06/06/2017 - 13:37

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O dinheiro da internet chega à vida real

06/06/2017 - 13:37

O dinheiro da internet chega à vida real

Valorização da moeda e sequestro de informações trouxeram os bitcoins para o nosso dia a dia e suscitaram um questionamento: como regulamentar o uso do dinheiro digital?
 
NÁDIA MENDES
Imagine receber seus honorários e poder dar entrada em um apartamento usando uma moeda que não existe fisicamente em nenhum lugar, além da internet. Parece cena de filme de ficção científica, mas isso já é possível e já acontece no mundo todo, inclusive no Brasil, com mais frequência do que se possa imaginar. E o bitcoin, a principal entre as mais de 700 criptomoedas que existem atualmente, sofreu uma recente valorização graças ao Japão, que foi o primeiro país a reconhecer a moeda legalmente como uma forma de pagamento, em abril de 2017. No começo deste ano, um bitcoin valia cerca de U$ 900; no fechamento dessa edição da TRIBUNA o valor estava estimado em mais de U$ 2 mil, o que corresponde a cerca de R$ 7 mil. E a tendência é que esse valor aumente.

Mas, para entender as moedas virtuais e o impacto que elas podem causar na vida de cidadãos comuns, é preciso voltar ao ano de 2009, quando a tecnologia do bitcoin veio a público. Satoshi Nakamoto é o pseudônimo do criador do software do bitcoin e não se sabe ao certo se tratava de uma única pessoa ou de um grupo de programadores. O que se sabe é que conseguiu resolver o principal problema para a criação do dinheiro digital, segundo explica o pesquisador da área de tecnologias financeiras e segurança digital do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS-Rio) Gabriel Aleixo. “Ele resolveu o problema do gasto duplo. Você não pode gastar o mesmo dinheiro duas vezes. Na rede do bitcoin todas as transações são transparentes e os próprios usuários realizam uma espécie de auditoria dessas transações”, explica. 

Blockchain é o nome dessa rede, uma espécie de banco de dados público e transparente que concentra todas as transações com bitcoins. “Diferentemente de uma instituição tradicional, como um banco comercial, por exemplo, em que eu pago a um intermediário para atribuir confiança a esse processo, na rede do bitcoin quem faz isso são os próprios usuários. Cria-se um novo paradigma, em que não é necessário um provedor para que o serviço opere rigorosamente conforme foi programado. Está tudo baseado em algoritmos e leis matemáticas”, conta Aleixo.
 
Regulamentação
O desafio é, portanto, entender como regulamentar esse sistema, que é novo e totalmente descentralizado. Dono da CoinBr, uma das maiores “casas de câmbio” de bitcoins do Brasil, conhecidas no meio como exchanges, Rocelo Lopes é ferrenho defensor de uma regulamentação da moeda digital no país. Para ele, os órgãos governamentais competentes, como a Comissão de Valores Imobiliários (CVM), o Banco Central (Bacen) e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) se eximem da responsabilidade dessa regulamentação, já a Receita Federal considera os bitcoins como ativos financeiros que devem ser declarados no Imposto de Renda em caso de lucro.

“Cada um já deu seu palpite”, diz Lopes. “Para a CVM, trata-se de um ativo de pagamento, portanto deveria ficar sob a tutela do Bacen, que discorda que as moedas virtuais sejam ativos de pagamento. O Coaf defende que se trata de um volume irrisório, ao que eu me oponho, já que estamos falando de um mercado movimentando R$ 100 milhões por ano e em expansão. E se amanhã uma exchange brasileira quebrar e sumir com os bitcoins e o dinheiro dos clientes, quem vai se responsabilizar?”, questiona. De acordo com Lopes, esse é o principal problema gerado pela falta de regulamentação. “É basicamente uma relação de confiança entre cliente e exchange. É claro que, como cidadãos, estamos sob um Código Civil, mas ainda é muito pouco para a responsabilidade que nós temos”, defende.

Outro problema da falta de regulamentação, segundo ele, é em relação à facilitação de lavagem de dinheiro. “Não existe uma regra explicitando que eu preciso exigir um documento de quem queira fazer transações comigo. Eu não preciso ter esse controle”, explica. Mas, já que as compras de bitcoins são feitas por meio de transferências bancárias, os donos de exchanges acabam se eximindo dessa responsabilidade. “Como não tenho essa obrigação de saber a origem do dinheiro, se me perguntarem, transferirei a responsabilidade para os bancos. Eu não tenho mecanismos para descobrir como aquela pessoa conseguiu aquele dinheiro. Os bancos têm. Os bancos têm ferramentas suficientes para verificar uma transação e têm todo um departamento de compliance para fazer isso. Quem deu a conta bancária para o cidadão transferir o dinheiro para mim é que tem que ser responsável por isso”, reforça.

