15/03/2016 - 18:12

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As injustiças da Justiça criminal

15/03/2016 - 18:12

As injustiças da Justiça criminal

RENATA LOBACK
 
Nazareno Antônio de Sousa passou os últimos 24 anos preso, sem nunca ter sido julgado.  Há quatro anos, ele poderia ter recebido sua liberdade, por prescrição do homicídio que supostamente cometera. Mas Nazareno foi mantido em cárcere, provisoriamente. O caso agora está arquivado. Ele foi achado morto no dia 24 de fevereiro, aos 51 anos. Morreu no hospital penitenciário Valter Alencar, em Teresina. Morreu de tanto esperar. Muitos outros presos agonizam no Brasil, na mesma esperança: um julgamento, com provas, acusação e defesa; uma pena justa, alinhada à gravidade do delito cometido, quando cometido. 

O Instituto Sou da Paz, em parceria com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (Cesec), analisou a situação de sete mil aprisionados em flagrante na cidade do Rio de Janeiro. De acordo com a pesquisa, divulgada ano passado, 54% deles foram encarcerados indevidamente e tiveram os processos arquivados ou ganharam penas alternativas em regime aberto. Apenas 18% dos presos receberam condenação para o regime fechado. Dos sete mil, 772 foram absolvidos. Os dados são de 2013 e apontam que, em média, eles passaram 101 dias em cárcere, antes de terem direito a um julgamento.

Para o coordenador da área de Sistemas de Justiça e Segurança Pública do Sou da Paz, Bruno Langeani, as injustiças têm causas bem claras: demora na apresentação do preso a um juiz [a pesquisa é anterior ao projeto Audiências de Custódia, do Conselho Nacional de Justiça] e pouca investigação.

Advogado criminalista há 37 anos, Bernardo Campos Carvalho, que atua no Tribunal do Júri de São Paulo, afirma que as falhas do processo criminal começam pela carência de provas. “São muito comuns os inquéritos baseados apenas em declarações de testemunha. Há lugares em que ainda se tenta realizar a perícia, mas o agente conta, apenas, com uma câmara fotográfica como equipamento”, lamenta Carvalho, para concluir: “Os processos são fechados com provas esfaceladas e contraditórias e o juiz, já sobrecarregado, fica sem instrumentos para uma boa apreciação”.

De acordo com o presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ, Breno Melaragno, já é possível observar melhorias e mais investimentos na perícia, ao menos na Polícia Civil do Rio de Janeiro. No entanto, ainda há muito a ser feito: “O avanço tecnológico nos permite provas de enorme peso, enquanto estudos apontam cada vez mais falhas nos depoimentos de testemunhas. Mesmo assim, ao analisar os processos, ainda é possível observar uma valorização maior às provas testemunhais”.

Para o presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF), André Morisson, há dois fatores para o baixo índice de provas técnicas: pouco conhecimento das ferramentas tecnológicas já disponíveis e recursos escassos e/ou mal empregados.

O diretor do Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto, Reginaldo Franklin Pereira, ao depor na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar os autos de resistência e mortes decorrentes de ações policiais no Estado do Rio de Janeiro, em audiência realizada na Assembleia Legislativa (Alerj) no dia 25 de fevereiro, afirmou que o número de peritos vem sendo reduzido gradativamente, o que prejudica a elaboração de laudos. “O estado possui 70 vagas em aberto para perito criminal e 170 para legistas. O último concurso foi em 2009 e desde então não houve renovação ou ampliação nos quadros”, disse. 

Segundo informações do Departamento Geral de Polícia Técnico-Científica (DGPTC) do Estado do Rio de Janeiro, sob responsabilidade da Polícia Civil, são produzidos diariamente inúmeros laudos pelos peritos da entidade. De acordo com dados disponíveis no Portal de Transparência, 50% das investigações em inquéritos complexos no estado são concluídas no prazo máximo de um ano. No entanto, o órgão também atribui a demora aos recursos escassos e à grande violência urbana. 

