08/05/2015 - 14:55

COMPARTILHE

Família é, famílias são

08/05/2015 - 14:55

Família é, famílias são

Projetos de lei da Câmara e do Senado propõem definições diferentes para conceito de núcleo familiar. A adoção por casais homoafetivos ocupa o centro do debate
 
VITOR FRAGA
“Família, família, papai, mamãe, titia”. Os versos da música Família, gravada pelos Titãs em 1986, fizeram muito sucesso ao retratar o cotidiano de uma família comum, que “almoça junto todo dia, nunca perde essa mania” – e tem sua base formada por um “papai” e uma “mamãe”. Ao longo de três décadas, porém, diversas vitórias judiciais garantiram casamentos homoafetivos e adoções por famílias plurais, criando núcleos de pessoas reunidas pelo afeto que não se encaixam no formato tradicional.
 
Todo esse movimento por direitos e a realidade das famílias múltiplas culminaram em uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2011, na qual o ministro Carlos Ayres Britto expressou o entendimento de que a Constituição Federal menciona a união formada por um homem e uma mulher, mas não exclui da proteção legal os demais formatos. Em março desse ano, a ministra Cármen Lúcia reforçou essa tese ao negar recurso do Ministério Público do Paraná e manter a decisão que autorizou um casal homoafetivo a adotar. O tema ganhou ainda mais destaque como pauta de diversos programas de TV e com a exibição na novela Babilônia, da Rede Globo, de duas personagens vividas pelas atrizes Fernanda Montenegro e Nathália Timberg, que mantêm um casamento estável e criam um filho juntas.

Apesar da jurisprudência, parlamentares defendem que legislar sobre a união homoafetiva é matéria constitucional. Quando, em fevereiro deste ano, a Câmara dos Deputados desarquivou o Projeto de Lei (PL) 6.583/13 – proposto em outubro de 2013 pelo deputado Anderson Ferreira (PR/PE), e que trata da criação do Estatuto da Família –, grupos de adoção e direitos homoafetivos criticaram o que consideram exclusão da maioria das famílias, até mesmo as formadas por adoção ou fertilização in vitro. O projeto de Ferreira define, em seu artigo 2º, que a família é um “núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio do casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (grifo, em negrito, do original). Os demais dispositivos tratam de propostas de políticas públicas, como a criação de conselhos e da Semana da Família. 

Pouco tempo depois o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), criou a comissão especial que irá discutir a matéria, e pedidos para realização de audiências públicas já foram aprovados. Os defensores do Estatuto da Família alegam que a lei não alteraria as normas de adoção, mas reconhecem que estariam prejudicadas as adoções por casais homoafetivos – não definidos como núcleo familiar pela Constituição, segundo eles.

Por outro lado, menos de um mês depois da apresentação do projeto na Câmara, entrou em tramitação no Senado Federal o Projeto de Lei do Senado (PLS) 470/13, de autoria da senadora Lídice da Mata (PSB/BA), que institui o Estatuto das Famílias. Embora pareça uma diferença banal, o plural neste caso não é apenas um detalhe. A definição de família do texto da senadora é radicalmente oposta, considerando fatores como consanguinidade, socioafetividade e afinidade na formação da família. Mas, enquanto o PLS 470 ainda é pouco conhecido, o PL 6.583 tem sido alvo de debate público e mesmo de uma enquete no portal da Câmara na internet – a pergunta “Você concorda com a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família?” já bateu de longe o recorde de participação do público em consultas online da casa, com mais de seis milhões de votos (é possível votar mais de uma vez).
 
Dois projetos, visões opostas

Pelo regimento, o PL 6.583 passará por cinco comissões e tramita em caráter conclusivo (não necessita de votação em plenário). Ferreira afirma que a criação do Estatuto da Família resulta da constatação de que as políticas públicas previstas na Constituição para proteger o núcleo não são aplicadas na realidade. “Também proponho a inclusão da disciplina Educação para a família na grade escolar e a criação de conselhos nos municípios, estados e Federação. Quem apoia ou critica o projeto terá o mesmo espaço no momento da discussão”, garante. O deputado afirma que o texto não trata da adoção. “Meu projeto é baseado nos valores, dentro do aspecto constitucional. Há uma parcela da população conservadora que não entende este arranjo familiar baseado apenas no amor e no afeto”, argumenta. Segundo ele, mesmo que as recentes decisões tomadas pelo STF autorizem a união entre pessoas do mesmo sexo, “não há lei aprovada neste sentido”.

