03/08/2018 - 20:59

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Quais os limites da defesa criminal?

03/08/2018 - 20:59

Quais os limites da defesa criminal?

Quais os limites da defesa criminal?

 

 

Não é lícito falsear a verdade para absolver

 

Benedito Calheiros Bomfim*

 

"Nenhum advogado deve aceitar a defesa de casos injustos", alerta o padroeiro Santo Ivo, "porque são perniciosos à consciência e ao decoro". Paulo Lobo salienta que "não há justificativa ética, salvo no campo da defesa criminal, para a cegueira dos valores diante de interesses sabidamente aéticos ou de origem ilícita". No entender de Maurice Garçon, "o advogado não pode, sem proceder ilegitimamente, colocar os recursos de sua arte ao serviço do que lhe parece injusto com ajuda de argumentos que ferem sua consciência". "O dito, a um tempo irônico e desprestigiante, de que toda causa se defende é falso. Há causas que se deve recusar", salienta.

 

Também o Código de Ética qualifica o exercício da advocacia como incompatível com a mercantilização. Do advogado, em cuja porta a tentação bate com frequência, exige-se retidão de caráter, sólida formação ética e moral, conduta ilibada. Não lhe é licito, no trabalho de defesa, deturpar ou orientar o cliente a alterar os fatos, falsear a verdade, instruir testemunhas, utilizar artifícios sabidamente simulados para burlar a boa-fé do julgador, com o fito da absolvição. Assim agindo, estará sendo indigno do preceito constitucional que o alçou à categoria de "indispensável à administração da Justiça".

 

O acusado tem o direito de não se auto-incriminar. Mas o advogado não pode, máxime em casos documentados, com provas concludentes, proclamar a priori a inocência de seu constituinte, como se endossasse o ato criminoso. Cumpre-lhe, sim, mostrar as circunstâncias atenuantes, opor-se aos rigores da pena excessiva, demonstrar a aplicação errônea da lei, fazer com que os direitos do cliente sejam respeitados, colaborar com a Justiça. Nunca, porém, lutar pela imunidade do cliente realmente culpado, porque assim estará agindo contra os interesses da sociedade.

 

O uso de recursos protelatórios a fim de obter a prescrição da pena em crimes como desvio de recursos, lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, fraude contra a administração pública, sonegação, tem sido uma estratégia até de advogados de renome para conseguir a impunidade de seus clientes. É preciso não esquecer que o amesquinhamento da advocacia contribui para o rebaixamento do Judiciário, tal o grau de interrelação entre as duas categorias. Como bem ponderou Carvalho Neto, "em se elevando uma, a outra também se eleva. São duas que se deprimem, quando um tenta diminuir a outra".

 

*Membro da Academia Nacional do Direito do Trabalho, ex-presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e ex-conselheiro federal da OAB

 

 

 

Advogado deve falar o que cliente falaria

 

João Pedro Pádua*

 

A estrutura da narrativa é quase sempre igual: alguém é acusado de um crime que "choca a opinião pública", um advogado assume a defesa desse (acusado de ser) criminoso e, por razões que permanecem na esfera de privacidade da comunicação advogado-cliente, opta por utilizar a defesa chamada "negativa de autoria".

 

Sempre que isso acontece, retorna a discussão sobre os limites da defesa criminal, sobre se o advogado pode defender clientes que sabe serem culpados etc. A narrativa voltou agora com o caso Nardoni, com direito a agressão de advogado, inclusive. Às vezes até mesmo alguns juristas, que deveriam saber a questão técnica envolvida, propugnam restrições à defesa por advogado e mesmo punição para advogados que “mentem em nome dos clientes”.

 

Ora, o que está em jogo não é se alguém é ou não criminoso, definição que só pode ser legitimamente dada após o devido processo, com ampla defesa. O que está em jogo é a compreensão de que, para que a imputação seja legítima, é preciso que o imputado possa ser chamado, num fórum imparcial e ritualmente mediado, a responder pela acusação. Só com essa resposta, aceita ou não pelo julgador, a sociedade pode legitimamente condenar alguém, com a segura presunção de que a justiça foi feita.

 

Quem garante essa resposta é o advogado, que, já etimologicamente, fala por seu cliente. Ao se dirigir à Justiça, o advogado tem o dever de falar o que o seu cliente falaria, se tivesse formação técnica para tal, conforme a estratégia que melhor serve a seu interesse, que pode ser absolvição ou somente pena diminuída. A atividade que o advogado realiza não pode ter restrições baseadas na pressuposição de que o seu cliente é culpado, ou a própria existência de defesa seria um contrassenso. Eventuais restrições só se justificam na medida em que protegem, justamente, o devido processo legal e a paridade de armas.

 

Por isso mesmo, o advogado realiza um papel, enraizado no próprio local social em que ele atua - o fórum judicial -, tanto quando o realizam o acusador, o juiz e o próprio imputado.

 

Na dialética entre esses papéis é que se pode divisar a Justiça. Se coubesse ao advogado julgar o seu cliente, ele estaria assumindo o papel do juiz, deixando vago o papel do defensor. Justamente o que acontecia em tempos de péssima memória. A liberdade de atuação do advogado é a garantia da justiça das decisões penais, condenatórias e absolutórias.

 

* Advogado criminalista e professor de Direito Penal da UFRJ

 


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