06/06/2017 - 13:34

COMPARTILHE

O ativismo processual do Supremo

06/06/2017 - 13:34

O ativismo processual do Supremo

JOAQUIM FALCÃO*
Um magistrado já disse: “Quando julgo sei que serei julgado”. 
Quando passar a grave crise institucional que atravessamos, a sociedade vai julgar não apenas um ou outro magistrado ou mesmo ministro do Supremo, individualmente. Vai julgar o desempenho mais amplo: do Poder Judiciário em geral e do Supremo em específico, como instituições. Aplicaram e interpretaram a Constituição de acordo com as demandas éticas e de justiça da sociedade? De acordo com o Estado democrático de Direito? Como instituições, foram imparciais? Respeitaram o devido processo legal?

Aumentaram ou diminuíram a imprevisibilidade judicial?

A resposta que todos esperam é que o STF tenha reduzido as incertezas políticas e econômicas. Tornado o país economicamente mais igual e mais ético no trato da coisa pública. Com maior segurança jurídica. Que cumpra prazos e deveres constitucionais.

Mas uma análise do que chamamos de constitucionalismo de realidade tem que trabalhar com a hipótese de que isto pode acontecer, ou não. Que o Supremo, em vez de diminuir as incertezas, pode aumentá-las no médio e curto prazos. Que, em vez de segurança, pode trazer insegurança jurídica. 

Será na comparação que opinião pública, mídias sociais, eleitores, profissionais jurídicos, empresários, trabalhadores e classe política farão entre o que constitucionalmente se esperava do Supremo e o que de fato foi entregue, onde estará o futuro da corte.

O Supremo continuar Supremo não é destino. Não é datum imutável. É tarefa árdua. É constructo permanente.

Explicito melhor. As pesquisas de confiança sobre instituições revelam, por exemplo, que os brasileiros confiam mais nas Forças Armadas, na Igreja Católica e no Ministério Público do que no próprio Poder Judiciário.  
Ao mesmo tempo, pesquisas mostram que crescem demandas dos cidadãos no Judiciário para resolver seus conflitos. Como explicar este aparente paradoxo?

Acredito que o cidadão é a favor do Judiciário porque na democracia é necessário que uma instituição resolva os conflitos sociais. Sem este Poder é pior. Prevalece a lei do mais forte fisicamente. Daí a crescente violência de nossas cidades. Ou prevalece a lei do mais forte economicamente. Daí as crescentes demandas de consumidor.
O cidadão, por um lado, precisa da instituição judicial para viver em paz. Por outro, nela não confia o suficiente. Gostaria dele menos lento, mais ético, mais imparcial e por aí vamos.

A questão crucial é saber se o atual Supremo e o Judiciário, depois de aplacada a crise institucional e solucionadas as denúncias levantadas pela Lava-Jato, Zelotes, Calicute, Águas Claras, terão índices maiores de confiança dos cidadãos. 

São múltiplos riscos e obstáculos a transpor. Não me preocupa na Lava-Jato e na crise da JBS o que muitos temem: parcialidade material do Supremo enquanto instituição. Não me preocupa o “ativismo material”, como nos casos de aborto, união homoafetiva, células troncos e quotas, de que muitos reclamam, sobretudo quando estas decisões vêm do plenário do Supremo. 

No plenário, divergências, discussões interpretativas e pluralidade de votos cumprem função estabilizadora. Neutralizam influências individualizadas. 
 
Preocupa-me o crescente insidioso ativismo processual, que raramente se revela como tal. Muita vez, esconde disputas internas – doutrinárias, ideológicas ou mesmo partidárias – entre ministros isoladamente ou turmas.
 
O que é este ativismo processual?
Ele é filho direto da simbiose entre, de um lado, o Supremo Monocrático, o Supremo Individualizado, o Supremo do ministro “eu sozinho”, o Supremo de ministros contra o plenário. De outro, a gestão individualizada dos tempos e prazos processuais. Das decisões, ou não decisões, através de liminares, pautas, agravos, cautelares, embargos, da incerteza sobre suspeições e impedimentos de ministros, e por aí vamos.

