12/02/2016 - 11:57

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Atila Roque – diretor executivo da Anistia Internacional Brasil: ‘É como se a cada dois dias enchêssemos um avião de jovens e o derrubássemos’

12/02/2016 - 11:57

Atila Roque – diretor executivo da Anistia Internacional Brasil: ‘É como se a cada dois dias enchêssemos um avião de jovens e o derrubássemos’

À frente da Anistia Internacional Brasil, o historiador e cientista político Atila Roque é enfático ao defender uma política de Estado para a redução de homicídios. Perante os números crescentes de mortes violentas intencionais com vítimas majoritariamente entre os jovens, pobres e negros, Atila diz que é preciso sinalizar, em todas as instâncias, que esse tema é absolutamente emergencial e fundamental para a consolidação da democracia do Estado de Direito.
 
PATRÍCIA NOLASCO
 
De acordo com levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de mortes violentas intencionais aumentou, e chegou a mais de 58 mil em 2014. A Anistia tem defendido a necessidade de uma política de Estado para redução de homicídios. Quais deveriam ser suas diretrizes?

Atila Roque – Antes de mais nada, uma política nacional de redução de homicídios sinalizaria para uma prioridade inequívoca, por parte do Estado, de que essa é uma situação que precisa ser enfrentada na escala de emergência em que ela se constitui. Quando reivindicamos essa política, é quase na esfera do simbólico, para sinalizar a toda a sociedade, às demais  instâncias federativas, que esse tema é absolutamente emergencial e fundamental para a consolidação da democracia do Estado de Direito no país. Não é possível que um país com o nosso tamanho, os nossos recursos, mantenha, há pelo menos 20 anos, um patamar de homicídios na faixa dos 50 mil/ano. É um cenário catastrófico, equivalente a situações de guerra. Estamos na faixa epidêmica de homicídios. Para a Organização Mundial de Saúde, mais de 10 homicídios em cada 100 mil pessoas por ano já podem ser considerados uma epidemia. A média no Brasil já está na casa das 25 a cada 100 mil, em alguns estados chega a 100. Por qualquer aspecto que a gente olhe, no marco da democracia brasileira manter uma taxa nessa escala não é admissível.

Na minha compreensão, essa política de redução teria que abrir claramente o horizonte para discussão e constituição de diagnósticos mais complexos, sem que a questão seja reduzida à dimensão da segurança pública, permitindo criar um ambiente indutor de uma maior integração de políticas em todos os níveis, no âmbito no próprio governo federal, mas também, e sobretudo, dos estados e municípios. Deveria estabelecer metas padronizadas de medição de progresso a serem seguidas por todas as unidades federativas, e mecanismos claros de monitoramento dessas metas. O primeiro passo para a redução dessas mortes é saber o que está acontecendo em cada território, e a dinâmica do que ocorre. Um plano nacional tem esse papel indutor, colocar o governo federal de forma mais explícita como parte da solução. Hoje ele está numa posição às vezes bastante confortável, de dizer que o problema é dos estados e não pode fazer nada. Não é verdade, o governo federal pode fazer muito, como fez e faz em outras áreas, como por exemplo na política de redução da miséria, da fome. Defendo que no campo da violência letal seja dado esse mesmo patamar de prioridade. Uma outra dimensão além das metas é a letalidade causada pelos policiais. O governo federal teria que estabelecer mecanismos mais sofisticados de controle, padronização e punição que mobilizassem todas as instâncias para coibir esse altíssimo grau de letalidade no campo das forças de segurança, das polícias em particular. E aí algumas outras dimensões poderiam ser contempladas no plano, com foco ou medidas especificas orientadas para o segmento da população mais atingida, jovens entre 15 e 29 anos, homens, e dentro desse universo, os negros. A campanha da Anistia Jovem negro vivo procura chamar atenção para a seletividade na violência letal no Brasil. Vamos para a cama todas as noites sabendo que está morrendo um número altíssimo de jovens, 77% deles negros. É como se a cada dois dias enchêssemos um avião e o derrubássemos.
 
Há indiferença da sociedade?

Atila Roque – Há um processo de silenciamento e invisibilização dessas pessoas que morrem. Não é notícia, não se fala, homicídios só aparecem se forem nas áreas nobres da cidade, e se a vítima é ‘pessoa de bem’. Neste caso, se é uma dona de casa em São Paulo, ou um médico da Lagoa, a vida da vítima é contada, ela tem nome e sobrenome, não se levanta suspeição alguma. A morte é, como todas deveriam ser, tratada como a tragédia que é a perda de uma vida. Quando se trata das periferias, mesmo nos casos de chacina, a notícia ganha espaço pelo volume de corpos, 15, 20 pessoas, mas a narrativa é diferente. Ainda que se verifique a tragédia, sempre se menciona que estavam em áreas perigosas, há uma construção que cria uma leitura, um modo de enquadramento, levanta-se a suspeita se alguma vítima estava envolvida com o crime. A história é enquadrada no marco da suspeita e da criminalização, como se as vítimas, antes de mais nada, tivessem que provar sua inocência. É uma cena comum nessas situações os parentes mostrarem as carteiras de trabalho. Isso não passa pela cabeça de ninguém quando a morte ocorre na Zona Sul. Precisamos romper essa parede de indiferença, enfrentar esse monstro que somos nós mesmos, olhar no espelho e nos vermos como somos, uma sociedade violenta, racista.

