12/02/2016 - 12:33

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Dando à luz em meio à escuridão

12/02/2016 - 12:33

Dando à luz em meio à escuridão

ESPECIAL MULHERES
o Ano da Mulher Advogada, instituído pela OAB Nacional, e frente ao avanço da discussão sobre igualdade de gênero, a TRIBUNA preparou para este mês e para março, quando se celebra o Dia Internacional da Mulher, reportagens especiais sobre o tema, abordando tanto a violação dos direitos como as evoluções recentes na sociedade e na legislação. A dramática experiência da maternidade no cárcere é o foco da primeira matéria.

Lei estadual para proibir o uso de algemas durante o parto de presas e internas no sistema penitenciário foi sancionada em janeiro deste ano, reforçando o questionamento sobre as condições em que detentas exercem a maternidade
 
CÁSSIA BITTAR E NÁDIA MENDES
Imagine ter que fazer seu próprio parto na parte de trás de uma viatura policial, no escuro, com as mãos algemadas nas costas. Apesar de chocante, tanto do ponto de vista legal quanto humano, esse fato ocorreu há poucos anos com uma presa sob a responsabilidade do governo estadual do Rio de Janeiro, enquanto era transferida para um hospital. E ele não é o único relacionado ao desrespeito de direitos de mulheres, especialmente quando elas integram um grupo ainda mais vulnerável para a sociedade: o de detentos.

“Quando uma grávida passa mal na prisão, os agentes demoram a agir. Com isso, muitas acabam tendo seus filhos ali mesmo nas celas, pois não dá tempo de transferir para um hospital”, relata Márcia (nome fictício), que passou três anos e quatro meses presa por tráfico de drogas. Márcia ingressou no sistema em 2010, grávida de um mês, e foi levada para o presídio Nelson Hungria, sendo transferida para a Unidade Materno Infantil (UMI) do presídio Talavera Bruce após seu filho nascer.

“Não passei por nenhum acompanhamento médico específico, não fiz pré-natal. O máximo foi uma ultrassonografia no começo da gravidez, quando ainda nem dava para ver o sexo, e as visitas que recebíamos de uma médica que estava lá para o trabalho de rotina com os presos. Tratamento voltado para a nossa gravidez mesmo não existia”, conta ela, lembrando o caso relatado acima, ocorrido com uma colega de cela: “Ela disse para nós que teve que dar um jeito, mesmo algemada, de abaixar a calça, pois já estava sentindo a bebê coroando. Só recebeu ajuda quando a viatura chegou ao hospital, com sua filha já nascida. Acho que não é certo prender a mulher dessa forma vendo que ela está em trabalho de parto, passando mal”.

De fato, apesar de só ter sido proibido pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) em 2012, o uso de algemas consiste em óbvia violação dos direitos humanos, critica a ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro e conselheira da OAB/RJ Maíra Fernandes. “Mesmo assim, e inclusive após a previsão legal, elas eram instrumento comum durante o parto de detentas ou na amamentação de seus filhos”. 

Especificamente no caso do Rio de Janeiro, foi sancionada no dia 8 de janeiro pelo governador Luiz Fernando Pezão a Lei 7193/2016, que proíbe o uso de contenção física durante o parto de presas ou internas no estado. De acordo com o texto, o uso de algemas “só será permitido em casos de resistência, possibilidade de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros”.

O projeto, de autoria dos deputados estaduais Marcelo Freixo, Flávio Serafini, Eliomar Coelho, Dr. Julianelli e Paulo Ramos, todos do PSOL, foi aprovado pela Assembleia Legislativa pouco depois de ter ganhado repercussão na mídia o episódio em que uma presidiária, grávida de nove meses, foi colocada em isolamento, nas chamadas solitárias, na penitenciária Talavera Bruce, dando à luz sozinha dentro da cela. O fato, ocorrido em outubro de 2015, resultou no afastamento da então diretora do presídio, Andreia Oliveira.

Em São Paulo, a proibição da contenção física já havia sido prevista no Decreto 57.783, de 2012, que ressalta a consideração de que a presa em trabalho de parto não apresenta risco de fuga. No ano seguinte, o estado foi condenado a indenizar uma presidiária que foi algemada pelos braços e pés antes, durante e após o parto,
“A lei estadual é importante, pois, surpreendentemente, essa prática acontece em nosso estado. Mas é impressionante que tenhamos que aprovar uma lei tão óbvia. Algemar uma mulher durante o parto ou a amamentação viola o princípio da dignidade da pessoa humana, é uma agressão, uma tortura. Fico admirada de mais profissionais de saúde não se insurgirem contra isso”, observa Maíra Fernandes, que coordenou, junto com a advogada e professora Luciana Boiteux, um estudo na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para apurar a situação das mulheres e crianças encarceradas.