O ponto mais polêmico é o artigo 2º, que restringe a definição de família a “um homem e uma mulher” e “seus descendentes”. A presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam) e diretora jurídica da Associação Nacional de Grupos de Apoio a Adoção (Angaad), Silvana do Monte Moreira, lembra que a tradição brasileira inclui práticas como criar filhos por afinidade e trazer parentes de outros estados para morar com a família, e que o PL 6.583 estaria, portanto, na contramão da sociedade real. “Já não temos mais a homoparentalidade como único parâmetro, vivemos hoje a multiparentalidade, a poliafetividade.
 
Queremos respeito a todas as formações familiares possíveis. Quantas decisões já reforçaram a ideia de que a filiação se dá com base na socioafetividade e não pelos laços sanguíneos?”, questiona. Para ela, tudo já está previsto em lei. “Toda a rede de proteção estatal para as famílias que o projeto menciona está prevista nos artigos 226 e 227 da Constituição, além do artigo 5º”, argumenta.

A Angaad e o Ibdfam defendem a aprovação do PLS 470, da senadora Lídice da Mata. Chamado de Estatuto das Famílias, não tem tido a mesma repercussão. O texto reconhece a relação homoafetiva como entidade familiar e também incorpora famílias recompostas, fundadas em parentesco por afinidade (como entre enteados e padrasto ou madrasta). O artigo 9º define que: “O parentesco resulta da consanguinidade, da socioafetividade e da afinidade”. Segundo a autora, o objetivo é garantir a proteção a todas as estruturas familiares. “Em outras palavras, pretendemos consolidar na lei aquilo que já é prática recorrente e sacramentada nas decisões dos tribunais brasileiros. O projeto, que teve consultoria técnica do Ibdfam, trata de preceitos que levam em conta o amor e o respeito ao próximo e a luta contra todas as formas de violência e preconceito”, esclarece a senadora. A matéria também tramita em caráter terminativo, e passará por duas comissões.

Mas e se ambas forem aprovadas separadamente, qual prevalecerá? O presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB/RJ, Leonardo Vizeu, explica que vai depender da data de aprovação e do nível de detalhamento. “Havendo confronto entre duas leis, a norma mais recente revoga a mais antiga. A norma especial derroga a genérica. Assim, se o PL 6.583/13 e o PLS 470/13 virarem lei, basta verificar qual o mais recente e o mais específico para se determinar qual o texto legal será devidamente aplicado”, diz.
 
Judiciário x Legislativo

Para o deputado Anderson Ferreira, há um equívoco na polêmica. “O artigo 2º do projeto nada mais é do que a transcrição do parágrafo 3 do artigo 226 da Constituição, que determina que o núcleo familiar é formado por homem e mulher. E em nenhum momento os críticos do projeto afirmam que a Constituição de 1988 é homofóbica. O projeto não é inconstitucional”, defende.

De fato, parece haver um descompasso entre a visão de parte do Legislativo e do Judiciário sobre o tema. Em março deste ano, a ministra do STF Cármen Lúcia negou recurso do Ministério Público do Paraná e manteve decisão que autorizou a adoção de crianças pelo casal Toni Reis e David Harrad (ver box). É a primeira vez que a corte se manifesta sobre esse tema. No acórdão, a ministra disse que “as uniões homoafetivas já são reconhecidas como entidade familiar, com origem em um vínculo afetivo, a merecer tutela legal”, e por isso “não há razão para limitar a adoção, criando obstáculos onde a lei não prevê”. 

Ela citou ainda o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, de 2011, no qual o Supremo reconheceu, por unanimidade, a união estável de parceiros do mesmo sexo. Cármen Lúcia reproduziu o voto do ministro Ayres Britto, que afirmou na ocasião que “a Constituição Federal não faz a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos”. O ministro classificou sua interpretação do conceito de família como “não-reducionista”, ratificando a função do STF de “manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico.”

