15/03/2016 - 17:45

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Tempos sombrios no STF

15/03/2016 - 17:45

Tempos sombrios no STF

CARLOS ROBERTO SIQUEIRA CASTRO*

Gerou controvérsia no meio jurídico a decisão do Supremo Tribunal no Habeas Corpus 126.292 que, por maioria de 7 votos a 4, alterou a jurisprudência da corte, para fins de considerar que o princípio da presunção de inocência inscrito, como cláusula pétrea, no art. 5º, LVII, da Constituição, não mais impede a antecipação do cumprimento da pena, ainda que na pendência de recursos extraordinário ou especial. Em sendo assim, o trânsito em julgado da decisão condenatória, que traduz a certeza definitiva da culpabilidade, deixa de ser requisito para o início da execução da sentença criminal.  Argumenta a maioria vencedora (ministros Teori Zavaski, Edson Fachin, Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes) que a condenação em segundo grau de jurisdição é suficiente para definir a culpabilidade com base nas provas produzidas nas instâncias de origem. De outro lado, a minoria vencida (ministros Marco Aurélio, Celso de Mello, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber) sustentou que a presunção de não culpabilidade há de subsistir até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como determina a Constituição. 

Estou convencido de que a melhor razão está com a facção vencida. Além da letra insofismável da cláusula constitucional, releva contextualizar a divergência dos ministros do STF no atual quadro de crise que abala o nosso país. A secular deformação moral de nossas instituições, não apenas da classe política, mas também no espaço privado, que se exasperou nos últimos tempos a reboque de escândalos vergonhosos (Mensalão, Lava Jato, Operação Zelote etc.) tem gerado a desilusão da população nos agentes do Estado e nas forças da sociedade civil para implementar pautas de comportamento ético e construtivo que engrandeçam a nação. A percepção popular é de que há corrupção por todos os lados e de que o Brasil está atolado num mar de lama. 

O bombardeio diário de notícias ruins e cada vez piores cria  um ambiente propício para a explosão de reações revanchistas, com o resultado perverso de trivializar as garantias constitucionais, em grave prejuízo aos jurisdicionados e à cidadania. Nesse ambiente de desinformação generalizada e de catarse das decepções acumuladas, o juiz Sérgio Moro e o “japonês da Polícia Federal” passam a ser estrelas no pódio do desencanto nacional e a serem mais venerados do que a própria Constituição conquistada depois de tantos anos de luta democrática e republicana. A instigação midiática dos instintos primitivos da vindita humana, que ao longo da história culminaram em tragédias e holocaustos, gera convulsões no inconsciente coletivo e reações simplistas de ruptura com os ritos constitucionais democráticos. Faz com que a Constituição seja tratada como uma soft law, manipulável ao sabor dos humores do dia. O Supremo, que á a última trincheira dos direitos humanos e das liberdades públicas, não pode ser atingido pelo clamor das ruas ou pelo xerifismo hollywoodiano que empolga o espetáculo de pão e circo. A ser assim, daqui a pouco irão pelo ralo, no arrastão frenético da sanha acusatória, sob o aplauso das massas desiludidas e vítimas de tanta enganação e desgoverno, os princípios e valores a duras penas conquistados no processo civilizatório, como o do contraditório, da ampla defesa, das prerrogativas dos advogados e da presunção de inocência. Cairemos no vale tudo dos linchamentos liminares e dos prejulgamentos pela mídia e redes sociais. 

E não se pode esquecer, nesse debate, algumas premissas objetivas. Primeiro, que o ordenamento jurídico já prevê as condições em que os suspeitos de práticas criminosas podem sofrer prisão temporária e preventiva, para resguardo da investigação criminal, da ordem pública e econômica. Segundo, que a interposição abusiva de recursos procrastinatórios já se acha bastante inibida pela legislação processual e pela jurisprudência dos tribunais. Além disso, a estatística judiciária demonstra que milhares de julgamentos nos tribunais superiores a toda hora reformam decisões das cortes federais e estaduais da segunda instância de jurisdição. Nesse contexto, a prisão antecipada de réus antes do trânsito em julgado da decisão condenatória poderá ensejar indenizações a cargo do Estado no caso de absolvição final, como bem aventou o eminente ministro Marco Aurélio, do STF. Por fim, não se pode ignorar a situação deplorável do sistema prisional brasileiro. Nossa população carcerária, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, já atinge 711.463 presos, dos quais 147.937 em prisão domiciliar – constitui a terceira maior do planeta. Considerando que estão disponíveis cerca de 1.430 unidades prisionais em todo o país, é sabido que em cada espaço reservado para dez presos agoniza quase o dobro de detentos. Sem esquecer que a maioria das prisões é horripilante, fétida, insalubre e palco de toda sorte de promiscuidade, onde tudo pode ocorrer, menos a integridade física, psíquica e moral dos presos e a ressocialização dos apenados, conforme preceitua a Constituição.

Embora a opinião ora externada não tenha caráter propositivo ou de lege ferenda, pois resulta da interpretação a um só tempo literal, sistemática, finalística e sociológica da Constituição, é certo que a recente guinada na jurisprudência do STF em tema de superlativa importância para os direitos fundamentais terá consequências dramáticas no campo das liberdades em nosso país.
 
*Professor titular de Direito Constitucional da Uerj, doutor em Direito Público, conselheiro federal da OAB pelo Rio de Janeiro

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