Segundo Márcia, foi justamente a reação de uma enfermeira que a poupou dessa experiência: “O agente do SOE [Serviço de Operações Especiais – órgão responsável pela locomoção dos presos] até tentou entrar na sala de cirurgia, mas a enfermeira não deixou. Teve que justificar que eu, anestesiada, não teria como fugir”, narra ela, observando que, após o parto, porém, chegou a ser algemada no hospital: “O primeiro fiscal que ficou comigo me tratou bem e não cogitou me prender, mas, com a troca de turno, o segundo não foi tão bonzinho. Não tive nem como cuidar do meu filho até sair de lá. Como pegaria nele algemada?”

Pesquisa
Relatos como o de Márcia foram comuns nas entrevistas realizadas por Maíra e Luciana, que, juntamente com outras pesquisadoras, conversaram, entre junho e agosto de 2015, com 41 mulheres em situação de maternidade em duas unidades do Complexo Penitenciário de Gericinó: a penitenciária Talavera Bruce, que abriga presas grávidas, e a Unidade Materno Infantil (UMI), para onde estas são transferidas logo após o nascimento de seus filhos até a separação deles, por volta de seis meses depois.
 
Segundo elas, a pesquisa foi iniciada por constatarem no estudo Infopen Mulheres, baseado no último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, um grande aumento no encarceramento feminino no Brasil nos últimos anos (567,4% entre 2000 e 2014), mais do dobro do de homens. “Nossa intenção foi investigar a situação e dar voz às mulheres e crianças submetidas à experiência da maternidade no cárcere”, explica Maíra.

 “A pesquisa teve o cuidado de mostrar a realidade carcerária feminina mais recente. Triste é que vimos pesquisas da década de 1990 já denunciando situações que continuam, anos depois. Se eu pudesse resumir, diria que a penitenciária é um local em que as leis não são cumpridas, onde há violações por todos os lados. O cárcere é um local de privação não só de liberdade, mas de muitos outros direitos, onde as próprias denúncias são dificultadas e as mulheres sofrem com o preconceito sobre elas”, completa Luciana.

Maíra acredita que o perfil majoritário das mulheres encarceradas demonstra o acúmulo de estigmas: “Elas carregam o preconceito em todas as suas formas: são em sua maioria pobres, negras (37%) ou pardas (41%), acusadas de praticar crimes, em sua maioria ligados ao tráfico de drogas. A sociedade patriarcal não espera de uma mulher esse papel de ‘mulher criminosa’ e por isso a condena com ainda mais severidade”.

A advogada cita mais alguns dados coletados: a maioria das presas é jovem (entre 18 e 22 anos), 78% tem até 27 anos, são mães ou futuras mães, solteiras (82%) e com baixa escolaridade (75,6% não possuem o ensino fundamental completo). “Esse perfil comprova a seletividade do sistema punitivo e o quão danoso pode ser o encarceramento em plena capacidade produtiva. Se fossem aplicadas medidas alternativas à prisão, elas poderiam estar trabalhando ou estudando fora do cárcere, em vez de permanecer na mais absoluta ociosidade da prisão. Nesse sentido, é interessante notar que metade delas trabalhava na época em que foi presa, mas em empregos precarizados (85% sem carteira assinada) e contribuíam para o sustento do lar (19% integralmente) ou parcialmente, com o companheiro (22%)”.

Luciana destaca que a associação ao tráfico reforça como critério seletivo a questão da vulnerabilidade social: “A ligação de mulheres com esse crime comumente é associada ao envolvimento amoroso delas com traficantes. Isso é verdade, mas o que constatamos é que há também uma outra realidade: por sustentarem sua família, o que move muitas delas ao mundo do crime é a necessidade econômica. O tráfico é uma fonte de renda que essas mulheres não vão encontrar no mercado formal, nem no mercado informal lícito. A política de drogas aplicada no Brasil encarcera cada vez mais, principalmente, mulheres. Este dado é importante para refletirmos sobre que escolhas políticas estão sendo feitas, não apenas no caso da criminalização primária, que é a escolha pela política criminal proibicionista de drogas, mas também na questão secundária, ou seja, como se aplicam as leis”.
 
Medidas alternativas
A situação é agravada pelo fato de que muitas dessas mulheres poderiam, por lei, estar cumprindo medidas alternativas como prisão domiciliar – permitida nos casos de crimes de menor poder ofensivo, como porte de drogas, e serem presas provisórias. De acordo com o estudo Saúde Materno-Infantil nos Presídios, feito pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz entre fevereiro de 2012 e outubro de 2014, 65% das gestantes condenadas se encaixariam nesse perfil.

