15/03/2016 - 17:58

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Direito em série

15/03/2016 - 17:58

Direito em série

O sucesso de seriados com advogados como protagonistas evidencia a atração de profissionais e leigos pelo mundo jurídico
 
VITOR FRAGA
Existe uma longa tradição de se utilizar o mundo jurídico como cenário em diversas formas de arte e entretenimento. Nas últimas décadas, o ambiente dos tribunais e o exercício da advocacia tornaram-se cada vez mais uma constante em tramas de sucesso em filmes e séries de TV. A própria análise da relação entre literatura, filmes ou seriados e o Direito está presente em livros, artigos acadêmicos e até mesmo em sala de aula. Mas os estudantes ou mesmo os profissionais do Direito podem aprender algo sobre ou ofício assistindo a essas séries? E como analisam o perfil do advogado que é apresentado na ficção? A Tribuna conversou com alguns colegas fãs de seriados jurídicos para tentar entender melhor como o advogado se vê na tela.

Desde os anos 1980, vem aumentando a quantidade de filmes e produções televisivas que possuem um ou mais elementos do mundo jurídico com pontos centrais. No fim dos anos 1990 e início dos anos 2000, houve nos EUA proliferação de seriados cujo fio condutor era a atuação de profissionais da área, entre eles Law & order, Ally McBeal, The practice e Boston legal, todos com audiência na casa dos milhões de espectadores.
 
Algumas dessas produções fizeram muito sucesso também no Brasil (mais em canais por assinatura, já que na TV aberta quase sempre eram exibidas com atraso, dubladas e com cortes), principalmente a franquia Law & order (a principal deu origem a outras quatro). Exibida por aqui com o título Lei e ordem, de forma geral mistura à prática jurídica desde técnicas de medicina legal e investigação até ação policial, entre outros elementos. Na verdade, a lista de séries que englobam o universo criminal como um todo (não necessariamente tendo advogados como personagens centrais) é grande.
 
Porém, atualmente, algumas das mais assistidas (por exemplo, How to get away with murder, Suits, The good wife e Better call Saul), são justamente aquelas em que advogados figuram como protagonistas. No Brasil, nas últimas duas décadas, os canais por assinatura ajudaram a ampliar de forma significativa o público para esse segmento. O crescimento da internet e, nos últimos anos, o uso cada vez maior dos serviços de streaming (como o Netflix) para acesso a conteúdo de entretenimento aumentou bastante a produção e a oferta, multiplicando as legiões de fãs.

Entre os colegas entrevistados, das séries ainda em exibição a mais mencionada foi Suits, seguida de The good wife e How to get away with murder. Better call Saul e Making a murderer (na verdade, uma série-documentário baseada em fatos reais) também foram citadas. Mandrake, a única nacional, também foi lembrada. Das já encerradas, Law & order é a preferida pela maioria, seguida por Boston legal, citada pelo presidente da Comissão OAB Jovem da Seccional, Tomás Ribas, embora não exatamente por identificação pessoal. “Digo isso porque não tenho qualquer pretensão de ser uma pessoa como o personagem Denny Crane, mas a série é muito interessante, pois retrata conflitos bastante humanos ao mesmo tempo em que faz comédia com situações absurdas que vão parar no tribunal. Claro, tem seus momentos mais sérios e traz discussões polêmicas, como controle de armas nos Estados Unidos e suicídio assistido (eutanásia)”, diz Ribas. 

Já a colega Maria Luciana Pereira destaca as advogadas como personagens marcantes. “Gosto muito de várias, mas The good wife e Suits são aquelas a que mais assisto. As personagens Alicia Florick [progatonista de The good wife] e Jessica Pearson [uma das sócias principais do escritório onde se passa Suits] são retratadas com muita sensibilidade, sem que isso implique personagens insignificantes ou fúteis. Pelo contrário, são mulheres que enfrentam as agruras e delícias de ser mulher e advogada, tudo com muita competência”, diz. Carolina Lucas, por sua vez, lembra que o sistema judicial retratado nessas séries é muito diferente do brasileiro. “Então, a identificação é, na realidade, muito baixa em relação à nossa prática jurídica. Das séries ligadas a este universo, me identifico mais com The good wife, especialmente na construção do universo dos sócios e associados em um escritório de advocacia”, revela.