Na opinião de Silvana Moreira, “enquanto o Judiciário vai sempre adiante, o Legislativo vem sempre retrocedendo”. Ela considera que “o juiz não pode se escusar de julgar pela ausência da lei” e que, portanto, o Judiciário não está substituindo o legislador. “Está suprimindo uma injustificável e homofóbica omissão de quem tem medo de comprometer sua reeleição. Parece que alguns legisladores esquecem que vivemos em um país laico”, critica ela, descartando, no entanto, o uso do termo ‘bancada evangélica’. “Nem todos os evangélicos pensam assim. Esse projeto é defendido por uma bancada fundamentalista”, acusa. Assim como ela, a presidente da Comissão de Direito Homoafetivo (CDHO) da OAB/RJ, Raquel Castro, acredita que o projeto inviabiliza a adoção por casais homafetivos e, por isso, será considerado, em última instância, inconstitucional pelo STF. “O Estatuto da Família é um projeto de lei que já nasce em afronta à Carta, ao retroceder em afirmar que família é somente aquela formada entre um homem e uma mulher e seus descendentes. A Constituição consagrou o que chamamos de pluralidade das famílias. Também é família aquela constituída entre pessoas do mesmo sexo, conforme decisão unânime do STF”, defende Raquel. Ela diz que o PL 6.583 é uma “aberração jurídica” e que a CDHO deve realizar em breve, em conjunto com a Comissão de Direito de Família da Ordem, um ato público contra o projeto.

Na avaliação de Leonardo Vizeu, a questão envolve, além de entendimentos jurídicos, questões ideológicas. Para ele, o artigo 2º do PL 6.583 não confronta diretamente a Constituição, e a polêmica resiste porque falta “a edição de uma lei expressa para o reconhecimento legal e infraconstitucional da sociedade conjugal entre pares do mesmo sexo com entidade familiar”. Segundo o presidente da Comissão de Direito Constitucional, a questão dos possíveis impedimentos para a formação de famílias por adoção está ligada a essa mesma lacuna. “O ponto é o Congresso Nacional ter vontade política, ou não, para normatizar e regulamentar em texto legal a sociedade conjugal formada por pares do mesmo sexo como entidade familiar”, resume. Embora reafirme a competência do Congresso para legislar sobre o tema, Vizeu considera que o Legislativo deveria levar em conta a realidade, até mesmo para evitar futuras ações judiciais. “A Câmara está deixando passar uma oportunidade ímpar para reconhecer de direito o que já acontece de fato. A atual composição de nosso Congresso reflete a tendência mais conservadora e misoneísta da sociedade. O resultado será uma chuva de ações na Justiça”, prevê.
 
Os personagens reais
 
Segundo dados de março de 2013 do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), das mais de 44 mil crianças vivendo em abrigos no país – muitas vezes por abandono ou maus tratos –, 5.465 estavam aptas para adoção (cerca de 9%). Do total, 56,4% são meninos e 43,6%, meninas; 33 % são brancas e 67% não brancas; e 36,8% possuem ao menos um irmão também para adoção – o índice de candidatos dispostos a acolher de uma só vez dois ou mais irmãos é muito baixo. Crianças mais novas são minoria entre os abrigados mas, apesar disso, 92,7% dos pretendentes desejam uma criança com idade até cinco anos – segundo o CNA, só 8,8% dos aptos à adoção têm essa idade, o que deixa mais de 90% de fora do perfil mais procurado. De modo geral, as chamadas famílias contemporâneas, em especial as homoafetivas, acabam adotando crianças que estavam ou iriam ficar anos em abrigos. A TRIBUNA conversou com alguns desses casais que resolveram enfrentar as dificuldades, próprias de todos os que decidem criar filhos, e, também, o preconceito.

Advogada e coordenadora do grupo de adoção Famílias Contemporâneas (ligado à Angaad), Dalia Tayguara tem, com sua companheira Eva Andrade, duas filhas: Daísa Vitória, de 11 anos, e Thamara, hoje com 14. Em 2009, elas adotaram a primeira menina, na época com cinco anos, e três anos depois, a segunda, que já tinha 12 – a adoção foi feita pelo programa Apadrinhamento afetivo, direcionado a crianças com poucas perspectivas de adoção, o que agilizou a burocracia. “Não sofremos preconceito por parte do Judiciário. Pelo contrário, quando declarei que tinha uma companheira, acho que o processo acelerou. Na verdade, nem exijo que as pessoas aceitem, porque há muita coisa que eu não aceito, mas respeito. Então, exijo respeito”, afirma a advogada.

