06/06/2017 - 13:32

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Juízes nas redes, entre direitos e conflitos

06/06/2017 - 13:32

Juízes nas redes, entre direitos e conflitos

Magistrados usam as redes sociais, como qualquer cidadão, para expressar opiniões e visões de mundo. O problema é quando a exposição põe em risco a imparcialidade necessária para julgar
 
VITOR FRAGA
 
Utilizadas por bilhões de pessoas em todo o mundo, as redes sociais, além de veículos de interação e comunicação, tornaram-se um imenso manancial de opiniões sobre os mais diversos assuntos. Nesse universo, há profissionais de todas as áreas, inclusive juízes. Embora um magistrado seja também um cidadão – com direito, portanto, a expressar livremente suas visões de mundo –, a exposição de sua opinião a respeito de um determinado tema, situação ou pessoa pode entrar em rota de colisão com uma característica essencial ao trabalho de quem tem como dever a promoção da justiça: a imparcialidade.

Recentemente, alguns exemplos se tornaram emblemáticos pela grande repercussão das opiniões expostas, e também pela polêmica que despertaram. A TRIBUNA conversou com alguns magistrados e também com o procurador-geral da OAB/RJ, Fábio Nogueira, que esclareceram que não se pode impedir ninguém, inclusive juízes, de expressar suas ideias – e abordaram, ainda, os limites estabelecidos para isso na lei.

A atividade dos juízes é regida pela Lei Complementar 35/1979, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman). Além desta, o Código de Ética da Magistratura, o Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal impedem que eles participem de um processo quando já se manifestaram sobre a questão. Segundo o artigo 36 da Loman, por exemplo, é vedado ao magistrado “manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério”.
 
Já o Código de Ética, em seu artigo 12, determina que “cumpre ao magistrado, na sua relação com os meios de comunicação social, comportar-se de forma prudente e equitativa”, para que “não sejam prejudicados direitos e interesses legítimos de partes e seus procuradores”, e se abstendo “de emitir opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos, sentenças ou acórdãos de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos, doutrinária ou no exercício do magistério”.
 
Liberdade de expressão
Os juristas ouvidos pela reportagem foram unânimes em defender o direito dos magistrados à liberdade de opinião, já que se trata de  um direito de todos os cidadãos. Salientam, contudo, que as restrições previstas em lei devem ser consideradas. Coordenador do Núcleo de Juízes Auxiliares da Corregedoria (Nujac) do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), Luiz Umpierre de Mello Serra cita a Loman, em que “há uma vedação expressa sobre o juízo depreciativo”, ou seja, a críticas sobre o julgamento de outro magistrado. “Com o sistema de comunicação hoje existente, as opiniões dos magistrados sobre as matérias ou sobre a forma com que enfrentam as questões do dia a dia de sua atividade judicante já se tornam conhecidas através das sentenças prolatadas e a repercussão dessas sentenças através dos recursos apresentados aos tribunais”, explica. O procurador-geral da OAB/RJ, Fábio Nogueira, argumenta que antes de tudo o juiz também é cidadão, e não está “imune à realidade” que o cerca, tendo “sua própria percepção” dos fatos. “As restrições impostas pela Loman e pelo Código de Ética da Magistratura, em determinado grau, são parecidas com as restrições de manifestação impostas pelo Estatuto da OAB e pelo nosso Código de Ética”, compara. 

Reforçando a tese de que o juiz, como qualquer cidadão, tem o direito de expor o que pensa, o desembargador federal e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) no biênio 2012/2014, Nino Toldo, esclarece também outros pontos. “Um juiz tem o direito de manifestar publicamente suas opiniões. Todavia, tem restrições, já que não pode, por exemplo, dedicar-se à atividade político-partidária, pois a Constituição Federal o proíbe (art. 95). Assim, não pode, por exemplo, expressar apoio explícito a determinado candidato a cargo eletivo, tampouco participar de comícios políticos organizados por partidos políticos. Pode, porém, participar de manifestações públicas contra a corrupção porque uma manifestação dessa natureza não é político-partidária, mas cívica, ainda que dela participem políticos e agremiações”, defende. 

