12/03/2018 - 12:53

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Em três décadas da Constituição Cidadã, os direitos da mulher entre avanços e retrocessos

12/03/2018 - 12:53

Em três décadas da Constituição Cidadã, os direitos da mulher entre avanços e retrocessos

NÁDIA MENDES

Em março de 1988 – há exatamente 30 anos, portanto –, a igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres ainda não estava expressa na Constituição Federal. Vivíamos o processo da Assembleia Constituinte, que redundaria na legislação que viria a reger a vida dos brasileiros depois dos anos de ditadura militar. As demandas femininas, contudo, já tinham sido apresentadas na Carta das Mulheres aos Constituintes, texto elaborado em 1986 pelas participantes de um encontro nacional promovido pelo Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres. Na carta, desejos e sonhos para um país mais igualitário nessa nova fase democrática.

Entre os pleitos, reinvindicações específicas relacionadas a família, trabalho, saúde, educação, cultura, violência, questões nacionais e internacionais. Grande parte dos pedidos foi contemplado no texto constitucional promulgado em 5 de outubro daquele ano. “Pela primeira vez, nossa Constituição incluiu o combate à violência contra a mulher como uma questão de Estado”, destaca a diretora executiva da ONG Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (Cepia), Leila Barsted. 

Segundo ela, o artigo 226, parágrafo 8º, chama a atenção para a necessidade de se criarem mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações domésticas e familiares. “Por mais que não mencione a mulher, esse artigo mostra que, na realidade, o Estado acabaria ‘metendo a colher’ no que era considerado, até então, um conflito privado e de família. Todo avanço legislativo no que diz respeito à violência contra as mulheres se deu tendo como marco este parágrafo da Constituição”, pontua.

Por mais que a Constituição Cidadã tenha abarcado boa parte das demandas femininas, ainda faltava muita coisa a ser conquistada. Um dos pontos levantados pela carta, por exemplo, a eliminação do termo “mulher honesta” do Código Penal, só se concretizou em 2005, em uma alteração que também substituiu no código os termos “dos crimes contra os costumes” por “dos crimes contra a dignidade sexual” e aumentou a pena para abusos sexuais contra menores de 18 anos. Além disso, até aquele ano, se uma mulher vítima de violência sexual se casasse com seu agressor, o crime não existiria mais. O adultério também só deixou de ser crime em 2005.

Mesmo com esses avanços, o país não tinha uma lei punindo claramente a violência doméstica e familiar contra mulheres, o que foi sanado em 2006 com a sanção da Lei Maria da Penha, esforço de grupos feministas que se iniciou na década de 1990 e tomou força no início dos anos 2000. Para Leila, do ponto de vista legislativo, o Brasil é bastante avançado em relação ao combate à violência doméstica, já que, além da Lei Maria da Penha, o país também assinou pactos e convenções internacionais relativos aos direitos das mulheres. “Apesar dessa série de mecanismos que poderiam melhorar o acesso das mulheres à Justiça, nós avançamos pouco em termos estatísticos”, critica. 

Atualmente, a Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro elabora o Dossiê Mulher, com dados estatísticos e análises sobre o quadro de violência contra o gênero feminino no estado. “Fica claramente demonstrado que grande parte dessa violência é doméstica e familiar, o que inclui a violência sexual no âmbito das relações familiares. Isso aponta para uma situação extremamente grave. Como o agressor faz parte da família, muitas vezes a denúncia não é realizada”, observa Leila, pontuando a necessidade de uma iniciativa nacional para catalogar os dados de violência contra a mulher.

O Estado do Rio conta com apenas 14 delegacias da mulher, o que é um agravante para a subnotificação. “Onde não há delegacias especializadas e profissionais sensibilizados, nós vamos ver que a subnotificação é altíssima”, destaca Leila, lembrando, porém, que a linha 180, voltada a denúncias de violência contra a mulher, mostra que os índices são altos. 

“Não são todos os que ligam para o 180 que levam essas denúncias aos registros policiais. Uma parcela grande dessas mulheres não conhece seus direitos, tem medo de perder a guarda dos filhos se denunciar e, muitas vezes, depende financeiramente dos agressores. Em sua maioria, as mulheres que sofrem violência também sofrem outras situações de vulnerabilidade. A questão racial e de classe social ainda é determinante. Sem excluir, é claro, as mulheres de classe média e até de classe alta que também sofrem essa violência e não denunciam por outros motivos, como a vergonha de se expor”, exemplifica. 

Para Leila, a grande preocupação atual é em relação ao orçamento destinado a esses serviços de proteção à
mulher vítima de violência. “Muitos centros de referência, principalmente os geridos pelos municípios, têm perdido funcionários. O percentual de recursos de municípios, estados e do próprio governo federal é muito baixo para a prevenção e o combate à violência. Estamos observando que esses serviços estão sendo enfraquecidos e esvaziados”, constata.

