12/02/2016 - 12:22

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O espaço tem dono?

12/02/2016 - 12:22

O espaço tem dono?

Contrariando tratados internacionais, governo dos Estados Unidos sanciona lei que garante a empresas daquele país o direito de propriedade sobre recursos espaciais
 
VITOR FRAGA
Mais parece um roteiro de filme de ficção científica: um presidente sanciona lei que garante às empresas de seu país o direito de propriedade sobre os resultados de mineração na lua, em asteroides e outros corpos celestes. Em seguida, algumas empresas iniciam a captação de investimentos para empreender viagens espaciais nas quais irão explorar minérios e outros elementos, que serão trazidos para a Terra e usados e comercializados de acordo com os interesses dessas corporações. A expectativa é que o negócio movimente trilhões de dólares, mas a lei gera polêmica, pois o espaço sideral não poderia pertencer a nenhuma nação em particular, garantem especialistas.

Tudo isso poderia ser mera ficção se, em 25 de dezembro de 2015, o presidente dos EUA, Barack Obama, não tivesse promulgado o Ato de Competitividade de Lançamento Espacial Comercial (em inglês, Commercial Space Launch Competitiveness Act), que tem como objetivo oferecer respaldo jurídico a projetos de mineração de corpos celestes desenvolvidos por empresas como a Deep Space Industries, a Moon Express (que em 2014 nomeou como seu presidente Andrew Aldrin, filho do astronauta Buzz Aldrin, integrante da missão Apollo 11 e segundo homem a pisar na lua) e a Planetary Resources (que tem como um de seus assessores o cineasta James Cameron, premiado pelo filme Avatar, cujo enredo trata justamente da exploração de recursos em outros planetas), entre outras. Acordos internacionais – como o Tratado do Espaço, assinado em 1967 simultaneamente em três países: nos EUA, na Inglaterra e na extinta União Soviética – garantem que os corpos celestes e o espaço sideral não podem ser apropriados como objetos ou território privados. Dessa forma, a aprovação da lei colocaria os EUA em rota de colisão com preceitos definidos em documentos dos quais eles próprios são signatários.

O vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), professor José Monserrat Filho, também acusa os EUA de tentarem legislar nacionalmente sobre um fato que pertence à jurisdição internacional. “O Tratado do Espaço foi ratificado por 103 países e, como ninguém disse nada contra, é aceito universalmente, é a lei do espaço. O costume é criado, em matéria de Direito, quando as pessoas, sem ter assinado coisa alguma, aceitam algo na prática, sem protesto. Esse tratado é um dos poucos documentos internacionais que tem uma aprovação universal”, argumenta Monserrat, que foi chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB).
“Acredito que haverá resistência na ONU, estou ansioso para ouvir o que irão falar”, diz.
 
O presidente da Comissão de Direito Internacional (CDI) da OAB/RJ, Alexandre Tolipan, observa que o Tratado do Espaço e o Ato de Competitividade têm contextos bastante distintos. “O tratado de 1967 foi firmado em meio à corrida espacial, num momento em que a então União Soviética tinha enorme prevalência sobre os EUA na exploração do espaço, tendo inclusive enviado Yuri Gagarin em seu vôo histórico. As maiores preocupações eram a militarização do espaço e que a URSS declarasse soberania sobre o espaço ou a lua. Portanto, o tratado proíbe todas as nações de declarar soberania sobre qualquer objeto celeste ou o próprio espaço”, explica. Tolipan aponta que um dos princípios basilares do Direito espacial – o de que toda a exploração do espaço deve ser feita “para o bem de todos os países” – começa a ser definido por este tratado, e compara essa área do Direito a outra, que regula o espaço marítimo não pertencente a nenhuma nação em particular. “Este termo ressoa mais à frente no Tratado Internacional do Direito do Mar, quando define o solo e subsolo do oceano em alto mar como ‘patrimônio comum da humanidade’”, completa. Em relação à lei americana sancionada em 2015, o presidente da CDI destaca os interesses econômicos envolvidos. “Empresas já exploram o potencial turístico do espaço há alguns anos e estão desenvolvendo tecnologias cada vez mais avançadas. Mais importante: duas companhias americanas estão às vésperas de poder fazer exploração e mineração de asteroides. A nova lei é fruto de lobby intenso destas mineradoras espaciais”, observa Tolipan, que também reforça a crítica em relação ao fato de que o espaço sideral não pertence à jurisdição de um único país, por ser um bem comum. “Os EUA parecem apostar que poderão impor uma interpretação de que o espaço é terra nulius (terra de ninguém) e, portanto, aberta ao primeiro aventureiro que lançar mão, ou talvez aposte que ninguém poderá fazer nada a respeito”, diz.
 