O desembargador federal aposentado Vladimir Passos de Freitas, que também presidiu a Ajufe (1994 a 1996), reitera que magistrados não podem opinar sobre casos sob seu julgamento, entre outras vedações. “Estas proibições visam a evitar que o juiz revele parcialidade e também que sejam prudentes e corteses com as decisões de seus colegas. O direito de opinião tem restrições e aos juízes, pela função que exercem, este é um ônus necessário. Pode e deve ser restrito e, quando necessária, a manifestação deve ser dada pela instituição a que pertence ou pela associação de classe, em nota pública”, sustenta. Procurada pela reportagem, a Ajufe informou, através de sua assessoria, que não tem posição sobre a questão.
 
Sociedade em rede
Considere-se apenas o Facebook. Segundo informações de fevereiro deste ano, da Agência Reuters, a rede social criada por Mark Zuckerberg em 2004 teve crescimento de 17% em número de usuários em 2016, chegando a 1,86 bilhão de pessoas conectadas. O Brasil tem hoje cerca de 100 milhões de usuários, atrás apenas de Estados Unidos e Índia. Portanto, sendo os juízes cidadãos como os demais, seria impossível que dentro do universo da magistratura não houvesse usuários das redes, e que estes não expusessem nesse ambiente suas ideias. Um deles é o juiz do TJRJ João Batista Damasceno, cujo perfil eventualmente registra comentários próprios a favor de direitos fundamentais, como a liberdade de expressão, ou de campanhas populares atuais, como as Diretas Já. “A Carta assegura a todos a liberdade de expressão por todos os meios existentes”, relembra. O Código de Ética da Magistratura, segundo ele, repete o conceito ao falar de transparência e “recomenda relação com os meios de comunicação social”, porém com prudência e equilíbrio na relação com veículos de informação. “A manifestação não só está autorizada como recomendada, desde que não se busque publicidade pessoal e não se privilegie informação a uma empresa de comunicação em detrimento de outra.
 
Nenhum juiz é neutro, pois sua visão de mundo decorre de sua formação intelectual. Neutralidade, imparcialidade e liberdade de manifestação do pensamento são questões distintas que precisam ser tratadas distintamente”, resume Damasceno, que é membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
Também do TJ e membro da AJD, o juiz Rubens Casara salienta que o magistrado, “além de ser um funcionário público e um agente político, é também um cidadão que pode e deve exercer o direito à liberdade de expressão”, e que os limites desse direito “estão condicionados pela própria normatividade constitucional. O dever constitucional de imparcialidade é o único limite que diferencia a liberdade de expressão do ‘cidadão não-juiz’ da liberdade de expressão do ‘cidadão-juiz’. Por imparcialidade, entende-se a equidistância dos interesses e teses das partes em um determinado caso concreto”, pontua.

Dois exemplos recentes causaram polêmica e tiveram repercussão nacional. Um deles foi o da juíza do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) Diele Denardin Zydek, da 5ª Vara de Fazenda Pública da capital. Em maio, ela determinou, após pedido da Prefeitura de Curitiba, a proibição de acampamentos na cidade no dia em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva prestou depoimento ao juiz Sergio Moro – grupos de apoiadores do petista pretendiam alojar-se dessa forma na cidade. Pouco depois da divulgação da decisão, usuários das redes sociais expuseram conteúdo em que ela manifestava posições contrárias ao ex-presidente. Por exemplo, em março de 2016, dia em que Lula foi conduzido coercitivamente a depor, Zydek teria publicado o seguinte comentário no Facebook: “E hoje a casa caiu para Lula”, seguido de cinco ícones de mãos aplaudindo – o que alguns usuários consideraram prova clara de parcialidade da magistrada na decisão do mês passado. Após a repercussão, o perfil foi apagado. 