Além disso, destaca ela, é preciso investir em prevenção. “É fundamental promover a educação sobre igualdade entre homens e mulheres desde a escola primária e ao longo da vida dos indivíduos, para mudar estereótipos, valores atrasados e comportamentos violentos. Isso tem sido muito pouco feito. Não basta ficar criando penitenciárias, é enxugar gelo. Temos que ir na origem do problema. É importante que existam delegacias e que os agressores sejam punidos, mas é fundamental que se mude a mentalidade da sociedade através de políticas de prevenção e de ações integradas para que as mulheres saiam das condições de vulnerabilidade”.
 
A mulher na sociedade brasileira
Ao longo de todo o Século 20, pode-se observar o crescimento da escolaridade feminina e o aumento do acesso das mulheres a escolas e universidades. Dados da edição mais recente da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) do IBGE mostram que 18,8% das mulheres economicamente ativas já completaram ao menos um curso superior. Entre os homens, este número cai para 11%. 

A coordenadora executiva da Rede de Desenvolvimento Humano (Redeh), Schuma Schumaher, que também faz parte da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), comemora o ingresso e de mais mulheres em cursos superiores, mas lembra que essa realidade não atinge todas.  “Se analisarmos o quesito cor, as negras e índias, pertencentes às camadas mais pobres da população, ainda sofrem o preconceito étnico/racial, o que dificulta o acesso. Entendemos ser a instituição escolar um privilegiado campo de articulação e fortalecimento para enfrentamento e contribuição na superação das desigualdades e preconceitos”, destaca.

O acesso à educação e à profissionalização propiciou a entrada em massa das mulheres no mercado de trabalho. “A autonomia das mulheres foi ampliada. Assim, elas começaram a galgar postos de poder e decisão”, afirma Schuma, que traz outra conquista importante para a permanência das mulheres no mercado: a ampliação da licença maternidade. “Além da licença paternidade, que também foi uma luta das mulheres”, acrescenta.

Entretanto, segundo ela, ao comemorar a ampliação da participação feminina no mundo laboral, não se pode esquecer das desigualdades salariais que persistem. “A renda média dos homens continua sendo 30% maior que a das mulheres. E, infelizmente, essas mudanças ainda não nos libertaram da dupla jornada de trabalho. Ainda somos as responsáveis pelo trabalho doméstico, pela educação dos filhos e pelo bem-estar da família, além de também contribuir para a manutenção financeira da casa”.

Schuma lembra que a mulher está em toda a parte, colaborando de várias formas para o desenvolvimento do país. “Estamos na ponta da ciência, contribuindo não só com o seu avanço, mas também com a reflexão crítica sobre seus rumos. Estamos na lavoura, na agricultura familiar, na luta por melhores creches para nossos filhos, na luta pelo acesso a um atendimento digno na saúde pública. Hoje, estamos em todos os lugares, mas nem sempre somos tratadas como cidadãs de primeira grandeza. Se somos negras a situação é muito pior, pois o racismo ainda é forte na sociedade brasileira”.

A sub-representação feminina nas estruturas formais da política ainda é um dos principais desafios a serem enfrentados no país, de acordo com ela. “Embora a ‘cara do poder’ esteja mudando, a participação feminina, tanto no Legislativo quanto no Executivo, está longe de corresponder a representatividade eleitoral das mulheres. Somos o grupo menos representado nas instâncias políticas, embora sejamos a maioria do eleitorado”, salienta. Além desse ponto, Schuma também critica a representação feminina nas propagandas. “Mesmo responsáveis por grande parte do consumo no país, ainda somos tratadas de forma desrespeitosa”.
Para os próximos anos, no entender dela, o desafio é convencer distintos setores da sociedade a incorporar a perspectiva de gênero e antirracista em suas propostas políticas. “Isso, aliás, já nem pode ser uma agenda exclusiva do feminismo. Deve ser defendido por todas as pessoas que lutam contra as desigualdades”, defende. “A conquista da cidadania plena ficará muito mais próxima quando homens e mulheres, brancos, negros, índios, crianças, jovens e adultos forem respeitados por suas histórias e escolhas. Quando o desejo e o direito não estiverem ancorados em estereótipos. Quando a reprodução deixar de ser apenas responsabilidade material para homens e atestado existencial para mulheres. Quando a felicidade for simplesmente um sentimento, não uma condição”, argumenta.
 