Em campanha pela aprovação da PEC 325/2009, que estabelece a desvinculação dos peritos da Polícia Civil, Morisson acredita que esteja neste ponto a solução para o estímulo do uso de provas técnicas em investigações. “A Polícia aloca mais recursos na aquisição de armas, coletes e viaturas do que na instalação e manutenção de cromatógrafos, microscópios balísticos, videocomparadores espectrais, laboratórios de DNA e outras ferramentas, que certamente incrementariam o papel dos laudos na solução de crimes”, diz. 

Para o Departamento Geral de Polícia Técnico-Científica, a solução não estaria apenas na independência dos peritos e sim na autonomia de toda a Polícia. O correto, afirmam fontes da área, seria a criação de uma secretaria de Polícia Civil, com autonomia administrativa e financeira. Somente com a independência haverá o fortalecimento da estrutura, a exemplo de órgãos como o Ministério Público, sustentam. 

Breno Melaragno também vê na independência uma solução: “A função investigativa e o sistema penitenciário estão nas mãos do Poder Executivo. Mas melhorar estas realidades não dá votos. A autonomia daria mais liberdade para um trabalho de excelência na investigação e consequentemente maior justiça ao Direito Penal”. 
CSI brasileiro

Grandes laboratórios de perícia, a exemplo dos seriados norte-americanos sobre polícia investigativa, estão nos planos dos órgãos ligados ao sistema judicial brasileiro, mas sem muito sucesso, segundo especialistas. Para estimular o uso de DNA nas investigações criminais, o Ministério da Justiça e as secretarias de segurança dos estados reúnem, desde 2009, dados em uma Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG).

Em 2012, a Presidência da República propôs a Lei 12.654, estabelecendo a coleta de perfil genético como forma de identificação criminal. Em 2013, o Decreto 7.950 instituiu, oficialmente, o Banco Nacional de Perfis Genéticos e a RIBPG, com o objetivo de auxiliar a troca de informações na investigação de crimes que deixam vestígios e na identificação de pessoas desaparecidas. 

No entanto, no relatório divulgado pelo Ministério da Justiça em janeiro, o banco mantinha apenas 26 amostras identificadas criminalmente; 53 de condenados; e apenas um registro colhido por decisão judicial. A soma corresponde a somente 1,3% dos 60 mil condenados por crimes hediondos e violência grave do país. A Lei 12.654, contudo, prevê que todos eles deveriam ser submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, por meio de extração de DNA. O relatório também apontou 1.524 vestígios colhidos em vítimas e/ou em cenas de crimes.

A Polícia Civil do Rio de Janeiro afirma já possuir o software de comparação genética Codis, o mesmo utilizado pelo FBI (Departamento Federal de Investigação americano) e manipulado na popular série dramática Crime Scene Investigation – CSI, centrada nas investigações de um grupo de cientistas forenses do departamento de criminalística da Polícia de Las Vegas. 

Segundo o Departamento Geral de Polícia Técnico-Científica do Rio, o programa existe há oito anos, mas esbarra na burocracia jurídica e na legislação falha para se conseguir utilizar a tecnologia a favor da investigação criminal. No Brasil, ainda é necessária uma autorização judicial para a coleta de material genético.

 A prova pericial baseada no DNA por diversas vezes livra inocentes acusados e identifica culpados, constata o presidente da Comissão de Segurança Pública da Seccional. “Mas o artigo 5º da Constituição Federal prevê, como garantias fundamentais de todo cidadão, o princípio da presunção de inocência e o direito do preso de permanecer calado, sem que isso pese contra ele, incisos LVII e LXII, respectivamente. Desses princípios constitucionais deriva o direito de não produzir provas contra si, que também encontra respaldo na Convenção de Direitos Humanos de 1969, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica”, explica Melaragno.

O pouco cuidado com as cenas de crimes é apontado pelo criminalista Bernardo Carvalho como o outro fator responsável pelo esvaziamento do uso do DNA nas investigações. “Ao contrário do que vemos nas séries investigativas, dificilmente é possível colher material genético nesses locais. Falta preparação da polícia para a preservação e o isolamento da cena e, por incrível que pareça, em algumas cidades falta até mesmo o material básico para os peritos realizarem a coleta”, observa.