Estamos diante de uma questão mais profunda, de um política de Estado, de uma sociedade que está fazendo escolhas graves que reforçam um certo padrão de violência e preconceito, levando à vitimização em altíssimo grau de um certo tipo de pessoa. Qualquer política de segurança vai ter que olhar essa situação com esse grau de complexidade, ou não terá eficácia. Se não for capaz de focar naqueles que estão morrendo mais e naqueles que estão matando mais, não vai conseguir sair desse patamar de violência. Na campanha, mostramos que, num período de dez anos, entre os jovens brancos houve redução de mortes de cerca de 33%, e entre jovens negros da mesma faixa, crescimento de 33%. Por isso é importante o papel indutor do governo federal , de estabelecer critérios e instrumentos de medição uniformizados para que cada estado, de acordo com sua realidade, possa criar instrumentos de redução. Ninguém está dizendo que é fácil, mas estamos há uns 15 anos falando disso, e políticas não foram para a frente. No ano passado, o Ministério da Justiça reuniu os melhores especialistas no Fórum Brasileiro de Segurança Pública e anunciou o plano para os dias seguintes. Até hoje nada saiu.

Uma resolução conjunta do Conselho Superior de Polícia, órgão da Polícia Federal, e do Conselho Nacional dos Chefes da Polícia Civil  aboliu o uso dos termos “auto de resistência” e “resistência seguida de morte” nos boletins de ocorrência e inquéritos policiais. A medida é boa?
 
Atila Roque – O problema é de fundo, ainda que o Rio de Janeiro já não adote a classificação “auto de resistência” e use terminologia mais apropriada, que é “homicídio decorrente de intervenção policial”. Porque o “auto”, como categoria, traz embutido o pressuposto da culpa, da responsabilidade da pessoa que morreu, e da inocência do policial. O que defendemos é que toda situação que termine com morte decorrente precisa ser investigada, para não restar dúvida. Com o auto passa a ideia de que houve resistência, no sentido de culpabilizar a vítima, desde o registro policial até as esferas da Justiça. A título de responder a uma demanda que vem desde 2012 do Conselho Nacional de Direitos Humanos, de que fosse eliminada essa terminologia e adotada uma neutra, foi criada outra que mantém o pressuposto, de que é homicídio decorrente de oposição a ação policial. Mantém a ideia de resistência, uma justificativa para que a força letal fosse utilizada. O que me parece positivo, apenas, na resolução, é o caráter de urgência na investigação. Mas, infelizmente, não se avançou naquilo que reivindicamos há muitos anos, a quebra do paradigma da culpa presumida de quem foi morto, o que acaba orientando e distorcendo toda a investigação. É compreensível que possa ocorrer uma morte na defesa da vida do próprio policial ou de outra pessoa. Mas qualquer dúvida lança uma sombra em toda a corporação. Hoje o número de mortos nas mãos da Polícia é tão alto, com tantos indícios de execuções extrajudiciais, de uso excessivo da força letal, que na verdade se desconfia de todas as situações em que a Polícia mata um jovem na perifeira, porque a rotina de forjar a cena do crime e “plantar” uma arma é naturalizada. Com pouquíssimas exceções, o policial não entra em certos territórios para prender um suspeito. Entra com intenção de matar. Já nos deparamos com situação de confundir arma com furadeira doméstica, entre outras. Com muita frequência executam-se pessoas desarmadas.

As Unidades de Polícia Pacificadora vêm apresentando sinais de fracasso. O que houve?

Atila Roque – A UPP frustrou a expectativa de que era primeiro passo, com o controle da violência, para uma Polícia mais próxima da comunidade, mais humanizada. Demos muito crédito, vimos como um passo na direção correta, da quebrar a lógica da guerra, do confronto. Não deixo de reconhecer mérito na sua origem, mas desde o início dissemos que teriam que estar acompanhadas de uma mudança de doutrina. Isso nunca chegou a acontecer, a UPP ficou sendo uma espécie de gota de virtude no oceano numa corporação que continuou, nos outros territórios, seguindo predominantemente a mesma lógica de guerra. Então, em muito pouco tempo, aquele soldado recém-saído da academia e alocado numa UPP se sente um peixe fora d’água. Há pesquisas mostrando que o grau de insatisfação desse policial é gigante, ele não quer estar lá; depois de algum tempo, se vê como um profissional desvalorizado perante os colegas da Polícia – há situações em que o Bope esculacha com o soldado da unidade. Além disso, tem o que o secretário Beltrame [José Mariano Beltrame, titular da Segurança Pública no Rio de Janeiro] vem dizendo desde o início: a UPP sozinha não é capaz de resolver todos os problemas que estão no entorno e dão causa à violência e ao crime. Em algumas situações isso acabou gerando tensões nas comunidades. Gradativamente o comandante da unidade vai ganhando status de administrador, xerife, tendo que resolver desde briga de marido e mulher e problema com baile funk até o tráfico. Não se pode transferir para ele responsabilidade de ser de ser o único representante do Estado ali. Por maior boa vontade que possa ter aquele comandante, ou vai frustrar essa expectativa ou vai se tornar um déspota, porque tem o poder da força armada. A corrupção e a violência vão aumentando o distanciamento da comunidade. Mesmo reconhecendo que nos territórios ocupados pelas UPPs a taxa de homicídios caiu, houve a sua deslegitimação, numa corporação com poucos instrumentos de controle externo, baixíssima transparência e alto grau de corrupção. Todo o alto comando de uns anos atrás está sendo indiciado por corrupção. É uma cadeia que se beneficia dessa lógica da guerra, que se autoalimenta.

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