12/03/2018 - 12:21

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Auxílio-moradia: direito ou privilégio?

12/03/2018 - 12:21

Auxílio-moradia: direito ou privilégio?

Polêmica sobre o benefício, concedido a todos os magistrados e promotores, reacende em função do julgamento da matéria no STF, marcado para dia 22 deste mês
 
VITOR FRAGA
Nas últimas semanas, o debate sobre o auxílio-moradia concedido a magistrados e promotores no Brasil voltou à tona na esfera pública. Reportagens do jornal Folha de S. Paulo colocaram dois juízes integrantes da Operação Lava-jato – Sérgio Moro (PR) e Marcelo Bretas (RJ) – em destaque, revelando que ambos possuem imóvel em suas comarcas e recebem o benefício. A reação da categoria foi imediata. Entre os argumentos mais comuns, juízes e suas entidades representativas sustentam que há previsão legal na Lei Orgânica da Magistratura (Loman). A defasagem salarial é outra alegação, ou seja, o auxílio-moradia seria uma forma de compensar a ausência de reajustes nos últimos anos. Na visão de alguns magistrados, ainda, as críticas recentes seriam motivadas por uma reação ao combate à corrupção. A Associação de Juízes Federais (Ajufe) convocou para o dia 15 de março uma greve (confirmada até o fechamento desta edição), declarando ter sido essa a vontade da maioria de seus associados, em protesto pela possibilidade de suspensão do benefício – a matéria está na pauta da sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) marcada para o dia 22 deste mês, segundo informações da assessoria de imprensa do órgão. 

Na opinião do professor e coordenador do Centro de Justiça e Sociedade da FGV Direito Rio, Michael Mohallem, o ponto de partida “é que há uma premissa equivocada” no debate. “Alguns veículos jornalísticos publicaram reportagens dizendo que, embora seja legal, existem outros fatores que envolvem a questão. Mas nem tudo o que está na resolução de um órgão, ainda mais a autoconcessão de um benefício, é necessariamente legal. A Loman tem uma previsão vaga no sentido de autorizar o auxílio como regra, a norma diz que o auxílio-moradia será concedido quando não houver apartamento funcional. Do meu ponto de vista, poderia estar mais explícito, determinando o pagamento apenas quando o funcionário tiver sido locomovido a serviço”, afirma. 

A reportagem da TRIBUNA procurou associações nacionais e estaduais de juízes e órgãos do Judiciário estadual. Por meio de sua assessoria de imprensa, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) respondeu que “o dever jurídico implícito decorre do advérbio ‘não’, empregado na frase ‘nas comarcas em que não haja residência oficial condigna para o membro do Ministério Público’. A residência condigna, portanto, deve existir. Caso não exista, somente então surgirá o direito subjetivo. Portanto, a justiça na percepção do benefício decorre do seu amparo legal”. Para o órgão, “o direito subjetivo que surge a partir da inobservância de um dever estatal assume os contornos de verdadeira recomposição”. 

O presidente da Associação de Magistrados do Brasil (AMB), Jayme de Oliveira, reforça o argumento da previsão legal na Loman, que obriga o Estado a “dar para cada magistrado uma casa funcional” e, caso isso não ocorra,  “uma ajuda de custo”. “Se o Estado dá imóvel para um e não dá para outro, o primeiro está em situação vantajosa, independentemente de já possuir um ou mais imóveis. Faz parte da estrutura da carreira do magistrado, como todas as outras garantias que estão na lei, ainda mais para a magistratura que está há três anos sem recomposição salarial”, diz. 

A Ajufe emitiu nota pública declarando que “os juízes federais entraram no foco de poderosas forças em razão de sua atuação imparcial e combativa contra a corrupção e as desmazelas perpetradas na Administração Pública por alguns”, e que por isso a entidade “tem mobilizado todos os magistrados federais para que não deixem de exercer sua atividade judicante, de forma altiva e responsável, não aceitando tratamento diferenciado e depreciativo, inclusive de forma reflexa, atingindo a remuneração que lhe é devida, como todo trabalhador brasileiro”. Até o fechamento desta edição, a Associação de Magistrados do Estado do Rio de Janeiro e a Associação do Ministério Público do Rio de Janeiro não haviam respondido. 

