12/03/2018 - 12:57

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A invisibilidade das mulheres lésbicas nas políticas públicas referentes à saúde

12/03/2018 - 12:57

A invisibilidade das mulheres lésbicas nas políticas públicas referentes à saúde

RAQUEL  CASTRO*
 
Desde maio de 2011, com o reconhecimento pelo STF da existência das famílias homoafetivas, restou superado o debate antes travado em relação à possibilidade de novas formações familiares, o que vem sendo cumprido e respeitado pelos tribunais de todo o país.

Assim, as famílias formadas entre casais do mesmo sexo merecem tutela jurídica idêntica àquelas dispensadas às uniões heteroafetivas, conforme o mencionado julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, em conjunto da ADPF 132 e da ADI 4.277.

No entanto, ainda precisamos trilhar um longo caminho para que esse reconhecimento seja, de fato, respeitado em toda a sua plenitude, especialmente no âmbito de políticas públicas para mulheres lésbicas, sobretudo na saúde, o que praticamente inexiste atualmente.

O Brasil é reconhecido em todo o mundo pelas políticas públicas em saúde sexual, prevenção e tratamento em DST/AIDS, por exemplo. Mas podemos dizer que tais políticas públicas são também dirigidas para mulheres lésbicas? Há distribuição de insumos, preservativos, cartilhas com esclarecimentos sobre doenças sexualmente transmissíveis entre mulheres e suas formas de contágio? E tratamento psicológico e/ou psiquiátrico para mulheres lésbicas que diariamente enfrentam a misoginia e o sexismo (pelo simples fato de serem mulheres), somados à lesbofobia em praticamente todos os ambientes de convívio social e trabalho, além dos desumanizadores estupros corretivos aos quais tantas lésbicas são submetidas em nosso país (muitas vezes por membros de suas próprias famílias)?

Estes são apenas alguns exemplos antigos e cotidianos, sem qualquer solução pelo poder público, que é igualmente incapaz de absorver novas demandas, especialmente as voltadas para o planejamento familiar de casais homoafetivos.

O Conselho Federal de Medicina, desde 2013, edita normas para a utilização dos métodos de reprodução assistida para casais homossexuais, sendo a mais recente a Resolução 2.168/2017, que permite amplamente a utilização de todas as modernas técnicas, incluindo a fertilização in vitro e a inseminação artificial.

No dia 14/03/2016, o CNJ editou o Provimento 52/2016, que trata do registro de nascimento de filhos havidos por reprodução assistida, sendo amplamente inclusivo com relação aos casais homoafetivos. Em 14/11/2017, o CNJ editou o Provimento 63/2017, corrigindo algumas falhas do provimento anterior, possibilitando o reconhecimento voluntário e averbação de maternidade ou paternidade socioafetiva.
No entanto, apesar da existência dos referidos provimentos e resoluções, não temos notícia, ao menos no Estado do Rio de Janeiro, de nenhuma política pública que permita que tais procedimentos sejam feitos pelo SUS, o que é mais um dado de total negligência no cuidado com mulheres lésbicas, neste caso especialmente as que não possuem meios de custear os tratamentos de fertilização, conhecidos pelos altíssimos custos em clínicas particulares.

Ao tratar do tema “família”, a Constituição Federal é clara ao asseverar que esta possui especial proteção do Estado (art. 226, caput). Porém, vai além ao afirmar o direito fundamental ao planejamento familiar, não podendo nem o Estado e nem a sociedade estabelecer qualquer limite ou condição:
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(...)

§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.”
Considerando a atualidade de nosso quadro social, diversas formas de famílias vêm surgindo e merecem igual tutela do Estado. Portanto, uma família composta por duas mulheres, por exemplo, também é detentora das mesmas proteções que uma família “tradicional”. 

A CRFB/88, em seu artigo 5°, traz o princípio da isonomia, resultando que condições existenciais excepcionais merecem tratamento especial, que permita ao indivíduo a realização plena de sua dignidade. Assim, o direito ao serviço público de atenção integral à saúde de mulheres lésbicas, inclusive no tocante à reprodução assistida, encontra-se totalmente abrangido no âmbito do mínimo existencial.

A possibilidade de formação de vínculo de filiação na família homoafetiva perpassa pela possibilidade de utilização das modernas técnicas de reprodução assistida. E é necessário assegurar à família homoafetiva o direito ao acesso a essas técnicas, inclusive pelo SUS.

O Brasil é signatário de diversos pactos internacionais que asseguram o direito de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental, utilizando, ainda, os benefícios do progresso científico, tais como o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), o Programa de Ação do Cairo (1994), a Declaração de Pequim e Plataforma de Ação (1995), entre outros.

No Brasil, o Ministério da Saúde editou a Portaria 426/GM, determinando que a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida seja implantada de forma articulada entre o Ministério da Saúde, as secretarias de Estado de Saúde e as secretarias municipais de Saúde. 

Já a Lei 9.263/1996 regula o §7º do art. 226 da Constituição Federal, dispondo que o planejamento familiar é parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, determinando que o SUS garanta programa de atenção integral à saúde, em todos os seus ciclos vitais, incluindo a assistência à concepção. 

A Portaria 3.149/2012 do Ministério da Saúde, destinou recursos financeiros a estabelecimentos de saúde que realizam procedimentos de Reprodução Humana Assistida, no âmbito do SUS. Porém, não há notícias da existência de tais estabelecimentos no Estado do Rio de Janeiro.

Em tempos nefastos de avanço de fundamentalismos e retrocessos, é necessário dar visibilidade não apenas às mulheres heterossexuais (que geralmente obtêm tratamento de reprodução assistida na rede pública em caso de doença), mas também às mulheres lésbicas, exigindo do poder público a implementação dos direitos já assegurados nos âmbitos legislativo e judicial. Ignorar a existência de casais homoafetivos femininos, negando-lhes o direito ao planejamento familiar, e a efetiva concretização deste planejamento, é uma forma cruel de invisibilidade.

O direito à saúde da mulher engloba, por óbvio, as suas funções reprodutivas, sendo a negativa deste direito uma verdadeira afronta não só ao direito à saúde, mas também ao direito à família e ao princípio da dignidade da pessoa humana. 
 
* Presidente da Comissão de Direito Homoafetivo da OAB/RJ

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