A integrante da Comissão de Direito de Família da OAB/RJ Silvana Moreira é fã de Law & order e suas derivadas, mas também das mais novas. “Sou apaixonada por todas. Existe uma identificação com a promotoria, vez que estão sempre defendendo os que sofreram os danos. Já no caso de The good wife, que lamentavelmente vai acabar, sempre amei a postura da protagonista como advogada. Mas não é algo de plena identificação, pois envolve muita sujeira, tráfico de influência e favores sexuais. Tem sempre algo de ‘podre’ no reino da Dinamarca, ou seja, utilização de mecanismos pouco éticos”, explica Silvana. 

Há também os que preferem séries pouco conhecidas, como Reinaldo de Almeida. “A minha preferida é Mandrake, da HBO, porque é uma série brasileira que aborda, embora com um bocado de equívocos, especialmente no que diz respeito aos ritos e procedimentos do processo penal, o cotidiano de um advogado criminalista no Rio de Janeiro, reconhecido por ser mulherengo inveterado e especialista em crimes de extorsão e estelionato”, diz. “O personagem sobrevive com honorários pagos pela burguesia carioca, enquanto pratica a advocacia  pro bono  em favor dos miseráveis e desafortunados, tornando-se uma espécie de Robin Hood de Copacabana”, compara Almeida. Mandrake, cujo protagonista é interpretado por Marcos Palmeira, foi inspirada na obra de Rubem Fonseca e dirigida por seu filho, José Henrique Fonseca.

Porém, o seriado mais citado foi mesmo Suits. José Henrique Neves diz que a série se destaca do “padrão drama criminal” seguido pela maioria. “A ficção, de maneira resumida e sem qualquer spoiler, acompanha o cotidiano do renomado escritório de advocacia corporativa Pearson Hardman, em Nova York, dando destaque para dois personagens. Um deles é Mike Ross, estudante de Direito jubilado da faculdade que, apesar de não possuir diploma, graças à sua memória fotográfica possui vasto conhecimento jurídico e se destaca pela sua personalidade ousada”, explica.
 
O outro personagem é o advogado que contrata Ross, “o egocêntrico Harvey Specter, estrela do escritório especializado em concluir negociações aparentemente impossíveis e evitar que casos problemáticos cheguem ao Judiciário”, completa Neves. Mas a visão sobre aspectos antiéticos dos personagens – no caso, um protagonista que exerce ilegalmente a profissão de advogado, com o conhecimento do sócio que o contratou – nem sempre é a mesma para todos. André Alves reforça a ideia de que o roteiro foge do universo criminal, talvez por isso atraindo tantos colegas. “Diferentemente da maioria das séries jurídicas que encantam o público que não faz Direito e são voltadas para o âmbito criminal, essa é a única que trata de Direito empresarial, passando por áreas como Direito do Trabalho, propriedade intelectual, contencioso, mercado de capitais, societário, entre outras. Quando você verá uma série abordando a necessidade de um processo de due diligence na aquisição de uma empresa ou discussão sobre  o valor de uma marca?”, pergunta.

Já Gabriela Knupp observa as contradições nos personagens. “Os casos abordados foram mais diversificados e há uma dualidade interessante enfrentada pelos protagonistas. De um lado, o Harvey Spector e o Mike Ross são profissionais éticos e que buscam sempre soluções justas. Por outro, escondem que Mike exerce ilegalmente a profissão. Esta é uma questão que perpassa todas as temporadas”, afirma. Maria Luciana Pereira, que também assiste a Suits, faz um resumo, do ponto de vista crítico, do perfil de anti-herói que se vê na maioria das séries.
 
“Considero que todas apresentam com maior veemência o que ‘não fazer’, eis que nem sempre a ética, lealdade, boa fé e respeito são elementos demonstrados pelos personagens. Por exemplo, em The good wife valores são atingidos por interesses políticos. Em Suits, em nome de uma advocacia que atua na defesa de interesses milionários, são comuns e ‘aceitáveis’ chantagem, ameaça e embates absolutamente desprovidos de ética e lisura. Em How to get away with murder tudo é permitido para alcançar os objetivos”, sintetiza.
 