Outro, também do Paraná, é o da juíza Fernanda Orzomarzo, cujo texto sobre mérito e condição social repercutiu rapidamente nas redes sociais. Após uma semana da publicação, em 30 de agosto, o post já tinha mais de 36 mil compartilhamentos e 100 mil curtidas (atualmente registra 48.735 compartilhamentos e 148 mil curtidas). “Ralei duro para ser juíza de Direito. Abdiquei de festas, passei feriados em frente aos livros, perdi momentos únicos em família. Sim, o esforço pessoal contou. Mas dizer que isso é mérito meu soa, no mínimo, hipócrita”, escreve ela. A conclusão é uma crítica à meritocracia: “O discurso embasado na meritocracia desresponsabiliza o Estado e joga nos ombros do indivíduo todo o peso de sua omissão e da falta de políticas públicas. A meritocracia naturaliza a pobreza, encara com normalidade a desigualdade social e produz esquecimento – quem defende essa falácia não se recorda que contou com inúmeros auxílios para chegar onde chegou”. 

Apesar dos muitos apoiadores, a opinião de Orzomarzo – que também integra a AJD –, por outro lado, recebeu críticas, uma delas da juíza do Tribunal de Justiça de Minas (TJMG) Ludmila Lins Grilo (que também faz parte do imenso contingente de magistrados que expressam frequentemente opiniões nas redes). Em uma resposta à colega, ela fez uma crítica à AJD, em suas palavras uma “associação de magistrados de viés marxista que frequentemente fala ao público como se representasse todos os juízes, quando, na verdade, é repudiada pela grande maioria dos magistrados”. Argumentou que jamais estimularia “revolta contra um ente abstrato e sem rosto, como o Estado”, mas sim coragem e força de vontade “e, principalmente: sua FÉ”, e prosseguiu, ressaltando sua origem: “Morava no subúrbio do Rio de Janeiro, no bairro de Olaria. Não tinha vista para o Cristo Redentor, mas sim, para o Complexo do Alemão. Conservo até hoje uma pequena cicatriz na perna de um TIRO tomado dentro da escola, aos 11 anos, em Ramos”, concluindo que “enquanto a Fernanda te estimula a permanecer onde está, por não ter condições financeiras, eu te digo: ignore sua condição financeira. Não fique onde está, se não te agrada. Saia daí”, e que, “claro, existem desigualdades sociais – e lamento informar: sempre existirão. Por isso, parta para o abraço: não deixe que pessoas como Fernanda digam que você não pode. Não acredite nisso. Não se vitimize” (o uso de maiúsculas é da autora). 

O perfil de Grilo, ativo e com nome completo, registra mais de seis mil compartilhamentos e 13 mil curtidas desse post. O perfil de Orzomarzo também continua ativo, embora com outro nome (conforme já mencionado, Zidek desativou o seu). Procuradas através da assessoria de imprensa do TJPR, as duas juízas daquele estado declararam que não iriam se pronunciar sobre o assunto.

Sobre estes casos concretos, os juristas ouvidos pela reportagem foram cautelosos. Mello Serra respondeu, através da assessoria de imprensa da Corregedoria do TJ, que não poderia comentar casos individuais. “A Corregedoria tem uma função de orientar o magistrado, de forma muito objetiva e muito focada na atividade da judicatura. A opinião antecipada de um magistrado sobre um caso concreto é uma hipótese de impedimento porque ele expressa opinião fora do contexto do processo sem que as partes e as pessoas que estão tendo acesso àquela opinião tenham acesso à integralidade dos atos”, afirma.

