15/12/2014 - 17:34

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Na obra de Jorge Amado, aulas de Direit o Penal

15/12/2014 - 17:34

Na obra de Jorge Amado, aulas de Direit o Penal

EDUARDO SARMENTO

Com títulos publicados em 52 países e traduzidos para 48 idiomas e dialetos, Jorge Amado é unanimidade de crítica e público em qualquer lista que enumere os mais destacados escritores brasileiros de todos os tempos. Analisar tão difundida obra sob viés singular foi o estímulo do advogado criminalista e escritor Sérgio Habib ao idealizar o livro Ideias penais na obra de Jorge Amado, lançado pela editora Consulex este ano. “Sempre fui fã dos personagens amadianos. Desde jovem, antes mesmo de cursar a faculdade de Direito, fascinavam-me as histórias repletas de figuras que, apesar de sua simplicidade, desvendavam a complexidade da alma humana”, afirma.

Baiano de Itabuna, assim como Jorge Amado, o autor trata de um livro em cada capítulo, destacando as características multifacetárias de seus personagens e dando ênfase especial àquelas que apresentam correlação com o pensamento penal, seja por meio de condutas desviantes específicas, seja por suas atuações nos cenários nos quais se desenrolam os acontecimentos. “Foram três anos relendo os trabalhos dele, pesquisando e destacando os aspectos penais. Ao todo, percorri novamente 25 romances”, conta Habib.

Do homicídio qualificado por motivo torpe até delitos de lesões corporais, passando por latrocínio, roubo, furto, crimes contra os costumes e contra a honra, estupro, atentado violento ao pudor, calúnia, difamação e injúria, são diversas as ideias penais identificadas por Habib. “Ninguém melhor do que ele soube, com elevada arte e particular engenho, demonstrar um iter criminis de um adultério, que até há bem pouco tempo era crime e tinha tipicidade no artigo 240 do Código Penal”, constata na abertura do livro.

O fato de Jorge Amado ter cursado a faculdade de Direito não influenciou diretamente sua obra, segundo Habib, que faz de forma constante o contraponto entre o romancista e o penalista. “Acredito que não teve peso. As características de suas personagens se dão muito mais pela vivência com sua família na região do que por um conhecimento acadêmico”, avalia.

Por ser grapiúna como Jorge Amado, Habib elege como seu romance favorito Terra do sem-fim, que trata do desbravamento do sul da Bahia para o plantio de cacau – por muito tempo – a força motriz da economia da região. Além dos pistoleiros a cometer assassinatos, a obra contém momentos de adultério e charlatanismo. “Diz muito da nossa região em uma época de conquista de terras. Para lá migravam todos aqueles que, entre pobres e desesperançados, sonhavam com o enriquecimento rápido lavrando as terras de cacau, para, uma vez ricos, retornarem para suas cidades. Tal situação resultava em trabalhos arriscados, que envolveriam grande espírito desbravador e renúncia”, completa, lembrando Cacau, Gabriela, cravo e canela, Tocaia grande e São Jorge dos Ilhéus como livros que também tratam do ciclo do cacau.

Outra obra destacada é O gato malhado e a andorinha sinhá, escrita por Jorge Amado em 1948 como presente ao filho João Jorge, que completava um ano de idade. Publicado apenas 28 anos depois, em 1976, após ter suas páginas datilografadas ilustradas pelo desenhista argentino naturalizado brasileiro Carybé, o conto trata de um caso de amor entre duas espécies diferentes. Segundo Habib, muitos encaram a obra como uma história para crianças, mas a crítica social contida no texto deve ser analisada sob uma ótica de seriedade. “Poderia ser interpretada por adultos, ajudando-os a entender, por meio dos bichos, como se comportam os seres humanos diante de determinadas situações”, explica.

Homenageado com o texto, João Jorge também é advogado e concorda com Habib ao reafirmar a pouca influência da formação acadêmica na obra do pai, que, além de escritor, foi eleito, em 1945, deputado federal pelo Estado de São Paulo, tendo participado da Assembleia Constituinte de 1946 pelo Partido Comunista Brasileiro. “A relação de Jorge Amado com o Direito Penal ultrapassa os conhecimentos adquiridos na faculdade, ou mesmo sua vivência como réu e condenado, por mais de uma vez, incurso na Lei de Segurança Nacional durante a ditadura Vargas”, afirma.
 
Corroborando mais uma vez o entendimento do autor, João atribui à experiência de vida o conhecimento humano traduzido por Jorge Amado em suas páginas. “O universo de seus personagens é composto, em sua grande maioria, por pessoas pobres, trabalhadores, biscateiros, vagabundos, prostitutas, pessoas que vivem à margem da sociedade. O povo brasileiro da época, em resumo. As condições de vida desse povo o levam frequentemente a confrontos com a polícia e a comparecer às barras dos tribunais”, sublinha Habib.

A análise social e o conflito de classes são outro ponto frequentemente destacado. Como exemplo, o autor cita Capitães da areia, obra das mais conhecidas, publicada em 1937 e transformada em filme em 2011. O enredo se passa em Salvador e retrata a vida de um grupo de menores abandonados, comandados por Pedro Bala, filho de líder operário morto durante uma greve. Habib lembra esta personagem como uma fonte de aprendizado maior do que o estudo de tratados jurídicos. “Foi preciso que lêssemos os garotos a furtar pelas velhas ruas da Bahia para percebermos que o artigo 155 do Código Penal, que trata do delito de furto, ou o Estatuto da Criança e do Adolescente não podem ser simplesmente aplicados sem mais nem menos. Foi necessário que o penalista Jorge Amado desnudasse o universo daquelas crianças raquíticas e imberbes para que pudéssemos enxergar que, com suas faltas ou atos infracionais, não eram tão culpadas como pareciam ser aos olhos de uma sociedade burguesa ocidentalizada”, destaca.

A visão de Jorge Amado sobre da polícia, costumeiramente praticando violências e arbitrariedades a serviço das elites, reforça sua defesa histórica dos oprimidos contra os opressores. Segundo João, o assunto era habitualmente pautado em ambiente familiar. “A posição assumida por meu pai, tanto em seus romances quanto em sua atuação política foi sempre a favor das religiões populares, contra a intolerância e o fanatismo dos guardiões da ‘verdadeira fé’, dos fracos contra os fortes, do socialismo contra o capitalismo, do povo contra o anti-povo. Isso sempre foi tema e fez parte da nossa formação, minha e de minha irmã, desde a mais tenra idade”, frisa.

Para Habib, a leitura da obra de Jorge Amado, mais do que entretenimento, traz o entendimento de que ninguém é de todo mau, nem de todo bom. Compreender as personalidades delinquentes de suas criações é, segundo ele, uma aula. “Em seus romances encontramos bem mais Direito do que em infindáveis obras jurídicas sobre a ciência penal. Suas personagens são a dramatização do Código Penal”, resume.
 

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