03/08/2018 - 21:05

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‘A literatura tem muito a ensinar ao Direito’

03/08/2018 - 21:05

‘A literatura tem muito a ensinar ao Direito’

Lenio Streck
 
Professor e procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, Lenio Streck comanda, desde 2008, o programa Direito e literatura: Do fato à ficção. No programa, transmitido pela TV Justiça e que pode ser conferido também no site Consultor Jurídico, ele debate, com convidados que mudam a cada edição, a relação de uma obra ficcional com as questões jurídicas. Para Streck, faltam grandes narrativas ao Direito, e a literatura pode humanizá-lo.
 
Marcelo Moutinho
 
O que a literatura pode ensinar para o Direito?
Lenio Streck
- Pode ensinar muito. Faltam grandes narrativas no Direito. A literatura pode humanizá-lo. Há vários modos de contar a história. Há vários modos de contar a lei. E diferentes maneiras de contar o Direito e seus personagens. Há milhares de Valjeans (de Os miseráveis, de Victor Hugo) que perpassam nos processos judiciais todos os dias. Mas eles não nos emocionam. Lendo Victor Hugo, nos emocionamos. Ou seja, a realidade não nos toca; as ficções, sim. Com isso, confundimos as ficções da realidade com a realidade das ficções. Ficamos endurecidos. E a literatura pode ser o canal de aprendizado do Direito nas salas de aulas.
 
Ao contrário do Direito, que opera com a norma, a verdade, a literatura trabalha com a ambiguidade, às vezes com a inconclusão. É possível conciliar esses dois mundos?
Lenio Streck
- Sim, o Direito opera com a norma e busca a verdade, seja lá o que essa “verdade” queira significar. Mas, assim como a literatura lida com a ambiguidade da linguagem, o Direito não escapa disso. Há muito sabemos que as palavras da lei são vagas e ambíguas. Isso pode ser visto a partir da relação entre texto e norma. O mesmo texto acarreta várias normas (ou sentidos). Um interessante retrato disso pode ser visto nos contos de Jorge Luis Borges. O nome da Rosa, de Umberto Eco, apresenta uma lição de semiótica. O personagem Guilherme de Baskerville é uma espécie de alter ego do filósofo Guilherme de Ockham, o pai do nominalismo. O nominalismo é a grande manifestação contrária ao essencialismo. Os juristas deveriam ler O nome da Rosa. Apreenderiam que o princípio da verdade real é uma “trampa”. Mas apreenderiam também que o positivismo é uma forma de nominalismo. Quando os juízes decidem como querem, isto é, decidem arbitrariamente, nada mais estão fazendo do que “imitar” o personagem Humpty Dumpty, de Alice através do espelho, que dizia: “Eu dou às palavras o sentido que eu quero”.
 
Que livros de ficção trazem mais subsídios para a compreensão do Direito e da Justiça?
Lenio Streck
- Não há livro que não seja útil. Veja: a minha percepção sobre o Direito e a literatura, a sua junção, não segue a linha de autores como Richard Posner ou François Ost. Eles trabalham “Direito e literatura” em livros que explicitam essa relação no texto. Minha leitura é diferente. Se quero trabalhar o conceito de princípio, busco Victor Hugo, em Os últimos dias de um condenado. Ele faz uma ode contra a pena de morte. Por princípio. Também o Coronel Vitorino, de Fogo morto, de José Lins do Rego, é exemplo do que é um princípio (jurídico). E a relação regra-princípio que está em Jonathan Swift, com seu Gulliver? A dramaticidade das Vinhas da ira, a relação capital-trabalho, as injustiças. O realismo (ou naturalismo) do texto de Germinal, de Émile Zola, é um contundente manifesto contra a opressão, mas que guarda, internamente, essa relação dicotômica entre “indivíduo e estrutura”. Um dos meus preferidos é Machado de Assis, com Memórias póstumas de Brás Cubas. Pode haver melhor representação do imaginário patrimonialista brasileiro? Qual é a melhor maneira de discutir “Direito e linguagem” ou “palavras e coisas”, enfim, essa angústia que assalta o homem desde a aurora da civilização e que atravessa mais de dois milênios, do que por meio de Grande Sertão: Veredas?  
 
A figura do advogado aparece em livros de Jorge Amado, Machado de Assis e Monteiro Lobato, e desponta como protagonista na obra de autores como John Grisham. No caso de protagonistas advogados, que livros o senhor destacaria?
Lenio Streck -
Cito, de pronto, As ilusões perdidas e O coronel Chabré, de Honoré de Balzac. A crítica ao sistema judiciário francês do Século 17 atravessa o tempo. É atemporal, como, aliás, deve ser a literatura. Deixemos Balzac falar, em 1840: “Para as galés vão os gatunos que roubam galinhas à noite nos quintais, ao passo que mal ficam uns meses na prisão aqueles que arruínam famílias com falências fraudulentas; mas esses hipócritas sabem muito bem que, condenando o ladrão de galinhas, mantêm a barreira entre pobres e ricos, barreira que, derrubada, provocaria o fim da ordem social; ao passo que quem cometeu falência fraudulenta, o esperto usurpador de heranças e o banqueiro que destrói um negócio em proveito próprio, só estão fazendo com que a riqueza mude de mãos”. São as palavras do Padre Herrera ao personagem Lucien, em Ilusões perdidas. O que mudou de lá para cá? Pouco.
 
Houve algum caso de livro cuja trama, à primeira vista distante das questões do Direito, acabou trazendo lições sobre a matéria? Qual?
Lenio Streck -
Todos os livros podem surpreender. Refiro, por exemplo, A novela do curioso impertinente, uma pequena parte de Dom Quixote, de Cervantes. O fidalgo Ancelmo acreditava na verdade real. Já seu amigo Lotário, não. Podemos nos remeter à Antígona, em que já se podia ver que o Direito não cabe na lei. Ela já sabia disso. Entretanto, parcela considerável dos juristas ainda não sabe. Pensemos em Vidas secas, de Graciliano Ramos. Os filhos de Fabiano, quando chegam à cidade e veem todas aquelas coisas, perguntam-se: será que essas coisas têm nome? Isso também está em Gabriel García Márquez, no romance Cem anos de solidão. Naquela pequena Macondo, metáfora do mundo, as coisas ainda eram tão recentes que, para dirigirmo-nos a elas, tínhamos que apontar com o dedo. Porque elas ainda não tinham nome. Quantas coisas no Direito os juristas ainda desconhecem? Para quantas coisas eles só apontam com o dedo, mas não sabem o seu sentido? Nesse ritmo, não pararia, porque posso emendar um livro no outro.

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