03/08/2018 - 21:05

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A quem pertence esse bit?

03/08/2018 - 21:05

A quem pertence esse bit?

Projeto do Marco Civil da Internet, que regula uso da rede no Brasil e está prestes a ser votado na Câmara, acende debate sobre liberdade de expressão e a manutenção de dados
 
CASSIA BITTAR

O cenário de carência de leis específicas para regular o uso da internet está cada vez mais perto de mudar. Após o Projeto de Lei (PL) nº 2.793/11, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT/SP) e que tipifica os chamados crimes cibernéticos, passar, em maio, pelo plenário da Câmara dos Deputados, o órgão agora se prepara para votar o texto que visa a estabelecer os direitos e deveres na utilização da internet no Brasil, reunindo princípios que vão guiar as leis e futuras decisões envolvendo a rede. Com previsão de ser analisado por uma comissão especial no dia 8 de agosto, o Marco Civil da Internet ainda suscita, porém, polêmica sobre alguns de seus pontos, mesmo após revisões e sugestões de vários setores da sociedade.

Resultado de quatro anos de discussões, a primeira fase do processo colaborativo para a construção do marco foi iniciada em 2009, quando o Ministério da Justiça pôs em consulta pública um anteprojeto de lei que contou com ampla participação social, propondo intervenções com sugestões sobre as condições de uso da rede e o papel de seus usuários, prestadores de serviços e de conexão e do Poder Público.

Partindo das contribuições ao projeto, formulou-se a minuta do anteprojeto, que voltou a ser debatida numa segunda fase, recebendo ainda mais contribuições em debates públicos, encerrados em 2010. Após um ano, o PL foi encaminhado à Câmara. O relatório definitivo, do deputado federal Alessandro Molon (PT/RJ), ficou pronto em julho deste ano.

“Trata-se de uma lei pioneira em termos mundiais e que foca em quatro pilares: proteção do usuário da rede com a privacidade dos seus dados pessoais, garantia da neutralidade, proteção da liberdade de expressão e garantia da transparência da internet”, sintetiza o relator.

Para se ter ideia da participação popular, durante o período inicial de debates, entre outubro e dezembro de 2009, foram mais de 800 contribuições, entre comentários, e-mails e referências propositivas em sites e até redes sociais, como o Twitter. Nos dois dias em que o relatório preliminar da versão final do PL nº 2.126/2011 esteve disponível para consulta pública no site E-Democracia, o texto recebeu 109 sugestões e mais de 14 mil visualizações.

“Ao todo, foram mais de 2.300 contribuições”, informa o coordenador-adjunto da escola Direito Rio, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e membro da Comissão de Direito Autoral, Direitos Imateriais e Entretenimento da OAB/RJ, Carlos Affonso Pereira de Souza. “Nunca tivemos um projeto de lei que tenha chegado ao Congresso Nacional vindo de uma fonte tão plural, tão diversa como a internet”, observa o advogado, que elogiou a forma como Molon detalhou de onde partiu cada ideia de modificação: “O relator inseriu no texto final informações sobre as fontes, o que é inovador e relevante para entender quais são os interesses representados ali”.

Apesar de se destacar pela pluralidade, o PL ainda encontra resistência no que se refere a pontos polêmicos, como a questão de retirada de conteúdos da internet e a responsabilização de servidores. Em nota enviada no começo de julho aos parlamentares, a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) considerou a proposta inconstitucional, afirmando que burocratiza a investigação policial e dificulta o combate a crimes na rede.
A visão do presidente da associação, Marcos Leôncio Ribeiro, é de que o texto prioriza de forma absoluta a liberdade de expressão, criando na internet uma “terra de ninguém”. A crítica diz respeito ao artigo 15 do projeto, que trata da responsabilização por atos de terceiros e diz que os provedores de aplicação (como os sites de redes sociais e plataformas de blogs, por exemplo) só são obrigados a retirar um conteúdo do ar mediante ordem judicial.

“A liberdade de expressão não pode estar desassociada de outros valores igualmente importantes, como a ética e a responsabilidade, e, principalmente, não pode se contrapor à segurança”, alega o delegado. “Com isso, a polícia poderá estar de frente a um flagrante e ter que esperar uma ordem judicial, o que atrasa toda a operação. O potencial lesivo da rede é maior do que o do mundo real. E não há justificativa para a necessidade de ordem judicial, pois não violamos nenhum sigilo”.