Era espacial e  Guerra Fria
 
A chamada era espacial, inaugurada com o lançamento do satélite russo Sputnik em 1957, coincidiu com o período mais agudo da Guerra Fria, e portanto o uso militar do espaço sempre foi uma realidade. O professor Monserrat garante também que a exploração privada do espaço não é exatamente novidade – e alerta que é um erro achar que a aprovação do Ato de Competitividade iniciou o uso do espaço para fins comerciais. “Logo após o lançamento do satélite Sputnik, criou-se uma instância para discutir questões espaciais, o Comitê para o Uso Pacífico do Espaço Exterior. Portanto, não se pode considerar, como alguns jornais têm noticiado, que o ato marca o início da atividade de empresas privadas na órbita terrestre. Esse cenário existe desde os anos 1960”, explica Monserrat, referindo-se aos satélites de telecomunicação lançados à época. “O que aconteceu é que se percebeu que o espaço poderia ser muito útil para a comunicação. Arthur Clarke [autor do livro 2001: Uma odisseia no espaço], quando ainda era um técnico da força aérea britânica, chegou à conclusão de que, com três satélites colocados de forma equidistante, você cobre toda a Terra. Esse foi o grande princípio da telecomunicação global, e é nesse contexto que nascem e se fortalecem as primeiras grandes empresas que fazem uso comercial do espaço”, explica.
 
Privatização do espaço
Mas embora o espaço já seja explorado comercialmente, o professor Monserrat considera que o ato sancionado por Obama deveria se submeter ao Tratado do Espaço. “A decisão do governo dos EUA contraria esse tratado, cujo artigo 2º, por exemplo, deixa claro que o espaço cósmico não pode ser apropriado. Sabendo disso, os EUA dizem que não querem ser donos dos corpos celestes, mas apenas estabelecer direito de propriedade privada sobre as riquezas resultantes da exploração. É um artifício, parecido com o que usaram após a ida à lua”, critica. Nas últimas décadas, astronautas americanos e sondas da União Soviética e do Japão trouxeram amostras de rochas lunares, com objetivos científicos. Recentemente, teria surgido a alegação de propriedade sobre essas rochas. Mas, além da questão do uso científico, tais amostras foram coletadas por Estados, e não por entidades privadas. “Agora, busca-se estabelecer que cidadãos e empresas americanas possam chegar em algum corpo celeste, extrair riqueza, minerar, sem ser donos do local, sendo donos apenas daquilo que extraírem. É uma espécie de privatização do espaço”, condena Monserrat, acrescentando: “Na verdade, não sabemos o quanto essas empresas estão avançadas na tecnologia necessária, mas a lei permite a elas buscar financiamento, permite ‘passar o chapéu’. Em boa parte, é disso que se trata, o lobby pela aprovação foi das empresas, que estão lutando por isso há anos”. Na opinião de Tolipan, a própria sanção do Ato de Competitividade já indica uma provável pressão de investidores. “Com a aprovação da lei, aumenta a segurança jurídica em relação à propriedade dos resultados da mineração. Será que alguém iria investir nessas empresas sem ter a certeza da propriedade desses recursos?”, aponta.

O presidente da CDI da OAB/RJ ressalta ainda que o fator mais importante será o uso destes recursos para ajudar no desenvolvimento econômico e científico dos países menos avançados. “Parte dos recursos explorados pode ser direcionada a fundos e programas de desenvolvimento destas regiões e programas para desenvolvimento de tecnologia espacial, para aumentar ainda mais nosso conhecimento do cosmo, além de poder difundir melhor estes conhecimentos para toda a humanidade”, defende Tolipan. Ele inclui no debate outra preocupação: “Podemos imaginar o estrago que a mineração dos asteroides do cinturão de nosso sistema solar poderia gerar em algumas centenas de anos. Portanto, uma pergunta preliminar que devemos discutir é a do interesse em começar imediatamente a explorar antes de melhor estudar os possíveis impactos. Será que a atual situação de nosso planeta não é um alerta importante dos perigos de exploração desenfreada e sem prévia análise de impacto?”, pondera.

Para Monserrat, qualquer empresa que quiser explorar um corpo celeste irá, necessariamente, contrariar o direito do acesso universal aos mesmos. “Para explorar comercialmente ou industrialmente, você precisa se instalar na lua, manter lá um sistema produtivo. O artigo 1º do Tratado do Espaço diz que o espaço deve ser explorado em ‘condições de igualdade’, e ‘devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes’. Ora, se o acesso deve ser livre, como se pode admitir que alguém se estabeleça no local, cave durante dias, e ocupe determinada região?”, questiona. Como a tecnologia utilizada será de ponta, as empresas fariam questão de proteger sua propriedade intelectual, impedindo o acesso. “Como admitir que uma empresa se instale e, por consequência, impeça o acesso aos locais em que estiver minerando? Calcula-se em trilhões de dólares as riquezas minerais existentes nos asteroides e na lua. Fala-se até que, se um asteroide for relativamente pequeno, pode-se colocá-lo dentro de uma nave espacial. É quase um sequestro de um corpo celeste”, denuncia.

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