16/05/2018 - 14:33

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Encontro de gerações

16/05/2018 - 14:33

Encontro de gerações

Advogada de 95 anos e colega de 21 se encontram para uma conversa sobre as histórias de cada um e suas experiências na profissão

CLARA PASSI

A OAB/RJ tem 139.983 advogados ativos. Nas pontas desse rol estão Paulina Mochcovitch Gelbert, de 95 anos, a colega mais antiga que a TRIBUNA DO ADVOGADO conseguiu localizar entre eles, e Leonardo Veloso Vieira, de 21, o inscrito mais jovem e também o mais recente até o fechamento desta reportagem. Ela firmou compromisso com a Ordem em 10 de julho de 1946 e ele, em 21 de março neste 2018. Na carteira dela, está gravado o número de inscrição 3.840, que recita de cor. Na dele, a sequência 217.933. Os dois, acidentalmente, personificam épocas muito distantes na história da Ordem e, sobretudo, na trajetória de mulheres e negros no Direito.
 
Em 1946, a cidade do Rio de Janeiro era capital da República. A então Secção do Distrito Federal (ainda não se usava o termo Seccional) e o Conselho Federal estavam sediados no quarto andar do Palácio da Justiça, à Rua Dom Manoel, nº 29, no Centro, onde hoje funciona o Museu da Justiça e o Centro Cultural do Poder Judiciário. O presidente do Conselho era Raul Fernandes, também diplomata e ex-deputado federal filiado à Arena. O mundo havia recém-saído da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e o Brasil se despedia da ditadura do Estado Novo. Um golpe liderado pelos generais Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra apeou Getúlio Vargas do poder, abrindo caminho para que Dutra fosse eleito pelo voto popular. A promulgação da Constituição de 1946 garantiu a manutenção da república federativa presidencialista, o voto secreto universal para maiores de 18 anos e a divisão do Estado em três poderes independentes.

No front doméstico, no entanto, as mulheres continuavam subjugadas. No processo de admissão de Paulina, formada pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (atual UFRJ), há um parágrafo de arrepiar qualquer feminista: a autorização do marido, José Gelbert, para que a mulher pudesse “exercer sua profissão”, em conformidade com artigo 233, inciso IV, do Código Civil Brasileiro. “Essa exigência tola era a maior dificuldade para a mulher no Direito. O marido tinha que consentir que a esposa fosse uma profissional liberal e até que abrisse uma conta bancária. Ele tinha tanto direito que hoje não deve haver mais mulher que concorde”, diz a advogada, na sala de seu amplo apartamento em Copacabana, cheio de mobília em estilo clássico e porta-retratos de família, onde recebeu a equipe da revista e o colega novato. “Pouquíssimas mulheres da minha turma foram advogar. Trabalhei no fórum e meu chefe nos aconselhava a recusar convites de juízes para visitar os gabinetes. Não havia reciprocidade no tratamento”. Seu marido, ela conta, era um gaúcho com laivos de machismo. “Ele dizia que esposa se tratava ‘na bota’. Eu, hein, só se for com a vovozinha!”. Paulina pergunta a Leonardo se a cabeça dos homens de hoje é a mesma de antigamente. “Ainda existe algum machismo, isso não está zerado. Mas as mulheres ganharam mais voz. A própria Ordem vem colaborando com isso, até inseriu o Direito da Advogada no Estatuto da OAB [em 2016]. As mulheres estão cada vez mais independentes, tendo suas prerrogativas específicas”, explica ele, sob o olhar incrédulo de Paulina. 

