08/05/2015 - 15:25

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Criminalização do caixa 2

08/05/2015 - 15:25

Criminalização do caixa 2

A legalidade há de vencer
 
VÂNIA AIETA
A expressão ‘caixa 2’ refere-se aos recursos financeiros não contabilizados e não declarados aos órgãos de fiscalização competentes. Sua utilização pode ser feita de diversas formas. No universo eleitoral, deflagra-se na prática da arrecadação de dinheiro de campanha sem declarar na prestação de contas a ser entregue à Justiça Eleitoral. O julgamento desses casos é feito pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) competente e, se constatado o ilícito, a legenda pode ficar sem os recursos do fundo partidário e o candidato pode perder seu mandato.

 A rigor, não há um tipo penal de caixa 2 enquanto crime de corrupção. Este é um crime diferente da incidência de caixa 2 pela perspectiva do Direito Eleitoral, que é prática considerada como uma infração eleitoral. No caso, a regência é pela legislação eleitoral, enquanto o crime de corrupção é regido pelo Código Penal, sendo casos que não se confundem de forma alguma, pelo menos pela atual legislação.

O artigo 30-A foi introduzido na Lei 9.504/97, Lei das Eleições, com o objetivo de assegurar a higidez das contas de campanha eleitoral e proteger a moralidade, sancionando o infrator. Vale aduzir que tal irregularidade, referente à arrecadação e gastos de campanha, não caracteriza, por si só, nem mesmo o abuso do poder econômico que deve ser apurado e, malgrado não seja mais exigível prova da potencialidade lesiva da conduta, o julgamento impõe a observância dos parâmetros constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade.
Agora, como solução para o problema do caixa 2, o remédio encontrado é justamente a falácia do financiamento público de campanha, com o exclusivismo de  pessoas físicas podendo efetuar doações. Desse modo, estaremos certamente empurrando as eleições para a vala das doações clandestinas, pois a prática da doação não contabilizada é própria do sistema de financiamento público.

A Suprema Corte americana fez o caminho inverso, retirando inclusive o limitador de financiamento privado. Assim, quem quiser doar, doa quanto quiser, com fiscalização e transparência. 

A tentativa de criminalizar o caixa 2 fora do universo eleitoral, tipificando a prática como crime de corrupção, é ineficaz, excessiva e nesse momento configura-se como forte violação ao princípio da legalidade, pois o fato é que a prática não é crime de corrupção, já que inexiste a intenção de corromper quem quer que seja, mas tão somente o desejo de pagar dívidas de campanha, sem influenciar a ação de ninguém. Aliás, não é crime eleitoral nem comum.  
 
Estamos voltamos à Grécia Antiga, onde o termo pharmakon significava simultaneamente veneno e remédio, para parafrasearmos o eminente eleitoralista Adriano Soares da Costa, pois eleger o financiamento público como “salvador da pátria” para combater a corrupção e evitar o caixa 2  é exatamente prescrever veneno como remédio.

Por fim, a criminalização do caixa 2 como modalidade de crime de corrupção eleitoral  perfaz-se como odiosa aplicação de analogia no Direito Penal, de analogia para punir, no desejo de fazer crer que algo que definitivamente não é crime na seara eleitoral seja tratado como tal, mas a legalidade há de vencer pois a Terra continuou a girar em volta do Sol, apesar de Ptolomeu ter convertido em lei o contrário.
 
*Professora do programa de pós-graduação em Direito da Uerj, conselheira seccional e advogada eleitoralista

Em busca da legitimidade perdida 

RAFAEL DE CASTRO A. A. MEDINA
Saturada de tanto descalabro público, mais uma vez a massa se reúne e sai às ruas, quase num lamento desenganado, imbuída de esperanças amorfas e sem um destinatário específico. Lá foram de novo bandeiras desfraldadas e palavras de ordem ecoaram em todo o país, pedindo o mesmo de sempre, o nunca atendido comando de dignidade pública. Seria um clamor ético universal? Não, era mais... Vem sempre sendo mais... O mundo mudou, a dinâmica política se reinventa por todo o globo, denunciando os limites do próprio sistema capitalista e sua claudicante continuidade. Junho de 2013 trouxe à tona toda aquela insatisfação que se acumulava e parecia controlada por uma sociedade que anunciava ter “acomodado” bem as demandas sociais.
 
Afinal, nunca houve tantos avanços “sociais”, nunca tantas inversões calcadas em “suprir” os grandes buracos deixados por uma herança escravagista e paternalista nesta República. Esse o discurso: caduco pelo jeito. 

Os ecos de um movimento social que chacoalha as profundezas das mazelas sociais nunca se fazem tão prontos no tempo, eles sempre se demoram em uma eloquência de longo prazo. Transformam, inevitavelmente, os caminhos da humanidade, por vezes, através de vias inusitadas e impensáveis, mas sempre inexoráveis.  Essa inevitabilidade vem forçando respostas, contramedidas. As principais delas se concentrando em neutralizar a evidente crise de legitimidade política por meio de “pacotes” anticorrupção, em projetos de leis criminalizantes e que procuram acentuar o valor simbólico da repressão estatal. As recentes repercussões sobre as medidas que tipificariam o caixa 2 (na verdade, trariam lei especial, uma vez que há previsão típica para as fraudes eleitorais, mesmo as de omissão de receitas de campanha não informadas) já trazem em seu bojo a mesma perplexidade do povo, porque nascem de modo meramente reativo, eclodem óbvias e com uma tarefa diferente daquela que o apelo ético coletivo gritou. É bem difícil decidir se precisamos mesmo de um novo tipo penal, quando o apelo que cria a demanda pretende se sustentar no resgate de uma moralidade perdida, de um pertencimento público em tese corrompido em algum momento histórico.

Pode ser mesmo que o que se pretenda seja simplesmente permitir que quem tem recursos mais modestos não seja prejudicado em termos de campanha, tendo em vista a enorme disparidade em relação a outros com montantes e mais montantes de dinheiro. No entanto, duas perguntas ficam: a criminalização desta conduta transformará sensivelmente o resultado das eleições? Outros mecanismos não podem ser criados para desequilibrar campanhas?

Acabar com o desequilíbrio eleitoral e estigmatizar aqueles que vivem politicamente apenas de financiamentos sombrios, sem rastro, parece atraente e vem sendo o fulcro de sucessivos diplomas editados em nosso país. Curiosamente, essa reação aos movimentos de rua se apresenta deslocada e quase arrogante, ao pretender se dizer a veraz tradutora dos anseios do povo. Em breve, ao que tudo indica, seremos brindados com mais um pacote, e mais alguns tipos penais para instrumentalizar as acusações contra as distorções que o próprio sistema criou, e o povo, que só queria mais vida e igualdade substantiva, vai ter que passar mesmo só com isso, só com essa solenidade de se buscar o passado perdido... E de acreditar nos minguados efeitos de uma prevenção geral em políticos...
 
*Advogado criminalista e professor, doutor em Direito Penal pela Uerj

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