Para ela, a ideia de família hoje ultrapassa a barreira do núcleo formado por um homem e uma mulher. “Não dá para fechar um conceito de família, é uma relação mutável, que está em transformação constante. Gostaria de conversar com as pessoas que fizeram o projeto para entender como chegaram a essa formulação”, diz Dalia. Segundo ela, às vezes surge uma reclamação de preconceito na escola, não pelo fato de as meninas terem duas mães, mas por serem adotadas. “A adoção ainda é um estigma. E também a minha filha mais velha já sofreu preconceito racial”, conta. Thamara e Daísa são batizadas e frequentam a Igreja Católica. 

A questão religiosa está bem presente também na vida da família Gladstone Canuto. Em 2006, o advogado Marcos Gladstone fundou a Igreja Cristã Contemporânea, para incluir na religião os homossexuais sem acolhida nas instituições similares tradicionais. Desde 2010, ele e seu companheiro Fabio Canuto, também pastor, são pais de Felipe e Davidson, hoje com 11 e 12 anos, respectivamente. “Será um grande retrocesso para o Direito e para a sociedade se esse projeto for aprovado. Vai contra uma realidade social, e poderá afetar a vida de muita gente”, lamenta Marcos. O casal reforça o argumento de que adotar crianças mais velhas é raro. “Quando nos habilitamos, o perfil era para adotar crianças de seis anos. Não havia no Rio de janeiro um casal sequer habilitado para essa faixa etária. Fomos os primeiros, tanto que nos chamaram em seis meses”, explica. Eles acabaram adotando não apenas um, mas dois meninos na mesma faixa etária, outro fato raro. Decidiram agora acelerar o processo de adoção de uma menina, vontade que já existia. “É para evitar qualquer problema que aconteça por mudanças na legislação. É uma situação de insegurança, nossos filhos têm nossos sobrenomes, foram registrados com dois pais, será que nossa futura filha terá esses mesmos direitos?”, questiona. 

O advogado, que também é membro da Comissão de Direito Homoafetivo da OAB/RJ, conta que, quando foram matricular os meninos na escola, ele e Fabio questionaram se haveria algum problema por serem um casal homoafetivo. “A direção disse que, se fosse excluir os alunos que não têm uma família formada por pai e mãe, excluiria 70%. Esses deputados não estão pensando no principal, que é o bem-estar das crianças, estão pensando na moral deles,  uma falsa moral”, critica. E acrescenta: “Sou pastor evangélico, mas não posso impor meus dogmas para a sociedade. O amor deve prevalecer, Jesus nunca excluiu ninguém. Se entendessem o que ele pregou, veriam que o preconceito não estava na sua lista de exigências”. Para o pastor, a maior beneficiada tem que ser a criança. “Há muitas nos abrigos, você ainda vai restringir o número de pessoas para adotar? Quando adotamos o Felipe, recebemos uma ligação da Vara de Família dizendo que o Davidson estava em depressão, porque também queria que fôssemos os pais dele. A lei pode mudar, mas nunca vai tirar a essência da família que nós temos”, conclui.

O professor Toni Reis, 50 anos, é casado há 25 com o tradutor David Harrad, 57. Em março desse ano, uma decisão da ministra Cármen Lúcia pôs ponto final num processo que começou quando entraram com pedido para se candidatar à adoção, em 2005 – e que, no meio do caminho, ganhou mais três personagens. “Para evitar toda a burocracia que isso viria a causar, cada um poderia ter adotado como solteiro. Mas para nós havia dois fatores importantes em jogo: a igualdade de direitos garantida pela Constituição Federal e o bem-estar das crianças”, explica Toni. Prevaleceu a decisão em favor dos futuros filhos. “Se adotássemos separadamente e um de nós viesse a falecer, o outro não teria automaticamente o direito da guarda do filho adotado pelo falecido, prejudicando assim a segurança da criança”, esclarece. Em 2008, em primeira instância, a Justiça determinou que Toni e David teriam que adotar uma menina maior de dez anos. Eles recorreram e ganharam na segunda instância o direito de adotar conjuntamente sem qualquer restrição. “No entanto, um promotor do Ministério Público recorreu e levou o caso ao Supremo e ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), alegando que casais do mesmo sexo não formam uma entidade familiar e, portanto, não poderiam adotar conjuntamente. O STF rejeitou o recurso, mas o STJ só preferiu sua decisão em 2014. Uma demora judicial um tanto cruel, para nós e para as crianças à espera de adoção”, lembra.