É preciso analisar consequências conjunturais das decisões individualizadas. Análises raramente consideram o macro poder conjuntural da decisão do ministro ou da turma. Seu efeito em mudar o rumo previsível do processo. 

Para obter maiorias estratégicas em turmas. Contar com nova composição do Supremo. Não enfrentar a pauta com o fim de manter determinada solução política ou econômica fora do Supremo. Adiar decisões para favorecer este ou aquele réu.

Usar o foro privilegiado para aumentar a probabilidade de absolvição. O ministro Luís Roberto Barroso fez proposta para manter como foro privilegiado no Supremo apenas atos relacionados ao cargo e durante seu exercício. Só sobrariam no tribunal 5,71% das ações penais.

A atual imprevisibilidade do processo é ameaça maior à segurança jurídica. Diz respeito aos caminhos da decisão. E não ao mencionado e eventual “ativismo material”, que se relaciona com o conteúdo da decisão, quando o Supremo teria invadido áreas do Congresso ou do Executivo.

Ao não pautar até hoje ações sobre planos econômicos ajuizadas décadas atrás, o Supremo toma decisão recôndita: favorece, ainda que temporariamente, a legalidade do status quo. Ou seja, favorece determinado fluxo financeiro de uma das partes ou do Tesouro Nacional. A falta de decisão é forma recôndita de fazer política econômica. Como quem não quer, querendo.

Ao não julgar liminar sobre a proibição de Lula assumir um ministério no governo Dilma, o Supremo criou condições para que esta crucial decisão perdesse objeto. O Supremo, por silêncio processual, favoreceu o impeachment de Dilma. Fez política. O mesmo faz quando não pauta questões relativas à inelegibilidade de Dilma Rousseff. Estimula sua candidatura nas eleições de 2018.

Este ativismo processual tem dois mecanismos privilegiados. Aqui, a jurisprudência tem função apenas doutrinária ou argumentativa. Não detém a função vinculativa que tem em alguns países anglo saxônicos. Somos diferentes. A ideia pode ser a mesma, mas a realidade prática é diferente.

Quando um advogado contrata com um cliente, pede ao estagiário que encontre jurisprudência a favor de sua tese. Só que o advogado da parte contrária faz o mesmo. E o juiz vai julgar sem saber qual a jurisprudência que de fato predomina. Os tribunais não têm sistemas de informações, bancos de dados, procedimentos administrativos capazes de limpidamente oferecer esta resposta. A incerteza judicial se transforma em insegurança jurídica. 

Os pedidos de vista são talvez o melhor exemplo deste ativismo processual. Como já ensinou o professor Diego Werneck, pedido de pauta não devolvido no prazo regimental é, sobretudo, veto interno que o ministro faz aos seus demais colegas. Proibindo-os de decidir. Manter a questão sem decisão talvez seja seu objetivo de mérito principal.

Os ministros não podem nem devem ser homogêneos sobre o que é justo ou não, no mérito. O que é constitucional ou não. Mas precisam concordar num mínimo de regras previsíveis sobre sujeitos, etapas e prazos do processo decisório. Um comportamento processual homogêneo, dentro e fora dos autos.
A proibição de pronunciamentos públicos, de antecipações midiáticas de votos, e de relacionamentos com réus, é indispensável ao devido processo legal. Devia ser a realidade. Não é.

No caso da Lava-Jato e de questões relacionadas ao foro privilegiado, esta incerteza processual é magnetizada porque os 11 ministros do Supremo foram indicados por presidentes investigados ou mencionados na Lava-Jato. A pressão política pode chegar a níveis inimagináveis. 

Aí mora o perigo do Estado democrático de Direito.

*Diretor e professor titular da FGV Rio

Abrir WhatsApp