Para Nino Toldo, “um juiz é um ser humano, tem família e vive em uma sociedade, que, no caso brasileiro, é muito desigual e injusta. Veja que aqui já expresso uma opinião, e esses aspectos influenciam as pessoas. Não conheço nenhum dos magistrados citados, mas, por coerência, reconheço, respeito e defendo o direito de expressarem livremente suas opiniões. Um juiz pode ser comunista ou liberal capitalista? Sim, assim como pode ser religioso ou ateu. O que ele não deve permitir é que essa ideologia [política, religiosa ou de qualquer natureza] interfira de modo determinante nas decisões que venha a tomar em casos concretos”, exemplifica. 
Vladimir de Freitas também não considera “oportuno opinar sobre casos específicos”, e acredita “ser absolutamente imprudente” um magistrado que publica nas redes sociais uma opinião política, social ou econômica. “A imparcialidade é o maior atributo de um juiz. Imagine que ele, insatisfeito com um advogado, põe no Facebook uma crítica genérica a todos os profissionais. Tais excessos devem ser evitados. Uma opinião genérica sobre a necessidade de termos uma sociedade justa e que contemple a defesa dos direitos humanos, evidentemente, não pode ser vista como condenável”, pondera, para em seguida condenar a ações “sob emoção” que criticam “o sistema político, outros poderes, partidos políticos ou algo semelhante. Evidentemente, este excesso é condenável. Parece-me que tal tipo de magistrado enganou-se quanto à sua vocação. Talvez devesse estar no Ministério Público, na Defensoria Pública, no parlamento, em um órgão ambiental, ou seja, em local mais adequado aos seus anseios”, opina.

Segundo Fabio Nogueira, é normal que magistrados exponham suas opiniões nas redes. “Muitos são importantes formadores de opinião, tanto no mundo jurídico quanto no mundo político. São atores importantes do processo de transformação social. O bom senso é a veia motriz. A questão da imparcialidade há séculos tira o sono de juristas e cientistas e até hoje não se chegou a conclusão definitiva sobre o tema. Penso que toda a imparcialidade é, por sua vez, a tentativa reiterada de ser imparcial. Como seres históricos somos formados essencialmente por nossas experiências e isto acarreta determinadas impressões e compreensões do mundo que nos rodeia. Não é diferente com a magistratura”, compara o procurador-geral da Ordem. Ele considera que o Código de Processo Civil regula “de maneira bastante cristalina a questão e prevê como condição de suspeição julgar amigo ou inimigo” das partes ou de seus advogados. “Se em suas manifestações pessoais determinado membro da magistratura demonstrar excessivo apego ou repulsa a determinada pessoa ou ideologia, para que não restem dúvidas sobre a imparcialidade de sua conduta, é prudente que se declare suspeito ao se deparar com causa naquele sentido”, frisa. Os artigos 134 a 138 do CPC dizem respeito à imparcialidade do juiz no exercício de sua função e determinam que é seu dever declarar-se impedido ou suspeito, podendo alegar motivos de foro íntimo. O impedimento teria caráter objetivo; enquanto a suspeição, subjetivo.

Casara defende que o “dever de imparcialidade não se confunde com uma mitológica neutralidade”, que seria impossível, e que quem exige isso do juiz “adere a uma ideologia perversa funcional ao controle ideológico da magistratura”, porque “nas democracias é sempre bom que a sociedade saiba como pensam os agentes públicos”. Já Damasceno, que além de usar as redes sociais escreve há nove anos uma coluna no jornal O Dia, faz distinções entre o texto da juíza Orzomarzo, que em sua visão teria apenas criticado uma determinada visão de sociedade (a meritocracia), e a “questão dos juízes, tanto do Paraná quanto de Brasília, que participaram de manifestações com a camisa da CBF pedindo impeachment, criticando determinado partido político”, e “depois prolataram decisões” contra instituições ou pessoas ligadas aos mesmos atores sociais. “Este é um caso emblemático de comprometimento com o resultado concreto da demanda. Pugnavam por uma ocorrência e lhes coube proferir a decisão que requeriam”, critica. 

Ou seja, é inevitável perceber que a magistratura e suas opiniões estão longe de ser um coro unânime, e que há diferenças bem marcadas, de todo o tipo. Exatamente como no resto da sociedade.

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