfis de DNA que levam a erros, além de objeções e divergências no tribunal. Na verdade, esses sistemas já começaram a ser criados, mas ainda não são usados nos tribunais, e especialistas em DNA (os biólogos) são contrários a eles porque consideram que a interpretação é algo de sua área de especialização.
 

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