Em artigo publicado em fevereiro na revista Carta Capital, a professora da UFRJ Carol Proner e o diretor da Associação Advogadas e Advogados Públicos para a Democracia, Gustavo Fontana, engrossaram o coro dos que enxergam inconstitucionalidade na concessão do benefício como regra. No texto, afirmam que “o auxílio-alimentação, as diárias, quando se é obrigado a viajar para trabalhar em caráter eventual ou transitório, ou o auxílio-moradia, nas hipóteses legais” devem caracterizar “compensação para gastos com moradia decorrentes do exercício da função”. Não poderiam receber servidores que tenham se mudado “por força de alteração de lotação ou nomeação para cargo efetivo”, pois a mudança seria definitiva, somente quando se desse “ocupação de cargo em comissão e/ou função de confiança em hipóteses específicas”. E acrescentam que não faz jus o magistrado que tiver imóvel funcional à sua disposição ou de seu cônjuge ou companheiro, for proprietário de imóvel no município onde for exercer o cargo e “nem se outro com quem residir já receber auxílio-moradia”. 
 
Julgamento no STF 
A presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, pautou para o dia 22 de março o julgamento sobre o auxílio-moradia.  O pagamento do auxílio como regra foi determinado por decisões monocráticas do ministro Luiz Fux, tomadas entre junho e setembro de 2014, autorizando o pagamento a juízes federais, em seguida equiparando a verba àquela paga aos membros do Ministério Público e por fim estendendo por liminar o direito a toda a magistratura nacional. 

“Se considerarmos a interpretação de Fux, temos então uma segunda camada, a da inconstitucionalidade. Já há uma ilegalidade nas portarias e resoluções dos diversos tribunais que se autoconcedem esse benefício baseadas na Loman, que não o autoriza; mas, mesmo se seguirmos essa interpretação, de que todos os magistrados têm direito apenas por serem magistrados, a Constituição não respalda”, critica Michael Mohallem. Ele acredita que a Carta é “clara naquilo que são prerrogativas da magistratura e outras carreiras importantes de Estado”. “É inegável que juízes devem ter certas prerrogativas, é muito importante deixar claro que a Constituição foi acertada ao garantir-lhes a inamovibilidade, a irredutibilidade de salário. Mas o auxílio-moradia não está na Constituição, e não é por menos”, completa, defendendo que o benefício seja mantido como “exceção justificada”. E exemplifica: “Se um juiz é designado como auxiliar para o STF por um tempo, e mora em outra comarca, sua casa e família ficam no local de origem, aí o auxílio-moradia é absolutamente razoável, caso contrário o indivíduo não seria estimulado a cumprir função importante para o país. No caso do auxílio para os integrantes do CNJ, acho que a polêmica é equivocada, por exemplo. Ou seja, o auxílio-moradia é importante e constitucional desde que seja excepcional e justificado. A concessão como regra é ilegal, porque não tem respaldo na Loman, e é inconstitucional, caso se entenda que a Loman é autorizadora do benefício”. 

Em seu artigo, Proner e Fontana corroboram a tese da legalidade apenas aparente do auxílio: “Tanto o dispositivo da Loman (art. 65, II) como a regulamentação pelo CNJ são flagrantemente inconstitucionais, desconsiderando ao menos três dispositivos da Constituição: I) a remuneração e o subsídio dos servidores somente podem ser fixados por lei específica (art. 37, X); II) os membros de Poder devem receber seus vencimentos em parcela única (art. 39, §4º); III) as únicas exceções ao limite remuneratório são parcelas de caráter indenizatório (art. 37, XI e §11)”. 

Segundo o MPRJ, de fato em alguns casos “é possível que o combate ao auxílio-moradia consubstancie uma reação, uma tentativa de enfraquecer as instituições”, mas que por outro lado “não é incomum que o juízo de valor” a respeito do benefício “tenda a ser influenciado pelo padrão vencimental utilizado pela opinião pública como paradigma do justo”, já que “o nível de especialização” exigido de promotores e juízes, a “elevada responsabilidade que possuem e a sua constante exposição à retaliação do crime organizado” são fatores a serem levados em conta. Segundo informações da assessoria, no órgão estadual “não há qualquer movimentação no sentido de greve”. A AMB, que reúne mais de 14 mil juízes das esferas estadual, federal, trabalhista e militar, deliberou pela não participação na paralisação.
 