Nativo digital, Leonardo chega ao mercado de trabalho em meio a processos eletrônicos e petições online. Assim que se formou, criou o perfil @direitoempautarj no Instagram para divulgar notícias e dicas da área. Nascido e criado em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, filho de um segurança e uma técnica de enfermagem, ele carrega a responsabilidade de ser o primeiro da família a ter ensino superior. Imbuído pela mesma facilidade de comunicação e espírito de liderança que moveu Paulina e certo de que o Direito era “um chamado”, fez vestibular aos 16 anos. Sedento pelo diploma, formou-se pela Universidade Estácio de Sá no fim do ano passado e já tem escritório montado em Duque de Caxias. As áreas escolhidas são criminal, consumidor e família. “Como vim da Baixada, um lugar bem carente, via muita desigualdade social. Sempre me perguntei o que poderia fazer pela população, como poderia lutar pela Justiça”, conta ele, que aponta como ídolo o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa. “Quando disse aos meus pais que seria advogado, foi o maior orgulho. É até hoje. Acabei inspirando vários primos a também fazer faculdade”. Mesmo depois de muita água rolar por baixo da ponte da inclusão social dos negros no Brasil, Leonardo conseguia contá-los nos dedos entre seus colegas de turma. Mas quando começar a frequentar a Seccional, Leonardo encontrará espaços para discutir as questões raciais, como a Diretoria de Igualdade Racial e o GT Mulheres Negras, por exemplo.

Paulina é filha de imigrantes judeus vindos de Belz, cidadela da Ucrânia perto da Rússia, que aportaram no Rio na década de 1920, sem ter tido oportunidade de estudar por causa do antissemitismo que grassava naquela região da Europa. Ouviu de seu pai que ele preferiria que ela lhe desse o diploma do rabino em vez do de Direito, já que orgulho mesmo, naquela época, era a moça arranjar um bom casamento. Mas Paulina viu na advocacia um caminho possível entre as parcas e áridas opções que se apresentaram na época. “Entre química, engenharia e arquitetura, achei que esse fosse um caminho mais fácil”. Entrou na faculdade em 1941 e, antes mesmo de se formar, em 1943, começou a trabalhar na Legião Brasileira de Assistência (LBA).
Fundado no ano anterior pela então primeira-dama, Darcy Vargas, o órgão assistencial público ajudava as famílias dos soldados enviados ao combate, contando com o apoio da Federação das Associações Comerciais e da Confederação Nacional da Indústria. “Eu entrevistava nossos heróis de guerra e os representava nos casamentos, fazendo o papel do noivo. A finalidade era que eles voltassem ao Brasil entusiasmados pela família recém-formada”, lembra ela. Depois, Paulina acabou enveredando para o Direito Imobiliário e a LBA caiu em desgraça na gestão da primeira-dama Rosane Collor, em 1991. A instituição foi alvo de diversas denúncias de esquemas de desvios de verbas, como uma compra fraudulenta de 1,6 milhão de quilos de leite em pó. Acabou extinta no primeiro dia do mandato de Fernando Henrique Cardoso, em 1995. 

O prestígio da OAB e da advocacia perpassou as décadas, garantem os dois. “É um grande orgulho fazer parte dessa classe. Por mais que existam problemas, ainda é muito respeitada. Quando mostro minha carteira em recepções de hotel, sinto-me quase um ministro. Sempre fui aconselhado pelos professores da faculdade a me envolver com tudo o que fosse possível na Ordem”, diz o rapaz. Nem se quisesse, Paulina teria a mesma facilidade que os advogados de hoje têm. O Conselho Federal instalado no Silogeu tinha uma estrutura mais modesta e menos aberta do que o prédio da Marechal Câmara, 150.  “A imagem do Conselho era de muita consideração. Quando mostrava minha carteirinha todos pensavam que era maior do que sou”, diz Paulina.

Depois de sentar os convidados à mesa de refeições de madeira e fazer servir salada de frutas com leite condensado, bolos, pães de queijo, café e refrigerante (nada de diet ou light para Paulina, ninguém se engane), a conversa desceu uma oitava.  Se antes não lhe faltou coragem para rir do machismo, agora ela se vê vencida pela fragilidade física. Seus passinhos são lentos, com auxílio de um andador e da ajudante, por causa de sequelas de uma fratura no fêmur. Ela suspira: “Não esperem envelhecer, jovens. Façam tudo.
Porque quando velho, você quer, mas não aguenta. Eu queria poder pular corda, botar um biquíni e dar um mergulho no mar. Jovem não tem tempo e velho não tem assunto.” Leonardo propõe selfies e sorrisos para registrar o momento em posts nas redes sociais. Mas ela questiona: “Sua namorada não ficará com ciúme? Se quiser, convide-a à minha casa para que ela veja que sou moça de família”. 
 

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