O despreparo da polícia e as falhas em sua investigação já foram debatidos na OAB/RJ em diversas ocasiões. Uma das mais marcantes foi a campanha Desaparecidos da democracia, lançada em 2013 pelo presidente Felipe Santa Cruz. Segundo o diretor de Prerrogativas da Seccional, Luciano Bandeira, foi esta iniciativa que impulsionou a discussão sobre o elevado índice de autos de resistência no país, alertando sobre os poucos esclarecimentos e as circunstâncias dessas mortes. “O nosso movimento gerou uma CPI na Alerj e projetos de lei”, destaca Luciano.  

Atualmente, o Código de Processo Penal autoriza qualquer agente público e seus auxiliares a utilizarem os meios necessários para atuar contra o suspeito que resista à prisão. Não prevê, no entanto, as regras para a investigação do uso de força nesses casos.
 
Audiências de custódia
 
Implantado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em fevereiro de 2015, o programa Audiência de Custódia registrou 2,7 mil denúncias de tortura policial e maus-tratos a pessoas presas em todo o país. A informação foi apresentada pelo presidente do CNJ, ministro Ricardo Lewandowski, no Fórum Nacional de Alternativas Penais, ocorrido no final de fevereiro, em Salvador (BA).   

O programa, que consiste na garantia da apresentação do preso a um juiz em até 24 horas nos casos de prisão em flagrante, está presente nos tribunais das 27 unidades da Federação e já realizou quase 50 mil audiências. Deste total, os magistrados evitaram que 25 mil pessoas ingressassem no superlotado sistema prisional brasileiro, o quarto maior do mundo com cerca de 600 mil presos.  Apenas 4% dos liberados nas audiências de custódia voltam a ser detidos, segundo dados do CNJ.

Para Bruno Langeane, o excesso de encarceramento, mesmo antes do julgamento e para crimes sem uso de violência, respondia a um anseio popular mal direcionado e “um tanto esquizofrênico, que via na prisão a única solução para a falta de segurança pública, ao mesmo tempo em que não acreditava nela para a recuperação do criminoso”. As audiências de custódia vieram coibir injustiças, diz. 

O advogado Bernardo Carvalho concorda com o coordenador do Instituto Sou da Paz, mas é reticente ao reafirmar que as desigualdades do país ainda não permitem a plenitude do funcionamento de mais este projeto. “Por mais de uma vez o Direito Penal conviveu com boas idéias, que não avançam por conta de má administração pública e entraves burocráticos”.

Em 2011, o Conselho Nacional de Justiça implantou aquilo que também se apresentou como uma solução para as prisões injustas: o Cadastro Unificado de Mandados de Prisão. O sistema pretendia unificar em único banco de dados os mandados expedidos em todo o país, para facilitar a troca de informações. “Acontece que a comunicação ainda é falha”, destaca o presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB/RJ.

“É um problema antigo, que melhorou um pouco, mas ainda não está solucionado. O juiz expede um mandado com validade de dois anos, pessoas são presas, postas em liberdade, e depois de dez anos ainda correm o risco de, ao serem paradas em uma blitz, por exemplo, retornarem ao cárcere, porque a administração não deu baixa no mandado”. Para Melaragno, o problema é de ordem técnica e administrativa, e ocasionado, principalmente, por falhas de comunicação entre as instituições.

“Em descompasso às propostas para melhorar o sistema penal e garantir direitos, o Supremo Tribunal Federal divulgou, em fevereiro, decisão que determina a execução de penas ainda na segunda instância, antes do trânsito em julgado”, lamenta o presidente da Comissão de Segurança Pública. 

“O Código Penal é claro ao prever quatro tipos de prisão (em flagrante, temporária, preventiva e decorrente do trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória). O Supremo criou uma quinta espécie, que contraria o princípio constitucional da não culpabilidade e a própria lei processual penal. Mudar este entendimento ainda é desnecessário, pois já é permitido às cortes superiores determinarem o trânsito em julgado se considerarem haver muitos recursos protelatórios. Somos o quarto país em que mais se encarcera no mundo,  apesar da sensação de impunidade. Talvez a gente esteja prendendo mal”, analisa.
 