Para professor, greve seria a banalização de um direito constitucional
Mohallem critica a possível greve, tanto pelo aspecto de sua legalidade quanto da credibilidade da Justiça. “É uma situação particular porque serão eles próprios que aplicarão a regra [do direito de greve em serviços públicos essenciais] à sua categoria. Se não o fizerem agora, quando tiverem que fazê-lo em relação a outras categorias podem se ver em uma situação fragilizada. O outro aspecto é o do descrédito perante a opinião pública. Seria a banalização de um direito constitucional importantíssimo, historicamente usado em negociações quando há abusos ou desrespeito em relação a um ou mais direitos”.  

Ele lembra que, na maior parte das vezes, o que “sustenta esses movimentos é o discurso sobre um direito fundamental” que entendem estar sendo desrespeitado. “O que os magistrados fariam se chegassem a esse ponto, defenderiam o direito de ganhar acima do teto constitucional? Tenho dúvidas se o farão, do ponto de vista da credibilidade seria um ponto sem volta. Se a demanda for uma defasagem salarial, a discussão deve ser feita em outra esfera, e se é o direito de ter auxílio-moradia em função da Loman, esqueçam o reajuste salarial. São bases muito distintas, e no meu entendimento não há respaldo para nenhuma das duas reivindicações”, defende.  

Em entrevista à Folha de S. Paulo em fevereiro deste ano, o presidente da Associação Paulista de Magistrados, Fernando Bartoletti, defendeu que o benefício é um “direito e não um privilégio”, e chegou a comparar a crítica em relação ao auxílio-moradia a eventuais reclamações contra outros direitos trabalhistas, dizendo que se um trabalhador “levar marmita” para o trabalho não perderia direito ao auxílio-alimentação, assim como alguém que fosse trabalhar de bicicleta não deixaria de fazer jus ao auxílio-transporte.  
 

Mohallem analisa que a declaração “está errada já no exemplo” utilizado. “Na maior parte das atividades, o indivíduo não terá direito ao auxílio-transporte se morar próximo do trabalho. Incorre em fraude quem diz, por exemplo, que precisa de três conduções e não precisa de nenhuma, ou que precisa de auxílio-moradia sem necessitar de fato. As pessoas precisam comprovar a necessidade de qualquer auxílio”, rebate. E acrescenta outro aspecto, o de que não é possível comparar o serviço público com a iniciativa privada. “É comum que magistrados comparem seus salários aos de diretores executivos de grandes empresas, o que é descabido. Existem poucos desses profissionais no Brasil, diferente dos milhares de magistrados; eles trabalham sob pressão grande, provavelmente mais de 40 horas semanais, podem ser demitidos a qualquer erro, não têm vitaliciedade, irredutibilidade, aposentadoria quase integral. A magistratura não foi feita para ser atrativa do ponto de vista salarial em comparação a executivos da iniciativa privada”.

Custo com auxílio vai superar R$ 2 bilhões em 2018
Em termos gerais, o custo para os cofres públicos, em 2018, será de mais de R$ 2 bilhões com o pagamento do auxílio-moradia a autoridades e funcionários de alto escalão, cuja remuneração pode passar dos R$ 30 mil – despesas previstas com o benefício para os três poderes, o Ministério Público e a Defensoria Pública, no âmbito federal, e para conselheiros dos tribunais de contas de estados e municípios, juízes, procuradores, promotores e defensores públicos estaduais. O total gasto em todo o país com o auxílio-moradia é ainda maior, pois inclui despesas dos estados com representantes do Legislativo e do Executivo locais. Os dados são de levantamento da Consultoria Legislativa do Senado. A Justiça do Trabalho, com R$ 197,7 milhões, o Ministério das Relações Exteriores, com R$ 188,5 milhões, e o Ministério Público da União, com R$ 124,1 milhões, encabeçam a lista das instituições com mais verba para o auxílio-moradia em 2018. Segundo o site Congresso em foco, o governo federal já gastou R$ 3,5 bilhões entre 2010 e 2017 para pagar auxílio-moradia a integrantes dos três poderes. De R$ 75,9 milhões, em 2010, o gasto subiu para R$ 814,2 milhões ano passado.

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