O direito de (não) reproduzir
Como ressaltado pela coordenadora executiva da Redeh, a ampliação da licença maternidade, da licença paternidade e também a estabilidade da gestante foram direitos que possibilitaram que mulheres com a intenção de serem mães ingressassem e continuassem no mercado de trabalho. A professora de Direito Constitucional e membro da Comissão OAB Mulher Fabiana Duarte Raslan explica que pactos e convenções de direitos humanos já estabeleceram que os direitos reprodutivos não significam apenas que a mulher é uma garantidora da perpetuação da espécie. “A partir da segunda metade do Século 20, o casamento deixa de ser único e exclusivo para a reprodução. O papel da mulher deixa de ser somente o de casar e ter filhos. Os direitos reprodutivos ganham a dimensão de saúde da mulher. A mulher passa a ser vista como sujeito de direitos. Inclusive o direito de não reproduzir”, afirma.

Inicialmente pretendendo ampliar a licença-maternidade para mães de filhos prematuros, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 181 sofreu modificações a ponto de a tornarem um pesadelo. Ao longo de sua tramitação, foi incluída a definição de que “a vida começa já na concepção”. O que, na prática, proibiria a interrupção da gestação no país em todos os casos, inclusive aqueles já previstos em lei. 

Por conta da intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro, a tramitação de todas as PECs encontra-se suspensa, já que mudanças na Constituição não são permitidas nesse período. Entretanto, o fantasma do retrocesso não foi completamente afastado. “A ameaça sempre existe porque é uma questão moral”, pontua Fabiana. “A sociedade brasileira ainda precisa assimilar que a mulher não é mera reprodutora. A gravidez, desejada ou não, resultante de violência ou não, é daquela mulher e não da sociedade. As mulheres são titulares de outros direitos subjetivos que não são suspensos a partir do momento que engravidam”, opina.
Segundo Fabiana, a Constituição de 1988 eleva o compromisso do país com a dignidade da pessoa humana, estabelecendo-a como um pressuposto do Estado democrático de Direito. “Abrir essa discussão para questões morais é um perigo. Temos que debater, mas não podemos deixar de ver a mulher como titular de direitos subjetivos que poderia, inclusive, optar por interromper a gravidez no caso de riscos à sua saúde física e psicológica”, defende.
 
A busca pela igualdade 
“Quando a gente fala da igualdade na Constituição Federal, refere-se a uma igualdade formal que não conseguimos efetivar. Hoje, o que buscamos é equidade, já que sabemos que materialmente nunca seremos iguais aos homens. Só queremos uma igualdade de direitos e de oportunidades. É nesse sentido que a gente precisa galgar essa igualdade que ainda não aconteceu”, defende a presidente da OAB Mulher da OAB/RJ, Marisa Gáudio.

Ela pondera que as mulheres entraram, sim, no mercado de trabalho, mas ainda não conseguem chegar a posições de destaque. “Na área do Direito, inclusive, temos mais mulheres que homens nas faculdades e, a nível nacional, as advogadas já são quase metade da Ordem. Mas, onde estão essas mulheres?”, questiona. “O mercado absorve, mas elas ficam estacionadas, sem ascender verticalmente”, observa Marisa.

Ela aponta que dentro de grandes escritórios de advocacia ainda é raro ver mulheres gerenciando, sócias e, ainda mais difícil, donas de escritórios. “As mulheres não chegam aos espaços de poder. Não é paritário. E quando falamos de negras é um número ainda menor de mulheres que ascendem, já que o racismo está completamente arraigado na nossa sociedade. Às vezes o escritório até tem um número alto de mulheres, mas em que cargos? Fazendo o quê? Essa é a nossa maior dificuldade hoje”, afirma.

Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei do Senado (PLS) 240/2017, que amplia a licença paternidade para todos os trabalhadores brasileiros. Atualmente, essa já é a regra para servidores públicos e também é adotada por algumas empresas. Segundo Marisa, a mudança poderia igualar oportunidades. “Quando uma mulher não é contratada, ninguém diz para ela que o motivo é estar em idade de ter filhos. Mas na entrevista isso é perguntado. Se ela é casada, se quer casar, se quer ter filhos, se já tem filhos. Então uma conquista muito importante, a licença maternidade, acaba atrapalhando a mulher no mercado de trabalho. Isso é muito injusto, já que só a mulher pode engravidar”.

O desafio é, portanto, uma busca por efetivação de direitos. “A gente costuma dizer que não queremos homens que ajudam e sim homens parceiros. Se todo mundo suja a louça, por que a mulher lava? Se todo mundo come, por que só a mulher cozinha? Um grande marco para as mulheres em 1988 foi a alteração de pátrio poder para poder familiar. O pátrio poder significava que o homem mandava na família. Era a própria herança do patriarcado, o que nós estamos buscando romper. A Constituição veio dizer que o poder é familiar e igualou homens e mulheres dentro da família. Mães e pais são iguais. Os filhos são considerados da mesma forma, não existem mais os chamados filhos ilegítimos, aqueles fora do casamento. Todos têm os mesmos direitos. Isso interfere na vida da mulher. Isso muda a vida da mulher”, conclui Marisa.

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