Vara única, atrasos

O Rio de Janeiro possui uma única Vara de Execução Penal, com um juiz titular e quatro auxiliares. Para os especialistas, o acúmulo de todos os processos nesta mesma serventia gera atrasos, demora no acompanhamento e grande dificuldade para a advocacia atuar nas execuções penais. No entanto, o maior prejudicado, aponta o diretor de Prerrogativas da OAB/RJ, é o cidadão que está cumprindo ou já cumpriu a sua pena e sofre com um atraso efetivo no exame da sua condenação. “A Diretoria de Prerrogativas está atenta e terá mais uma vez uma atuação muito firme junto à VEP”, adianta Luciano Bandeira.

O núcleo de Prerrogativas da Seccional já garantiu algumas conquistas aos advogados, como o plantão de atendimento dos juízes auxiliares, a possibilidade de acesso ao VEP Total, sistema eletrônico da serventia, e a reforma dos parlatórios nas penitenciárias do estado, convênio da Ordem com a Secretaria de Administração Penitenciária e com o juiz-titular da Vara de Execuções, Eduardo Oberg.

Mas segundo o sub-diretor de Prerrogativas da OAB/RJ, Diogo Tebet, os advogados ainda encontram dificuldades para despachar pleitos com os magistrados, reclamam de constantes atrasos no trâmite dos processos, “que passam por setores burocráticos inacessíveis” e relatam absurdos, como a intimação por Diário Oficial para apresentação de cliente já apenado, para o início do cumprimento da pena.

“Perante as autoridades policiais ainda há resquício de autoritarismo no sistema inquisitivo, que geram obstáculos à atividade advocatícia em franca violação ao Estatuto da Advocacia e à recente Lei 13.245/2016, que permite o acesso do advogado a autos de inquérito policial e de prisão em flagrante, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital (art. 7o., inciso XIV)”, detalha Tebet. Todos esses pontos terão a atenção da Diretoria de Prerrogativas nesta gestão, afirma o sub-diretor.

Não bastassem as falhas na investigação, as demoras do processo e a precariedade do sistema penal, o advogado criminalista ainda é obrigado a conviver com o julgamento da população, que por vezes critica a defesa de criminosos. “Atuamos sobre as falhas processuais. Lutamos para que todos tenham o direito a um julgamento justo. Nós não trabalhamos para fomentar a impunidade e sim pela aplicação legal da pena. Somos atacados pela sociedade, pelos promotores e pelos juízes. É muito desgastante a rotina de um advogado criminal”, afirma o criminalista Bernardo Carvalho.

Para Luciano Bandeira, cabe, também, à OAB esclarecer a verdadeira posição do advogado na sociedade: “A criminalização da advocacia é o primeiro passo rumo ao Estado autoritário e a postura da Ordem será muito firme de defesa do exercício do direito da advocacia criminal e do respeito ao direito de defesa e às garantias constitucionais”.
 
Questionamentos
“De que adianta aumentarmos a pena de homicidas se não conseguirmos identificar 90 de 100 autores destes crimes, que continuarão impunes? De que adianta dificultar a progressão de regime para roubos com armas, se a polícia só pega uma parcela ínfima, por falta de capacidade de investigação? Precisamos voltar os olhos para as estratégias que deram certo, não para as respostas imediatas e populistas”, protesta Bruno Langeani. 

Mesmo com tantas dificuldades e uma profissão árdua, Bernardo Campos diz que nunca pensou em abandonar a advocacia criminal. “Recentemente fui procurado por uma família que buscava uma possível progressão de pena para um parente em cárcere há dois anos, dentro de uma condenação de quatro. Conforme prevê o artigo 44 do Código Penal, é possível a substituição de penas privativas de liberdade por restritivas de direitos se a reclusão não ultrapassar o limite de quatro anos. Quando eu informei àquela família que ele sequer deveria ter entrado numa penitenciária, reacendi a esperança deles. Conseguimos reverter a prisão. Como este, há inúmeros casos semelhantes, uma vez que essa medida é pouco aplicada.  Eu não posso parar”, pondera. 

Breno Melaragno diz não ter como fugir do jargão: “É apaixonante. Poder participar da absolvição de inocentes e da obtenção dos direitos das vítimas desperta uma sensação única”, conclui.

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