Já o advogado e vice-presidente da Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico, Leonardo Palhares, discorda da ADPF: “Não faz sentido criar uma regra que afeta todos os cidadãos para garantir a possibilidade de investigação policial de alguns poucos. Com o auxílio da internet, marcas são consagradas ou derrotadas em questão de horas, por exemplo, pela simples mobilização popular. Essa liberdade de expressão deve ser garantida”, afirma, completando: “Se os provedores fossem responsabilizados pelos conteúdos gerados por usuários, transferiríamos a eles o direito de escolher o teor das informações que poderiam ou não ser levadas à rede, tornando a internet um ambiente restrito e controlado por entidades privadas”.

Segundo Carlos Affonso, o marco cria apenas uma salvaguarda para que o provedor não se sinta obrigado a tirar do ar tudo pelo qual é notificado: “O projeto não impede em nenhum momento medidas extrajudiciais de remoção de conteúdo. Se o provedor achar, por próprio juízo, que o conteúdo é danoso, ele tira do ar. Mas isso impede a criação de uma indústria de notificações e o desestímulo à ampliação de discurso na internet, como no caso de blogs responsabilizados pelo conteúdo de comentários postados”.

A neutralidade da rede é outro ponto que gera debate. Segundo Molon, a preocupação é evitar que provedores de conexão possam celebrar acordos comerciais que impliquem discriminação de conteúdo, ou seja, interferência na escolha do usuário sobre o que ele quer acessar: “Isso é muito comum, embora a maioria das pessoas não saiba. Um provedor faz um acordo com outro e age para que os dados dos sites concorrentes carreguem mais lentamente. É uma violação à liberdade de escolha”.

“O princípio da neutralidade garante que todos os acessos a rede sejam tratados de forma igual pelos provedores de acesso, sem políticas discri-minatórias ou de privilégios a este ou aquele usuário, seja ele pessoa física ou jurídica”, acrescenta Palhares.

Apesar de também considerar a questão de extrema importância, a presidente da Comissão de Direito e Tecnologia da Informação da Seccional, Ana Amélia Menna Barreto, acredita que os membros da comissão que analisará o projeto devem  ficar atentos ao problema da fiscalização. “As empresas de telecomunicações não concordam em se sujeitar às recomendações do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), a Anatel deseja ser o órgão regulador e o relatório final deixa a questão ser decidida por decreto presidencial”, explica a advogada.

Marcos Leôncio Ribeiro também critica o artigo que estipula que os provedores de acesso guardem dados dos usuários por um ano, e provedores de aplicação só mantenham as informações com o aval do internauta: “Retirar dos provedores de aplicação a obrigação de guardar esses dados pode acarretar crimes que não poderão ser identificados. Uma pessoa pode entrar na rede, não concordar com a manutenção de seus dados e cometer uma série de barbaridades. E os provedores de conteúdo terão o respaldo de que a lei o facultou a não dizer quem é o responsável”.

“Não há qualquer justificativa para obrigar provedores e empresas de internet a guardar e armazenar registros de acesso de todos os cidadãos preventivamente, como se todos estivéssemos sob investigação”, salienta Palhares, contrapondo-se, mais uma vez, ao delegado. “E o PL bem direciona o assunto ao permitir que a autoridade policial solicite diretamente aos provedores e empresas a guarda de informações sobre os acessos de pessoas suspeitas”, completa.

No que diz respeito à proteção da privacidade, o PL veta que dados do usuário sejam usados de forma que ele não consinta. “É uma prática comum a pessoa se cadastrar em um site e seus dados serem vendidos para outra empresa, sem seu consentimento”, observa Molon.
 
“Também buscamos, no marco, impedir que navegações sejam monitoradas sem que o usuário concorde, como acontece com sites que usam o que você está lendo para oferecer produtos relacionados”, explica, exemplificando: “Suponhamos que uma pessoa faça buscas na rede sobre determinada doença. Se essa navegação não for protegida, amanhã ou depois, esses dados podem ser acessados por planos de saúde, interferindo no preço”.
Após análise da comissão especial, o marco seguirá para votação na própria Câmara, para posteriormente ser encaminhado ao Senado. Se aprovado, caberá à presidente Dilma Rousseff promulgar ou vetar o texto.

“O projeto tem muitas chances de ser aprovado”, acredita Carlos Affonso. Para ele, a promulgação da lei colocará o Brasil à frente no plano internacional: “Enquanto os EUA e a Europa focalizam na perspectiva criminalizante, o Brasil trabalha, com esse PL, com os direitos fundamentais, que devem ser a base dessa regulação. Afinal, é necessário estabelecer primeiro quais são os direitos na esfera civil para depois pensarmos na sanção penal”.

Para Molon, a agilização do processo de aprovação é urgente: “Quanto mais tempo passa, mais desprotegidos estão os usuários”.

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