Anti-heróis
 
No cinema, na maioria das vezes em que o advogado entra em cena é para ser o herói – ou, pelo menos, ajudar os “mocinhos”. Um exemplo emblemático disso foi a eleição, em 2003, pelo American Film Institute (AFI), dos 100 maiores heróis do cinema. O primeiro lugar na lista foi o advogado Atticus Finch, personagem interpretado pelo ator Gregory Peck no filme O sol é para todos  (no original em inglês To Kill a Mockingbird, de 1962, adaptação do livro homônimo de Harper Lee). A história se passa no início dos anos 1930, quando Finch, contra a opinião pública, defende o homem negro acusado de estuprar uma jovem branca. O personagem tornou-se modelo de advogado comprometido com ideais de ética e justiça.

Já nas séries mais assistidas hoje, a tendência é que a figura do advogado seja apresentada como o vilão – ou melhor, como anti-herói. Talvez o exemplo mais polêmico atualmente seja Annalise Keating, a advogada criminalista e professora de Direto Penal protagonista de How to get away with murder (em tradução literal, “como se livrar de um assassinato”).
 
Keating seleciona um grupo com os seus melhores alunos para disputarem uma vaga de estágio em seu escritório, ao mesmo tempo em que os estimula a sugerir como inocentar seus clientes, nem sempre de forma ética. O próprio grupo acaba se envolvendo em um assassinato, e a narrativa que mistura passado e presente é o fio que conduz a trama. Interpretada pela atriz Viola Davis – que em 2015 se tornou a primeira mulher negra a receber o prêmio Emmy Awards justamente pela atuação na série, e cujo discurso sobre igualdade racial na mesma premiação repercutiu mundialmente –, a personagem faz sucesso entre os profissionais. “Um monte de advogados que eu conheci em Washington, quando fui visitar a Casa Branca, disse que ama [a personagem]. Eles não acham realista, mas amam mesmo assim”, declarou a atriz aos jornais na época.

A percepção da distância entre o que se vê nas telas e a realidade cotidiana da advocacia foi praticamente unânime entre os entrevistados desta reportagem. De maneira geral as séries são vistas como entretenimento, e não contribuem tanto para a formação acadêmica, inclusive pelas diferenças entre o Direito brasileiro e o dos EUA (cenário da maioria das tramas). Mas e a imagem do advogado? Para José Henrique Neves, não importa o gênero, os seriados trazem à tela um mundo fictício e seu objetivo é entreter, da forma que for. “Não me preocupo muito com a forma como o profissional é apresentado. As pessoas têm capacidade de distinguir realidade e ficção. Enquanto algumas séries o enobrecem e colocam num pedestal, outras o pintam como mau-caráter, mas é tudo ficção. O advogado sem dúvida é essencial à Justiça”, defende. 

Por outro lado, as séries acabam por reforçar estereótipos negativos da advocacia, principalmente ao retratar colegas como malandros e antiéticos, na opinião de Tomás Ribas. “Mas isso também não é regra absoluta. Em Suits, por exemplo, a banca protagonista é bem heterogênea e todas as pessoas têm seus esqueletos no armário. Infelizmente, quando vamos para a seara criminal, como em How to get away with murder, temos um retrato muito raso das questões penais, o que reforça a ideia errada, na minha opinião, de que existe um lado bom – Estado/Ministério Público – e um lado mau – réu/advogado”, analisa. “Nunca me ofendi, porque sei que é uma obra de ficção e eu sou advogado, tenho uma visão interna da profissão. Mas já me incomodei diversas vezes ao imaginar a repercussão de algo para as pessoas em geral”, pondera Ribas. André Alves também critica a falsa dicotomia entre advogados e promotores. “Acho que o advogado é visto como herói e o promotor como vilão. Tanto em Suits quanto em Better call Saul, os telespectadores torcem para os personagens principais que são advogados e, por este motivo, acabam querendo que eles ganhem, custe o que custar. Assim como nas séries, para a sociedade em geral  o advogado é visto como uma pessoa que ganha rios de dinheiro e  faz de tudo para ganhar  um caso”, compara, acrescentando que a sociedade muitas vezes não compreende que o advogado é essencial à Justiça. 