Além desses dois problemas, a relação entre exchanges e bancos comerciais vem gerando muita dor de cabeça. “Nenhum banco quer trabalhar com empresas de bitcoins”, atesta Lopes, que briga na Justiça com duas instituições financeiras para que mantenham suas contas abertas. “Para os bancos trabalharem hoje com as exchanges elas precisam mentir ou comprar um produto de seguro, fazer uma aplicação e passarem a ser lucrativas para o banco, até determinado momento”. Segundo ele, é cada vez mais comum os donos de exchanges receberem uma carta dos bancos alegando que não existe mais interesse comercial em manter aquela conta. “A falta de regulamentação dá esse direito ao banco”, salienta.

Segundo a advogada Tatiana Casseb, coordenadora e organizadora do livro A revolução das moedas digitais: bitcoins e alltcoins (Editora Revoar), o modelo adotado por Cingapura seria o mais adequado para o Brasil. “No modelo tributário de Cingapura, as moedas digitais são vistas de acordo com a função que assumem. Se o comportamento é como meio de pagamento, a tributação vai incidir como meio de pagamento. Se for utilizada como valor imobiliário, a taxação vai ser essa. Se for como um software, vai ter outra taxação. Acredito que seja melhor analisar a função do que a natureza jurídica em uma legislação”.

Entretanto, a definição da natureza jurídica das moedas digitais poderia ser muito útil para que não seja necessária a criação de uma legislação específica. “Para mim, o bitcoin poderia ser considerado como uma moeda estrangeira, na medida em que já existem países que usam o bitcoin em câmbio”, defende Casseb. No entnder da advogada, o bitcoin é apenas uma aplicação da blockchain, portanto pode ser que, com uma regulamentação, a oportunidade de fazer uma legislação mais ampla e mais funcional seja perdida.

Na opinião de Casseb, uma normatização mais funcional conseguiria abarcar grande parte das situações, mas o ideal seria que existisse uma legislação internacional, como um tratado, estabelecendo alguns conceitos a nível mundial. “O bitcoin é uma tecnologia globalizada. Faz mais sentido uma regulamentação internacional, já que cada país vê as coisas de um jeito. Quando você consegue entrar em um consenso, é possível criar padrões mais semelhantes”.
 
Fim da moeda em espécie?
Uma das grandes preocupações de Tatiana Casseb é em relação ao desconhecimento geral sobre as moedas digitais, principalmente por parte dos legisladores. Para ela, o Bacen vem se mostrando interessado no assunto, conversando com o mercado e analisando panoramas internacionais, mas o mesmo não vem sendo feito pelos legisladores.

Tramitam dois projetos de lei na Câmara dos Deputados sobre assuntos correlatos a moedas digitais. O primeiro trata da extinção total de moedas (PL 48/2015), incluindo o fim da produção, circulação e uso do dinheiro em espécie, e aguarda relator na Comissão de Direito do Consumidor. Já o PL 2303/2015 trata da inclusão das moedas virtuais e programas de milhagem aéreas na definição de “arranjos de pagamento” sob a supervisão do Banco Central e aguarda instalação de comissão temporária. “Falta conhecer um pouco a dinâmica do sistema e trabalhar junto com o mercado para não engessar. Em um país como o Brasil, em que grande parte da população não tem saneamento básico, é inviável falarmos na extinção do dinheiro em espécie e substituição por moedas virtuais”, pondera a advogada.

A solução, para ela, é educar tanto a população quanto o legislador. “No Brasil, temos tendência a aprovar legislações em momentos de crise. Minha preocupação é que, caso aconteça alguma coisa, seja aprovada uma lei sem a necessária discussão com a sociedade e o mercado, gerando mais uma insegurança jurídica. Existe a tendência mundial de regulamentar, mas é preciso entender o que se está regulamentando”, argumenta. 
No entanto, não existe consenso em relação à necessidade de regulamentação. Gabriel Aleixo reconhece a importância da experiência do Japão. “A regulamentação traz legitimidade e segurança jurídica para abrir um negócio nessa área, passa a existir orientação em certo sentido. Se o Japão falou que é dinheiro, é dinheiro, não é ativo”.

Diz, contudo, que, se startups de compra e venda de bitcoins passarem a ser interpretadas como instituições financeiras, haveria um grande engessamento. Ele cita o caso do Departamento de Serviços Financeiros do Estado de Nova Iorque, que passou a emitir a BitLicense, uma licença de negócios referente às atividades com  moedas virtuais em 2013, e acabou retirando os negócios de bitcoins do estado. “Quando a BitLicense foi lançada, Nova Iorque era um dos principais celeiros de startups e empresas de tecnologias. Com a criação dessa regulação, que é bastante engessada, as empresas acabaram migrando para estados mais interessantes”.

A diretora de Inclusão Digital e presidente da Comissão de Direito e Tecnologia da Informação da OAB/RJ, Ana Amelia Menna Barreto, acredita que, por mais que os países ainda não saibam como irão lidar com essa novidade, a tendência é a regulamentação. “Os governos não aceitarão um mercado paralelo de sucesso sem o pagamento de impostos. Mas no Brasil, por enquanto, não vejo nenhum movimento de tendência regulatória”, observa.