“O artigo 318, inciso III, do Código de Processo Penal autoriza a substituição da prisão preventiva pela domiciliar quando o preso for imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 anos de idade ou com deficiência. Sabemos que a maior parte das presas têm filhos dependentes delas, de modo que esse artigo se aplicaria a grande parte. Além disso, o inciso IV permite a mesma substituição da prisão preventiva pela domiciliar em caso de gestante a partir do sétimo mês de gravidez ou sendo esta de alto risco. É inconcebível, portanto, vermos tantas mulheres ingressando no sistema, provisoriamente, com sete, oito, até nove meses de gravidez”, frisa Maíra.

A juíza coordenadora da Comissão Judiciária de Articulação das Varas da Infância e Juventude e Idoso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (Cevij), Raquel Santos Chrispino, reforça que o atual quadro se deve ao que chama de movimento de encarceramento: “O sistema punitivo brasileiro é um equívoco de prioridades. O país está em sentido contrário ao do mundo todo, inclusive das recomendações da ONU, que é o de desencarceramento. Essa filosofia que infelizmente ainda há no Brasil, da condenação ao esquecimento, à invisibilidade, se volta assim contra o próprio Estado em forma de lesões no sistema penitenciário. Não se pode esquecer que essas pessoas existem, elas se relacionam, ficam grávidas, têm filhos. Não se pode esquecer que há crianças no sistema. Encarcerar sem cuidar de seus presos é inviável em um Estado democrático de Direito”.
A falta de estrutura – de acordo com o Infopen, das 1.420 unidades do sistema penitenciário estadual no Brasil em junho de 2014, 7% eram voltadas totalmente para as mulheres, sendo, destas, menos da metade preparada com celas ou dormitório adequado para gestantes (34%) – é um problema, mas não o principal, segundo a consultora do Unicef Rio de Janeiro nas áreas da primeira infância e proteção, Isabel Abelson, que participou, na UMI, em outubro, da primeira Semana do Bebê organizada pelo órgão, com o apoio da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, em uma unidade prisional.

“Existe uma queixa ou outra em relação ao atendimento médico na UMI, mas lá, minimamente, os direitos são garantidos. No Talavera Bruce, por exemplo, há essa demanda de falta de tratamento para as gestantes. A reivindicação de muitas é ser transferida antes do parto para a unidade materna. O que a Unicef pontua é que mais importante ainda é  assegurarmos as medidas alternativas, porque dessa maneira o número de mulheres no sistema se reduz. Assim, toda a questão interna deles pode ser melhor equacionada.  As medidas alternativas poupariam recursos para o Estado e de forma muito mais humana”, observa Isabela.
 
Aplicadas desde o ano passado no Rio de Janeiro, as audiências de custódia, que consistem na garantia da apresentação do preso a um juiz em até 24 horas nos casos de prisão em flagrante, são vistas como uma esperança de mudança do quadro.

“A recomendação do Unicef é que nessas audiências seja questionado à presa se ela está grávida ou tem filho pequeno. Essas perguntas podem parecer bobas, mas vão fazer toda a diferença no fluxo de entrada das mulheres dentro do sistema. Se existem medidas alternativas previstas legalmente, por que não buscar para essas mulheres penas mais brandas para poder garantir a relação delas com seus filhos menores? Até porque sabemos que, quando um homem é preso, sua família não se desfaz, mas, quando a mulher é presa, ela se desestrutura completamente”, pondera Isabel.
 
Monitoramento
A juíza Raquel reforça: “O sistema prisional não dispõe hoje de um monitoramento específico para saber quando uma mulher é presa grávida. Quem vai ter essa informação é, no máximo, a direção do presídio. Por isso as audiências de custódia se tornam uma política essencial no momento. Essas estatísticas, assim, serão monitoradas. É um grande êxito porque estrutura o serviço de recepção do preso, trazendo para o Judiciário”, afirma ela, que também está trabalhando em articulação com o Ministério Público e com a Defensoria Pública para estabelecer uma política de prioridade nos processos de presas grávidas ou com filhos pequenos.
 
Maíra disse já ter ouvido boas notícias em relação a esse movimento: “Alguns magistrados me disseram que a aplicação das audiências já diminuiu o número de prisões provisórias de gestantes”, conta. “De fato, muitos autos de prisão em flagrante não vinham, e continuam não vindo, com a informação sobre a gravidez, menos ainda o tempo gestacional, de modo que a prisão era mantida sem que o magistrado sequer soubesse das consequências de sua decisão. Agora, ele estará com a mulher diante de si ao decidir sobre a manutenção da prisão, a liberdade provisória ou outra medida cautelar, como o comparecimento em juízo, a prisão domiciliar ou o monitoramento eletrônico. Tendo a esperar, confiante, que não se mantenha a prisão nesses casos, pois, como vimos na pesquisa, toda gravidez no sistema penitenciário será sempre uma gravidez de risco”.

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