Os advogados seriam de fato muitas vezes retratados como profissionais ambiciosos e inescrupulosos, na opinião de Maria Luciana Pereira. “Particularmente para o público leigo, considero uma contribuição negativa para a imagem do advogado, não deixando cristalina a importância da advocacia para a preservação de um Estado democrático de Direito. Porém, na minha leitura trata-se de um universo jurídico e comunitário distinto do que temos no Brasil”, compara.
 
Silvana Moreira não vê os personagens como bons exemplos. “Ao contrário, verifico o incentivo à prática ‘ganhar a qualquer preço’. Acabo me vendo na tela sempre do lado do promotor de Justiça. Mas tem sacadas de advogados que são maravilhosas. A tendência é nos vermos do lado do ‘mocinho’, já que acompanhamos pelo lado de quem descobre o crime, daí a identificação com o Ministério Público”, considera. Já para Carolina Lucas, a ficção pode ajudar a reforçar preconceitos.
 
"Infelizmente a maioria retrata os advogados, especialmente os penalistas, como alguém disposto a recorrer a práticas antiéticas, o que, na minha opinião, só reforça um pré-conceito em relação a nossa classe. O advogado é um instrumento de justiça em qualquer regime democrático. E perseguir o direito à defesa do seu cliente ou uma pena/indenização mais justa é nossa missão”, considera ela, que já se sentiu ofendida uma vez: “Quando a advogada principal da série How to get away with murder se julgou no direito de arquitetar a prisão de um inocente”. Por outro lado, Carolina considera que questões importantes são mostradas. “Nesses seriados vemos expostas também as fragilidades do sistema investigatório, do júri, das cortes, da mídia, enfim, são abordadas situações que demonstram situações de erros, pré-julgamentos, politicagem e tráfico de influências”, argumenta. Sob este aspecto, para ela, as séries ajudariam a pôr em destaque o papel do advogado como peça fundamental no sistema jurídico.

Segundo Gabriela Knupp, é importante retratar bons e maus profissionais, advogados ou não. “Isso porque os personagens não devem ser considerados exemplos, e sim suscitar o debate e a opinião crítica das pessoas. Como devemos agir quando descobrirmos que o advogado contratado não age de maneira ética? Mas nunca me senti ofendida, considero uma obra de ficção”, afirma.
 
Esses personagens alimentariam o senso comum responsável por um processo de criminalização da advocacia criminal em curso, segundo Reinaldo de Almeida, que buscaria inserir o Direito numa lógica maniqueísta de bem contra o mal, na qual o advogado se associaria ao segundo. “Nesta lógica, o crime compensaria, não raro, para o profissional, o qual seria praticamente um cúmplice do seu cliente. Não é à toa que se podem observar atualmente propostas no sentido de criminalizar o recebimento, pelo colega, de honorários oriundos da prática de crime, que redunda na obrigação de delatar o seu próprio cliente, inviabilizando o direito de defesa ou, ainda, tentativas midiáticas de assassínio de reputação de advogados que defendem determinadas pessoas”, critica. 

Polêmicas à parte, Almeida considera impossível negar a importância de o advogado ter uma visão ampla da realidade. “Qualquer forma de manifestação artística, em especial, a literatura e o cinema, e podemos citar também as séries televisivas ou de streaming, são fontes de aprendizado cruciais para a formação do advogado e o exercício da profissão. Talvez até mais do que o Vade Mecum  e o domínio da técnica jurídica. Para entender o Direito é preciso entender o ser humano inserido em suas relações sócio-político-econômicas e, infelizmente, as leis são imprestáveis ou pouco úteis para tal finalidade. Como disse Carlos Drummond de Andrade: ‘As leis não bastam. Os lírios não nascem das leis’”.


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