O caráter transnacional de uma moeda digital é visto como uma vantagem para ela, que acredita que o bitcoin seja uma promessa. “Como a moeda não é submetida a nenhum controle estatal, a volatilização de sua cotação é incontrolável, fato que afasta os investidores tradicionais. A ausência de burocracia bancária e os custos podem ser vistos como ganhos, bem como a não incidência de impostos”, destaca. Ana Amelia acredita que, antes de pensar em investir em moedas digitais, é preciso conhecer sobre segurança na rede. “Se você não é exatamente um ‘ser digital’ alfabetize-se primeiro”, aconselha.
 
Ataques cibernéticos
Além da crescente valorização da moeda, outra razão que trouxe os bitcoins para o noticiário internacional foi a série de ataques de hackers a computadores com o sistema operacional Windows que atingiu mais de cem países no mês de maio. O curioso nesses ataques, que criptografaram informações dos computadores atingidos, é que o resgate dos dados foi pedido em bitcoins. Entre as explicações, está a possibilidade do uso anônimo dessas moedas por serem transações sem rastros.

Para Gabriel Aleixo, o anonimato não passa de um mito em torno dos bitcoins. “Na internet você só é anônimo até cometer um crime. Se você fizer algo de errado existe um número, que está atrelado à sua conexão, o IP. Por meio de uma ordem judicial é possível pedir a quebra desse sigilo. Com os bitcoins acontece de uma forma parecida. Para casos de investigação criminal é possível, com uma análise dessas transações chegar à pessoa”, esclarece. 

A solidez da moeda foi, na opinião de Aleixo, a principal razão da utilização dos bitcoins nesse caso. “O bitcoin é um bom dinheiro, principalmente por ser mais transparente. Você deixa rastros. Por ser um dinheiro totalmente digital, esses rastros são deixados automaticamente. Uma pessoa que comete crimes com bitcoins vai precisar passar por todos os processos tradicionais de lavagem de dinheiro que ela teria recebendo em dólar, por exemplo”.

O diretor de segurança da informação e governança da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Vinicius Fernandes, discorda que seja tão fácil assim localizar autores de crimes cibernéticos. “Uma moeda comum tem um órgão central, que vai emiti-la. Quando você usa o sistema bancário comum, você consegue usar uma trilha de auditoria para poder seguir o caminho do dinheiro. Com o bitcoin, não se consegue fazer isso. O anonimato é completamente preservado, a privacidade é preservada. Ele é tão seguro que quem comete crime cibernético começou a ver uma oportunidade”.

Fernandes defende que é inevitável o engessamento ao se regulamentar o uso de uma tecnologia. “A segurança em si atrapalha a produtividade, mas se o Brasil dificultar muito o uso do bitcoin pode incentivar o uso de outra das centenas de moedas que existem hoje”. Ele acredita que é preciso um debate mais amplo na sociedade sobre o tema. “Por trabalhar com normas de segurança, eu começaria por uma regulação mais branda, para educar as pessoas a utilizarem. O ideal é achar um contraponto entre a inibição do mau uso e não deixar que a moeda se torne mais um problema polêmico de tecnologia”. Segundo Fernandes, os aplicativos de transporte, como o Uber, e a criptografia do Whatsapp são exemplos de problemas gerados por falta de regulamentação. “Para cada medida de segurança, dez outras formas de burlar irão surgir, então é preciso educar a população para usar de forma legal e que não seja nociva à sociedade. Acredito que a parte educacional é muito mais eficaz do que levantar bandeiras para impedir o uso”, finaliza.

          Curiosidades
  • O criador do bitcoin estabeleceu em 21 milhões o máximo de moedas deste tipo que podem ser criadas. Atualmente, este número está em um pouco mais de 16 milhões.
     
  • A primeira transação com bitcoins foi feita em 22 de maio de 2010, quando um americano transferiu 10 mil bitcoins para um inglês em troca de duas pizzas. Na cotação atual, as pizzas valeriam U$ 20 milhões.
     
  • São chamados de mineradores os responsáveis por “fazer” os bitcoins. Eles utilizam computadores com alto poder de processamento para verificar as transações da rede e ganham bitcoins em troca.
     
  • Os bitcoins podem ser usados pra remessas de dinheiro entre países com custo mais baixo que o dos bancos. Não há limite de valor nas transações.
     
  • Cada transação de bitcoins demora cerca de 10 minutos para ser efetuada, o que, para lojistas, é mais rápido do que operações feitas com cartão de crédito.
     
  • O site coinmap.org concentra os locais físicos que aceitam bitcoin no mundo inteiro. 
     
  • Marcas como Dell, Microsoft e Paypal já aceitam pagamentos em bitcoins por seus produtos e serviços.

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