Em 2011, após a decisão de Ayres Britto, eles conheceram Alyson, então com dez anos, que havia sido retirado da família por maus tratos. No início, o menino não quis ser adotado por um casal gay. Em 2012, já vivia com Toni e David, aguardando a decisão judicial. Ano passado, o serviço social da mesma vara do qual  veio Alyson comunicou que havia dois irmãos para adoção: Jéssica, 11 anos, e Filipe, de oito, que teriam que ser adotados juntos. “Fizemos questão de ir até as escolas deles no primeiro dia e explicar que os filhos têm dois pais gays, tanto para deixar tudo muito claro quanto para alertar para possíveis situações de preconceito por parte de outros estudantes. Funcionou muito bem”, diz. Para Toni, o PL 6.853 cria distinções entre as pessoas. “Gosto muito da definição de família contida na Lei Maria da Penha: ‘Família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa’. O modelo nuclear de família composto por pai, mãe e seus filhos biológicos não é suficiente para a compreensão da nova realidade familiar”, defende.

Embora a aventura de se tornarem pais ao mesmo tempo de três meninas e um menino tenha começado em junho do ano passado, ainda falta um último passo para que o auditor da Receita Federal Rogério Koscheck, e seu companheiro, Weykman Padinho, sejam “oficialmente declarados” uma família com os filhos Juliana, de 12 anos, Maria Vitória, três anos e nove meses, Luís Fernando, dois anos e meio, e Anna Claudia, um ano e três meses. Ainda com a guarda provisória, já se consideram como tal. “Todas as etapas já foram cumpridas, estamos aguardando a destituição do poder familiar”, explica Rogério ao telefone, enquanto Weykman dá conta de segurar os menores, com a ajuda de Juliana. Os quatro são irmãos, filhos da mesma mãe e de três genitores diferentes. Como o processo ainda não terminou, os nomes atuais das crianças foram substituídos pelos que terão após a sentença.

Na época do início da guarda, as duas crianças mais novas ainda tinham possibilidade de estar com HIV. Isso não diminuiu a vontade de Rogério e Weickman de dar aos irmãos uma família. “Maria Vitória já havia feito os exames e tinha negativado. O Luís Fernando fez o primeiro de carga viral, estava aguardando para fazer o segundo e o exame de anticorpos. E Anna Cláudia ainda estava em tratamento com AZT e antibióticos”, esclarece Rogério. Inicialmente, eles queriam adotar duas crianças, um menino e uma menina, de até seis anos, de qualquer etnia. “Abrimos o perfil também para crianças com doenças tratáveis. Ao longo do processo, esse perfil foi se alongando. Surgiu uma possibilidade de adoção de quatro crianças, e nos vimos debatendo sobre a logística. Ou seja, adotar quatro já não era mais um problema”, revela.

Essas crianças foram adotadas por outro casal, e eles ainda recusaram outra adoção entre seis irmãos. “A juíza possibilitava que dois casais dividissem a adoção com três para cada família, com a condição de encontros mensais. Achamos que seria complicado, a começar pela escolha das crianças, já seria uma violência. Uma semana depois, chegou a informação dos nossos quatro filhos. Decidimos conhecê-los, mesmo sabendo que poderiam ser soropositivos, a doença hoje é tratável. Nós nos apaixonamos”, relembra Rogério. 

Ele conta uma situação que revela a importância do debate sobre o tema da união homoafetiva. “Nesse primeiro dia, a Juliana perguntou ao Weickman se éramos irmãos. Ele falou que não, que éramos casados. Ela perguntou: ‘Que nem o Niko e o Félix’ [personagens da novela Amor à vida]? Respondemos que sim, e ela: ‘Então tá bom’”, se diverte Rogério. Segundo ele, o PL 6.583 está fora da realidade atual. “É uma visão com fundamento em leituras e interpretações, muitas vezes equivocadas, da Bíblia.”

E conclui: “Nossos filhos não tinham uma casa, não tinham o amor de um pai, de uma mãe, não tinham família, não tinham escola, não tinham leite, não tinham afeto, cuidados. Hoje eles têm o amor de dois pais, o amor de seus avós, de seus padrinhos, dos tios, amigos, de toda a família. Foram batizados na Igreja Católica. Isso não é família? Deixem as pessoas serem felizes, deem os direitos a todos de ser de qualquer forma que queiram.”

Abrir WhatsApp